Mais censura em educação

Meu amigo Bertelli, via email, encaminhou texto que registra nova frente de censura contra nosssos clássicos. Desta vez o alvo é Villa Lobos. Pedagogos que tudo sabem resolveram corrigir letras de cantares reunidos e transformados em arte por nosso maestro maior. Nada preciso comentar. Basta reproduzir aqui o texto recebido.

IMAGINE SÓ, ELES ESTÃO COM TANTA FRESCURA, QUE ATÉ ESTÃO MUDANDO O CANCIONEIRO POPULAR!!!!

Assunto: O Cravo não brigou com a Rosa

 

O CRAVO NÃO BRIGOU COM A ROSA

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto. Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais “O cravo brigou com a rosa”. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo – o homem – e a rosa – a mulher – estimula a violência entre os casais. Na nova letra “o cravo encontrou a rosa/debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada”.

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha. Será que esses doidos sabem que “O cravo brigou com a rosa” faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro? É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/Tá com a cabeça quebrada/Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê.

A tia do maternal agora ensina assim: “Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar”. Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, melodia de Heitor Villa Lobos e letra da Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.

Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichanos. A Sociedade Protetora dos Animais cairia em cima com processos.

Quem entra na roda dança, nos dias atuais. Não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil, estimula o sexo sem amor, a vulgaridade.

Ninguém mais canta: “Pai Francisco entrou na roda, tocando seu violão, vem de lá Seu Delegado, e pai Francisco foi pra prisão”. O pobre do Pai Francisco foi preso apenas por vadiagem, mas atualmente ficaria sob a suspeita de ser traficante.

Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não lembrar à garotada a desigualdade de renda entre os homens. Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado.

Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse que algum filho estava militando na causa da preservação do mico-leão-dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha. Bicha louca, diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magôo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado? Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a sepultura do humor, da criatividade, da divertida sacanagem. A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.

Daqui a pouco só chamaremos o anão – o popular pintor de roda-pé ou leão-de-chácara de baile infantil – de deficiente vertical. O crioulo – vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) – só pode ser chamado de afrodescendente. O branquelo – o famoso branco azedo ou Omo total – é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação. A mulher feia – aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno – é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo – outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, “Orca, a baleia assassina” e bujão – é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto-de-fome, pau-de-virar-tripa e Olívia Palito. O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais… Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz pra puta-que-o-pariu e o centroavante pereba tomar no olho-do-cu, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de “Jesus, Alegria dos Homens”, do velho Bach.

Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé-na-cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro-funeral, o popular tá-mais-pra-lá-do-que-pra-cá,  já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a “melhor idade”.

Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não. Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do Pé-Junto.

Luiz Antônio Simas
(Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor de História do ensino médio)

7 Respostas to “Mais censura em educação”

  1. Doralice Araújo Says:

    Inadmissível censura, Jarbas.

    Reproduzi o texto acima e acrescentei pequeno comentário insatisfeito, lá no Na Mira do Leitor. Creio que já é hora, quase tardia…, de uma revisão no curriculo de Pedagogia, sobretudo no bloco de disciplinas que lidam com a formação linguística. Você faz alguma objeção? Conhece um curso atento às necessidades, Jarbas?

    Receba o meu abraço e conte com a minha leitura atenta; o seu Boteco Escola merece trânsito de educadores comprometidos com as funções escolares e na vida em geral.

  2. Cristiane Says:

    Adorei o texto e concordo, mudar letras das músicas não resolve os problemas da nossa sociedade, e ainda ofendem a produção cultural

  3. Samilo Says:

    Olá professor Jarbas, começo a seguir seu blog e já vou dando meus pitacos. (risos) Estou encaminhando pesquisas na minha dissertação e tenho procurado alguns blogs que linkem os temas Educação e blog. Parabéns pelo espaço, que já me pareceu interessante. Entretanto, quanto a este texto é necessário que eu discorde. Afinal, as crianças gostam de relacionar as questões de regras e as obras culturais estão presentes todo o dia na vida das crianças, que podem ter outros contatos ao se relacionarem com discursos menos opressivos. Minha impressão aos que julgam que o politicamente correto não resolve ou que é pouco, é que não se compreende que não precisamos disseminar uma cultura de violência e opressão e que os discursos estão aqui para serem resignificados e valorizar as diferenças entre as crianças…

    mais uma vez parabéns pelo espaço

    • jarbas Says:

      Samilo,

      Discordamos. Acho que a apresentação de obras “resignificadas” para crianças é um absurdo. Também acho que o termo resignificar é um absurdo, pois contraria qualquer entendimento do que é semântica (uma construção social de significados, não uma nova dicionarização enviesada das palavras). Proteger as crianças em demasia não é educativo.

      Mas, deixemos por ora as divergências de lado. Agradeço seus elogios ao meu blog. E faço algumas sugestões. Do que já publiquei neste espaço, acho que podem lhe interessar particularmente os textos dos seguintes links:

      035. Paulo Freire na Blogolândia

      003. Blogs e conversação

      007. Blogs e Educação: Uma entrevista

      Se puder, mantenha-me informado sobre progressos em sua investigação. E, no final, tb se puder, me envie texto definitivo de sua dissertação. Abraço grande,

      Jarbas

  4. Jamille Says:

    Olá, profº Jarbas e demais leitores deste blog.
    Como educadora, digo que equilíbrio é a palavra de ordem. Nem muito e nem tão pouco. Por que não aproveitar as letras originais para estimular a criticidade nas crianças, trazendo para a discussão na escola, os temas que são vivenciados no cotidiano delas, que está nas novelas, que está nas ruas? Dourar a pílula a pretexto de não reproduzir práticas sociais indesejáveis é evitar conversar, discutir e refletir, deixando de lado uma excelente oportunidade de se exercer educação.
    Abraços.

  5. Renato de Vasconcellos Says:

    Olá participantes deste blog super interessante.
    Como músico e professor de música ressalto que, as novas versões para as antigas canções foram feitas por alguém que desconhece tudo sobre ritmo e prosódia.
    As palavras originais criam efeitos rítmicos incríveis, matrizes da genuína cultura afro-brasileira. Esses ritmos foram totalmente desconsiderados e em lugar deles, colocaram esse negócio sem “swing”, politicamente correto, mas completamente aculturado e modelinho “Rede Globo”.
    Na mão de quem está o nosso Ministério da Cultura? E da Educação? Alguém tem que se pronunciar a respeito dessas mutilacões culturais!!

    Quanto ao estímulo da violência e ao politicamente correto, francamente, considero de uma hipocrisia sem tamanho.

    Se alguma criança chegar a se identificar ou se comover com a “violência” contida no texto de uma canção folclórica ou composta pelo mestre Villa-Lobos, é hora da professora entrar em ação e denunciar: essa criança pode estar testemunhando a “violência” dentro de sua própria casa.

    Obrigado por levantar o tema.
    Gostei muito de alguns comentários.
    Também passei por aqui em busca de informações e dados para minha pesquisa que envolve a música e o nosso falar.

    Renato Vasconcellos

  6. O cravo não brigou com a rosa | Legal Says:

    […] e colei lá do Boteco Escola – como sempre, muito antenado em questões ligadas à educação. Me fez lembrar uma […]

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