211. Verticalização da Formação Profissional
Verticalização do Ensino e Trabalho: Educação Profissional Para Todos
[Produto 6. Versão preliminar para compor publicação do estudo: instituições internacionais X instituições brasileiras de EPT]
UNESCO
Jarbas Novelino Barato
Introdução
Pressupostos e fundamentos
Verticalização do ensino e capacitação básica de trabalhadores
Desenvolvimento da Educação Profissional e Hierarquia Ocupacional
Verticalização e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia
Alvo do Estudo
Metodologia
Competências e educação profissional
Verticalização do ensino em EPT e inclusão
Educação compensatória, necessidade em EPT?
Educação Compensatória no Sheffield College
Dizer a própria palavra
Educação compensatória no departamento de educação de adultos de San Diego
Inclusão: observações efetuadas no Brasil
Ciência Inacessível
Abrindo portas em hotéis
Formação técnica pós-secundária
Educação pós-secundária no Sheffield College
Primeira aproximação: análise de cursos para ocupações do campo
Uma área especial: Childcare
Cursos pós-secundários no Seneca Colege
Exemplos de cursos pós-secundários
Pós-secundários no Brasil
O apelo da culinária
Técnico em Cozinha num Instituto Federal
Técnico em Cozinha no SENAC
Curso de Técnico em outra unidade do SENAC
Curso Técnico de Estética Facial
Curso de Técnico em Podologia
Um caminho para a educação técnica pós secundária, não universitária
Cursos superiores
Cursos superiores no Seneca College
Cursos superiores no Sheffield College
Cursos superiores no Miramar College
Ensino superior tecnológico: instituições internacionais X Brasil
A Nova Aprendizagem
Saberes do Fazer e Aprendizagem
O caso do Canadá
Aprendizagem no Québec
Voltando a Sharpe e Gibson
Aprendizagem em instituições de EPT
Aprendizagem no Reino Unido
Aprendizagem em diferentes níveis
Retomando aspectos conceituais e exemplos do Sheffield College
Voltando aos programas de Sheffield
Complemento: Aprendizagem nos Estados Unidos
Aprendizagem no Brasil
Aprendizes no setor de hospedagem
Concepções de Aprendizagem e Aprendizagem no Brasil
Aprendizes no campo da administração e vendas
Aprendizes ensinando aprendizes na escola
Aprendizagem em vendas
Projeto para feira de ciências
Aprendizagem de artes gráficas
Aprendizagem em mecânica ou reforço em matemática?
Aprendizagem em eletro-eletrônica.
Tópicos especiais
Hobby e Lazer numa instituição de educação profissional e tecnológica
Educação continuada em San Diego: Curso para a família
Programas especiais no Seneca College
Associação entre trabalho e educação
Educação Cooperativa
Referências
Introdução
A presença da educação profissional nos sistemas de ensino é recente. Ela aconteceu por volta dos anos quarenta do século passado. Até então, a capacitação para o trabalho na maioria das profissões acontecia ou no interior das atividades produtivas ou em instituições que não se articulavam com a educação escolar. Muitas profissões, que hoje requerem estudos universitários, eram aprendidas em relações de mestre/aprendiz pelo trabalho, em processos informais de ensino. Essa situação aparece com frequência na literatura. No romance Chapadão do Bugre (PALMÉRIO, 1970), por exemplo, o protagonista da história aprende a profissão de dentista com um mestre do ofício que ele acompanhou por vários anos numa clínica ambulante que oferecia cuidados de saúde bucal para sertanejos do Interior Mineiro. Outras profissões nasceram a partir de um ensino livre, organizado com a finalidade de capacitar mão de obra para apoiar atividades de profissionais de nível superior. Este é o caso da fisioterapia (MARQUES e SANCHEZ, 1994). Com o objetivo de preparar auxiliares capazes de orientar pacientes em exercícios que prescreviam, médicos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo criaram um curso livre para preparar rapidamente pessoas interessadas em apoia-los em suas atividades de fisioterapia. Tal curso, depois de alguns anos de funcionamento, foi elevado à categoria de curso técnico. E, posteriormente, converteu-se numa formação universitária. Esses dois casos mostram que muitas profissões passaram por um processo de elevação de seus requisitos de capacitação e alcançaram o nível superior. Mostra também que a formação profissional quase sempre acontece sem vinculações com o ensino formal oferecido por escolas.
O ingresso da capacitação profissional no sistema escolar criou com o tempo grande número de cursos que ocupam níveis diferentes na estrutura escolar. Algumas vezes, certas profissões foram desenvolvidas como parte de percursos escolares. Assim durante bastante tempo, muitas profissões industriais, como a de torneiro mecânico, foram ensinadas como parte integrante de propostas educacionais dos ginásios industriais (numa formação profissional articulada com os quatro últimos anos do ensino fundamental). E desde a década de 1940 certas profissões (a do contador é um exemplo paradigmático neste sentido) passaram a ser desenvolvidas em cursos técnicos de nível médio.
Grande parte da capacitação para o trabalho acontece fora dos sistemas de ensino, seja em aprenderes a partir do engajamento em alguma atividade produtiva, seja por meio de cursos livres que funcionam à margem da educação escolar. Uma e outra forma de capacitação podem, eventualmente, ser integradas ao sistema de ensino, por meio de cursos técnicos ou mesmo superiores. Por outro lado, essas duas formas de capacitação para o trabalho, quando desenvolvidas no nível básico, raramente integram-se ao sistema de ensino.
Em parte, a vinculação da formação profissional ao ensino formal depende dos níveis gerais da escolarização no país. Os ginásios industriais, vinculados a cursos de marcenaria, tornearia, mecânica existiram em época em que a escolarização do ensino básico não estava universalizada e na qual os adolescentes podiam ingressar no mercado de trabalho aos doze anos de idade. Hoje não há mais ginásios industriais e a educação básica está universalizada. Não há mais cursos nos quais estudantes na faixa dos onze aos quatorzes anos concluíam sua educação fundamental e aprendiam simultaneamente uma profissão. Presume-se que os adolescentes só começarão a aprender uma profissão depois dos quatorze anos de idade. Presume-se também que os alunos de programas de educação profissional serão pessoas com escolarização mínima equivalente às nove primeiras séries do ensino básico. Infelizmente tal presunção às vezes não corresponde à realidade, muitos trabalhadores não concluíram sua educação fundamental, mas precisam trabalhar bastante cedo em suas vidas. Por essa razão, engajam-se ao mercado de trabalho precocemente, quase sempre sem qualquer formação prévia em termos profissionais.
As relações entre educação e trabalho são multifacetadas. Muitas vezes a escolarização é utilizada apenas como exigência para diminuir o número de candidatos em processos de seleção. Muitas profissões que demandam bastante tempo de capacitação profissional não são consideradas como objeto de interesse para compor ofertas de educação profissional no sistema escolar. Isso acontece geralmente quando a profissão não tem status social elevado. Como veremos mais á frente neste estudo, profissões da área de cozinha não tinham grande prestígio social e eram aprendidas apenas no interior do próprio trabalho ou em cursos básicos em que predominava uma clientela com baixa escolaridade. Hoje a situação é outra. Há grande procura por cursos superiores de gastronomia (de nível universitário) por parte de jovens das classes médias. E mesmo os cursos básicos para formar cozinheiros são procurados agora por pessoas com escolaridade elevada. Por outro lado, profissões cujo exercício demanda bastante conhecimento como as da construção civil (pedreiro, encanador, carpinteiro) não encantam jovens de classe média e não são ensinadas em cursos de prestígio em escolas. Quando muito, cursos para tais profissões aparecem em programas emergenciais de formação profissional, geralmente em versões aligeiradas que não contemplam uma formação completa de tais profissionais. A educação é utilizada para “organizar” os quadros profissionais, servindo como referência para controlar acesso aos postos de trabalho mais interessantes na hierarquia ocupacional. Noble (1977) mostra como isso aconteceu, por exemplo, no caso da mecânica com surgimento de cursos superiores destinados a formar engenheiros para profissões que antes eram exercidas por mecânicos “práticos”. Na análise que faz, Noble mostra que o principal alvo da formação de engenheiros mecânicos não era o domínio da tecnologia, mas acesso a posições de poder na hierarquia ocupacional. Por outro lado, surgem novas tecnologias que podem exigir estudos aprofundados das ciências a elas relacionadas para o exercício de algumas profissões. Esse parece ser o caso de profissões relacionadas com as ciências da computação[1].
Não há aqui espaço para aprofundar como as profissões ingressam nas escolas e resultam em cursos que são classificados como básicos, técnicos e superiores. É preciso, porém, deixar registrado que as relações entre educação e trabalho não são determinadas apenas por demandas de saberes tecnológicos e científicos. Há que se considerar sempre fatores históricos e sociais que determinam os caminhos da educação profissional em todos os níveis.
As questões até aqui esboçadas guardam relações com o princípio de verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica que ganhou grande ênfase na época da criação dos Institutos Federais em 2008. Esse princípio, em linhas gerais, tem por finalidade assegurar que as instituições de educação profissional atendam de modo equilibrado e equânime todas as demandas de capacitação para o trabalho, da formação básica à superior. Essa orientação busca garantir que as instituições de educação profissional mais importantes do país não priorizem o ensino superior, deixando de lado ou secundarizando o ensino técnico e básico. Tal orientação procura garantir inclusão e congruência entre ofertas de capacitação profissional e pirâmide ocupacional. Do ponto de vista da inclusão procura-se garantir educação para todos. Do ponto de vista da congruência entre educação e estrutura do trabalho procura-se garantir que todos os níveis de capacitação profissional integrem o portfólio de ofertas de educação profissional.
As práticas das instituições de educação profissional e tecnológica parecem orientar-se de acordo com o princípio de verticalização do ensino. Mas essa impressão talvez deixe de lado aspectos que devem ser considerados para facilitar inclusão sócio-educacional e espelhar a hierarquia ocupacional no mundo do trabalho. Este estudo foi concebido para revelar alguns desses aspectos e aprofundar análises de certas dimensões que apareceram na medida em que a investigação avançou. Acreditamos que alguns achados deste estudo podem ser referências importantes para que as instituições de educação aperfeiçoem medidas que garantam efetiva verticalização ensino em seus centros, campi e escolas. Acreditamos também que alguns dos achados deste estudo possam ser considerados em reorientações de políticas de educação profissional que resultem em adoção de direções para mais aperfeiçoar o princípio de verticalização do ensino em ETP.
As investigações desenvolvidas para recolher dados para este estudo foram realizadas nas instituições tradicionais de educação profissional e tecnológica – Institutos Federais, Sistema S e Redes Estaduais de Ensino. Essa circunstância resultou em obtenção de poucas informações sobre cursos desenvolvidos no âmbito do ensino livre. As instituições tradicionais oferecem programas classificados como ensino livre, mas essas ofertas geralmente não chegam à clientela mais típica do ensino livre, a população mais pobre e com déficits significativos de escolaridade. Para melhor analisar a capacitação básica para o trabalho seria necessário observar o que acontece em instituições típicas do ensino livre e/ou situações de ensino em programas emergenciais como o PRONATEC. Fazemos neste estudo algumas considerações sobre capacitação básica a partir de observações em instituições tradicionais de EPT, relatórios sobre cursos do PRONATEC e ocorrências de ofertas de educação similar em outros países. Mas, reconhecemos que o assunto precisa ser mais estudado. Como não realizamos observações sobre o ensino livre em organizações desvinculadas do sistema escolar, julgamos que será preciso em outros estudos analisar mais profundamente a educação profissional básica, voltada para capacitação profissional que não se vincula ao ensino médio e ao ensino superior.
Este estudo foi realizado em duas frentes, a primeira delas constituída por análise de informações sobre capacitação profissional em vários países; a segunda, constituída por observações em eventos de ensino em instituições brasileiras de educação profissional e tecnológica. O resultado final do estudo foi organizado em segmentos que oferecem uma visão interpretativa dos resultados por níveis de ensino, considerando sempre a inclusão sócio-educacional e os modos pelos quais a educação espelha (ou pode espelhar) a hierarquia ocupacional. Além disso, alguns temas que não dizem respeito apenas a níveis de ensino mereceram destaque, tendo em vista sua importância em indicações para políticas de verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica. Nas linhas que seguem apresentamos sinteticamente os temas aqui abordados.
Na primeira parte apresentamos considerações sobre fundamentos e pressupostos que devem ser considerados em investigações sobre verticalização. Além de referência à literatura que deve ser considerada no caso, resolvemos incluir na fundamentação uma narrativa sobre a retomada dos estudos por parte de um trabalhador que ficou longe da escola por décadas e que se inscreveu em eventos de educação formal que lhe proporcionaram ingresso numa nova profissão e complementação de sua educação básica. Julgamos que a história desse trabalhador é importante para que entendamos a importância da capacitação profissional para profissões que, quase sempre, ficam fora do radar das instituições tradicionais de EPT. Essa parte do estudo é complementada por referências sobre o alvo deste estudo e sobre a metodologia que utilizamos.
Uma das referências internacionais selecionada para este estudo foi o Sheffield College, instituição britânica. Para melhor entender como se organiza a educação profissional no Reino Unido foi necessário estudar o NVQ (National Vocational Qualification), o sistema de avaliação de competências que o país adotou a partir dos anos de 1990 para obter melhores resultados na capacitação de seus trabalhadores. O sistema britânico de competências não é uma ferramenta pedagógica para reorganizar o ensino. Ele é um instrumento que classifica, descreve e avalia habilidades e conhecimentos dos profissionais. Para tanto, foi necessário sistematizar em diferentes níveis os descritores da maior parte das profissões no país. Com tal providência, o Reino Unido passou a contar com descrições muito claras de quase todas as profissões que integram sua hierarquia ocupacional. Esse tipo de providência pode ser muito útil para orientar verticalização do ensino, articulando níveis do trabalho com níveis de capacitação profissional no sistema de ensino. Por essa razão destacamos o assunto num capítulo breve, mas que pode nos ajudar a refletir sobre articulações entre trabalho e educação.
Como já observamos, a verticalização do ensino em EPT é uma direção inclusiva. Notamos nas instituições internacionais diversas providências de caráter inclusivo para que nenhum trabalhador fique de fora da educação que lhe pode garantir a capacitação profissional desejada. O tema é tratado num capítulo extenso, com destaque para providências de educação compensatória destinada a vencer possíveis déficits educacionais de alunos que ingressam nas instituições de educação profissional. A prática da educação compensatória não é muito comum no Brasil e ela poderia ser adotada para resolver alguns problemas que notamos em cursos de educação profissional observados para este estudo.
Depois de examinar medidas inclusivas existentes nas instituições internacionais, relatamos observações feitas em alguns cursos de educação profissional nos quais predomina uma clientela adulta que esteve fora do sistema escolar por muito tempo. No geral essa clientela enfrenta diversos problemas. Um deles é relacionado com a estrutura e funcionamento do ensino que em nada difere daquilo que é oferecido para jovens. Outro é de caráter metodológico. Experiência de vida e de trabalho dos adultos pouco é considerada em salas de aula, oficinas e laboratórios. A consequência disso pode ser notada principalmente no ensino das ciências e do idioma nacional. Instituições de ensino e docentes não encontram caminhos que possam facilitar a aprendizagem dos adultos. Essas dificuldades acabam resultando em problemas de inclusão.
Nas instituições internacionais praticamente toda a educação profissional acontece em cursos pós-secundários. Em nossa análise destacamos a educação pós-secundária não universitária. Nas instituições estudas há uma grande variedade de programas pós-secundários que refletem a hierarquia ocupacional. Varia muito a duração e tais cursos e, quase sempre, eles são organizados em níveis que consideram o destino profissional dos formandos.
Cabe perguntar se há cursos pós-secundários não universitários no Brasil. A resposta para a pergunta é sim. Embora não reconhecidos como tal em termos legais, os cursos técnicos subsequentes são de fato pós-secundários. Eles, assim como os cursos pós-secundários existentes em outros países, acontecem depois que os alunos já frequentaram o ensino básico convencional. E embora sejam classificados da mesma forma que seus congêneres para adolescentes, ele têm natureza distinta. Em capítulo próprio mostramos que os cursos técnicos subsequentes podem ser o núcleo de um trabalho educacional parecido com o desenvolvido no ensino pós-secundário em outros países.
Em educação profissional e tecnológica, os cursos superiores ganharam uma estrutura única na forma dos programas de formação de tecnólogos. Em contatos mantidos com gestores dos Institutos Federais e de centros de ensino superior do sistema S, fomos informados de que há uma tendência de aumento dos cursos de bacharelado naquelas instituições. Essa tendência indica que o ensino superior vinculado à educação profissional e tecnológica poderá em futuro breve pouco se distinguir do ensino universitário tradicional. Isso, se confirmado, resultará num estreitamento da verticalização do ensino em programas de capacitação profissional no nível universitário. Na análise dos cursos superiores em instituições profissionais do Exterior notamos variações que espelham a diversidade de ocupações no mercado de trabalho. Em capítulo sobre o ensino superior elencamos alguns dos programas de ensino superior dos colleges do reino Unido, Canadá e Estados Unidos. Acreditamos que a diversidade dos cursos superiores de educação profissional e tecnológica naqueles países poderá inspirar tratamentos que assegurem diversidade similar em nossas instituições, considerando uma educação que espelhe com maior fidelidade a hierarquia ocupacional.
Um dos achados mais importante deste estudo foi a da integração da Aprendizagem a todos os níveis de ensino em alguns países. Há, desde os anos de 1990, uma nova Aprendizagem que rompe com o velho modelo vinculado exclusivamente às ocupações artesanais e básicas. Em reformas havidas em diversos países, o aprender no trabalho associado a programas escolares passou a ser integrado a todos os níveis de ensino. Isso permite capacitar profissionais no e pelo trabalho em todos os estamentos da hierarquia ocupacional. Por outro lado, a Aprendizagem no Brasil, embora ainda vinculada ao modelo original gestado nos anos de 1940, vive momentos de grande contradição, uma vez que os aprendizes já não são mais apenas adolescentes que acabam de terminar o nível inicial do ensino fundamental. Hoje grande patê dos aprendizes está nos últimos anos do ensino médio ou já concluíram essa fase da educação. E há um número significativo de aprendizes que já estão na universidade. A contradição aqui encontrada foi resolvida por reformas realizadas em vários países. Tais reformas configuram uma nova Aprendizagem que compreende programas em todos os níveis de ensino.
Na concepção inicial deste estudo a Aprendizagem não era um item que mereceria investigação. Mas, na medida em que progredia nossa análise do ensino profissional em vários países, constatamos que uma educação que associa trabalho e educação em todos os níveis é um aspecto essencial na verticalização do ensino. Dada a importância que a Aprendizagem tem hoje nos sistemas de educação profissional de outros países, resolvemos dedicar ao tema três capítulos deste estudo: um mostrando direções da reforma da Aprendizagem no Canadá, outro destacando alguns programas de Aprendizagem no Reino unido e nos Estados Unidos, e outro com narrativas sobre situações típicas de programas de Aprendizagem no Brasil.
Muitos das situações que merecem destaque nos programas de educação profissional e tecnológica das instituições internacionais revelam detalhes que não tem a ver com níveis de ensino e com hierarquia ocupacional. Elas são providências que favorecem inclusão ou que sinalizam que os trabalhadores não desejam apenas uma educação utilitária. Julgamos que tais aspectos podem ter bastante peso em concepções mais abrangentes do princípio de verticalização. Por essa razão, reunimos em capítulo próprio tais detalhes.
Os resultados deste estudo permitirão formular indicações que poderão ampliar consideravelmente o princípio de verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica.
Pressupostos e fundamentos
Para encaminhar este estudo sobre verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica procuramos caminhos que não tornassem a análise apenas uma abordagem formal de currículos e programas. Para tanto, no que segue, vamos considerar um quadro bastante mais amplo do que o da organização do ensino no interior das instituições escolares.
No primeiro segmento serão consideradas as questões de capacitação básica dos trabalhadores que, muitas vezes, são obrigados a deixar a escola muito cedo em suas vidas. Para situar as questões educacionais da vida de trabalhadores, utilizaremos a narrativa baseada em entrevista com um trabalhador que fez um curso de jardineiro pelo PRONATEC, formação com a qual ele jamais havia sonhado em sua vida. A volta deste trabalhador aos estudos depois dos cinquenta anos de idade, assim como sua história de trabalho, iluminam várias questões que precisam ser consideradas em capacitação para o trabalho. A história da volta desse trabalhador à escola mostra que a capacitação profissional pode ter papel importante na valorização dos estudos por pessoas que abandonaram a escola muito cedo. E a importância da educação profissional, como mostra o acontecido com o aluno do PRONATEC, sinaliza que é preciso considerar a papel fundamental de capacitações profissionais que estão na base da hierarquia ocupacional. Aparentemente isso não vem merecendo atenção em propostas de verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica.
No segundo segmento, consideramos questões sociais que afastam a camada mais pobre da população da escola, antecipando ingresso no mercado de trabalho. Observamos que nos estamentos mais pobres o trabalho costuma ser bastante simples e pouco exigente em termos de educação profissional. Consideramos também que o trabalho é marcado pelo status social que lhe é atribuído. Assim, mesmo que exijam muitos anos para que os profissionais que as exercem atinjam níveis satisfatórios de competência, caso sejam vistas negativamente, certas profissões são consideradas muito simples e destinadas a pessoas pouco instruídas. Profissões e ocupações têm sua posição na hierarquia ocupacional determinada não só pelos conhecimentos que demandam, mas também pelo valor que lhes é atribuído socialmente. Isso provoca certa dissonância entre níveis de educação requeridos para exercício de uma profissão e a posição que ela ocupa na pirâmide ocupacional.
Na terceira sessão examinamos o conceito de verticalização tal qual foi proposto na época em que os Institutos Federais foram criados. Constata-se que a verticalização foi proposta tendo em vista princípios de inclusão. Tais princípios, porém, não garantem uma educação que inclua em seus planos a capacitação profissional básica. Parece que os Institutos Federais, assim como outras instituições tradicionais de EPT, caminham na direção de uma escolarização que dará prioridade a cursos técnicos (sobretudo os regulares) e cursos superiores. Essas foram indagações que nosso estudo procurou aprofundar na busca de respostas que de fato pudessem garantir maior inclusão de todos os trabalhadores ou candidatos a emprego que precisam de mais educação.
Finalmente, nas duas sessões seguintes, indicamos sinteticamente os objetivos do estudo e a linhas metodológicas utilizadas na investigação.
Verticalização do ensino e capacitação básica de trabalhadores
Chico, cinquenta e oito anos, ex-ferroviário, jardineiro, é um exemplo para o qual convém olhar num estudo sobre verticalização da educação profissional e tecnológica.[2] Mas, antes de examinar como esse trabalhador se educou na escola e fora dela, vamos relatar alguns detalhes de sua vida. Ele mora numa casa de laje na periferia de São Paulo. O bairro tem ruas cujo traçado indica ocupação irregular de terremos próximos à via férrea. As casas, a maioria de laje, ocupam a totalidade dos terrenos acanhados. Não são afastadas das ruas. Não têm jardins nem quintais. A laje superior funciona como área de serviço e de lazer. Ali lava-se e seca-se roupa. Ali brincam as crianças. Ali acontecem churrascos. A laje é um recurso para expandir verticalmente a residência quando a família cresce. Chico tem uma casa que está na segunda laje.
É domingo, único dia da semana que Chico encontrou para receber o entrevistador que com ele queria conversar sobre suas experiências educacionais. Durante a semana, o entrevistado sai cedo de casa e viaja cerca de duas horas por trem e ônibus para chegar ao trabalho. Volta tarde para casa. Entrevista no local de trabalho seria inviável. Entrevista no sábado também não seria possível porque ele tem vários compromissos com a igreja e com movimentos políticos no bairro. E mesmo no domingo a conversa com o entrevistador não seria possível, pois Chico devia estar com familiares e amigos ajudando seu filho mais novo na construção da casa deste, que vem sendo erguida por meio de mutirão. O entrevistado deixou o compromisso no meio dia e foi para sua residência onde ocorreu a entrevista.
A rua é uma faixa de asfalto estreita que acompanha o muro da ferrovia e está ligada à avenida mais importante do bairro por diversas vielas laterais. O desenho dessa parte do bairro indica ocupação não planejada de terrenos em torno da via férrea. Todas as casas são bastante parecidas, quase sempre com tijolos aparentes, quase sempre cobertas por lajes de concreto. No espaço estreito e sem calçadas, há velhos carros estacionados bem próximos dos muros das residências. Chegamos à casa do Chico à 14:40, um pouco adiantados, pois a conversa fora marcada para as 15:00 horas.
Chico conta que nasceu na periferia do outro lado da cidade, de família pobre. Observa que não frequentou creche nem pré-escola, dizendo que na sua infância isso era um privilégio de filhos de classe média. Aos sete anos ingressou numa escola pública para cursar o ensino fundamental e nela permaneceu até a sexta série. Aos doze anos parou de estudar porque precisava trabalhar para ajudar a família[3]. Conseguiu trabalho sem registro em pequenas empresas metalúrgicas, mas não chegou a aprender um ofício. Dos doze aos dezoito anos passou por diversos empregos e esteve desempregado duas ou três vezes. Estava desempregado quando a namorada engravidou e ele, contrariando o desejo dos pais, resolveu com ela se casar. Parentes da namorada conseguiram para ele emprego na ferrovia. Assim, aos dezenove anos, casado, com a mulher já esperando o primeiro filho, Chico conseguiu finalmente emprego com carteira assinada. Começa então uma vida em que teve de enfrentar muitas dificuldades, mas com garantia de remuneração certa no final do mês. Chico foi ferroviário durante vinte anos. No período, ele tinha ganhos regulares e relativa segurança. Pôde então criar os quatro filhos sem os atropelos de desempregos eventuais.
Ao narrar seus vinte anos como ferroviário, Chico não descreve com clareza o que fazia. Na maior parte dos casos, os trabalhos que ele exercia eram de manutenção das vias ferroviárias (limpeza do leito da ferrovia e cuidado com os trilhos). Tal descrição sugere trabalho semiqualificado e braçal. Nos últimos anos, ele viajava pela ferrovia e chegava a trabalhar como auxiliar de maquinista. Mas, neste último caso exercia eventuais funções mais por concessão de companheiros que por algum plano de carreira.
Com a privatização das ferrovias, Chico foi demitido. De imediato, não vislumbrou possibilidade de emprego regular. Decidiu então iniciar uma carreira como autônomo. Comprou uma kombi e começou a fazer carretos nas periferias urbanas. Essa atividade durou pouco tempo, pois os ganhos eram limitados e incertos. Ele tentou aposentar-se precocemente, uma vez que foi informado que seu trabalho na ferrovia era considerado insalubre, e, por essa razão, sua contagem de tempo para aposentaria poderia ser abreviada. Mas, em 1999 a legislação mudara e ele teria que esperar mais doze anos para requisitar sua aposentadoria pelo INSS. A solução foi a de buscar algum trabalho relacionado com sua experiência anterior.
Encontrou colocação numa empresa que prestava serviços às ferrovias da área metropolitana. O trabalho consistia basicamente em atividades de limpeza e manutenção das vias férreas, atividade que Chico exercera em seus tempos de ferroviário. Ele permaneceu em tal serviço durante nove anos. No final, viu-se desempregado mais uma vez.
Depois de um curto período desempregado, o entrevistado voltou à ativa. Foi convidado a trabalhar por outra empresa que prestava serviços às ferrovias. A função pouco tinha a ver com suas experiências prévias. Ela consistia em trabalho de supervisão da construção de muros para separar o leito das ferrovias do entorno urbano. Chico disse aos contratantes que nada sabia sobre construção civil, mas estes disseram que o chamaram porque precisavam de alguém que conhecesse princípios de segurança ferroviária para supervisionar o serviço.[4] Essa nova etapa de trabalho durou três anos.
Em 2011, Chico se viu desempregado mais uma vez. Mas, na ocasião, já tinha chegado a tempo de serviço que lhe permitia requisitar a aposentadoria. O entrevistado não revelou quanto tempo esteve em situação de desemprego, mas de sua narrativa é possível concluir que durante a vida ativa, dos dezoito aos cinquenta e três anos, ele esteve sem trabalho por cerca de dois anos. Neste cálculo, desconsideramos o período dos doze aos dezoito anos, época em que ele trabalhou em pequenas empresas, mas sem carteira assinada.
Os ganhos da aposentadoria seriam insuficientes, Chico então procurou o CAT (Centro de Ajuda ao Trabalhador) em busca de encaminhamento para nova oportunidade de emprego. Disseram-lhe que não havia vaga em perspectiva, mas que ele poderia fazer um curso de jardineiro pelo PRONATEC. Essa era uma possibilidade que ele não conhecia. Aceitou a indicação, embora a escola ficasse muito distante de sua casa. Fez o curso de jardineiro, terminando-o em outubro de 2013. Em dezembro conseguiu trabalho em empresa que prestava serviços de manutenção de jardins num dos parques da prefeitura. Permaneceu nesse emprego por um ano e meio. Depois de pequeno período desempregado, Chico conseguiu nova colocação como jardineiro; dessa vez, prestando serviços para manter áreas verdes de um imenso terminal de transporte de uma empresa multinacional. Está nesse trabalho até hoje e coordena atividades de outros oito empregados.
Chico teve uma trajetória profissional bastante diversificada, quase sempre no exercício de trabalho semiqualificado que não demandava muita capacitação. Na narrativa sobre sua história como trabalhador, ele procura passar uma versão bastante otimista de suas experiências, atribuindo muito valor ao que fazia. E agora, pela primeira vez na vida, está exercendo uma profissão para a qual teve capacitação formal e que não é semiqualificada.
Chico chegou à jardinagem por meio de uma qualificação profissional que lhe abriu portas para trabalho com o qual ele jamais houvera sonhado. Voltou aos estudos aos cinquenta e três anos. E essa volta ocorreu porque os filhos já estavam grandes, três deles casados. Além de ter mais tempo para estudar, Chico tinha consciência de que o acesso a trabalho melhor remunerado dependia de mais escolarização. Por isso buscou oportunidades de estudo em escolas públicas. Ingressou num programa de EJA (Educação de Jovens e Adultos) e conseguiu por essa via concluir o ensino médio[5]. No último ano, sua frequência ao curso de EJA coincidia com o curso de qualificação profissional que estava fazendo no âmbito do PRONATEC. “Na ocasião”, disse ele, “eu ficava o dia todo fora de casa, pois o curso de jardineiro acontecia no período da manhã, e o de EJA à noite”. É preciso considerar que para frequentar duas escolas, Chico se deslocava por quase seis horas pela área metropolitana, E isso era possível porque ele não estava empregado na época.
Em 2014, Chico voltou à escola para mais um curso via PRONATEC. Fez o curso de Técnico em Segurança do Trabalho, oferecido por uma escola privada no bairro em que mora. Terminou essa formação recentemente e está aguardando registro profissional para poder se candidatar a emprego na área. Mas, suas chances não são muito grandes, pois ele é um trabalhador com mais de cinquenta anos e, ao contrário do que aconteceu em sua capacitação como jardineiro, suas experiências prévias de trabalho não favorecem atuação como técnico numa profissão que requer bastante atividades de caráter burocrático.
A história do Chico revela diversos aspectos que é preciso considerar nos percursos educacionais e laborais dos trabalhadores. Razões de ordem econômica fazem com que os jovens pobres ingressem precocemente no mercado de trabalho. Com pouca escolarização, eles, se conseguirem emprego, trabalharão em ocupações que não exigem capacitação profissional e, ao mesmo tempo, não garantem aprendizagem de um ofício no interior do próprio trabalho. O desemprego sempre será para eles um ameaça constante. Retorno à escola que tiveram de abandonar muito cedo será bastante difícil na medida em que demandas imediatas do cotidiano criam obstáculos para os estudos. Essa é uma situação muito comum para jovens e jovens adultos na faixa dos dezessete aos trinta nove anos. [6]
Chico diz que gostaria de fazer o curso técnico de paisagismo, desde que oferecido em condições que facilitassem acesso. Acha que ele seria muito útil para o trabalho que faz hoje na conservação e manutenção de áreas verdes numa grande companhia.
Os dados e descrições até aqui registrados mostram percursos de trabalho e de educação de um trabalhador cuja história de vida foi considerada numa investigação sobre cursos do PRONATEC. Mas, os mesmos dados e descrições são comuns para um grande número de jovens e jovens adultos das camadas mais pobres da população. Esses jovens enfrentam problemas que tornam impraticável sua presença regular em escolas, pois:
- Precisam ingressar precocemente no mercado de trabalho, quase sempre em funções que não exigem capacitação profissional prévia.
- Costumam abandonar os estudos quando chegam à sexta ou sétima série do ensino fundamental.
- Não contam com incentivos para estudar nas empresas em que trabalham.
- Nas regiões metropolitanas, geralmente são obrigados a se deslocar por grandes distâncias nos percursos casa/trabalho (ou escola).
- Moram em casas de construção precária, com pouco ou nenhum espaço para atividades de estudo.
- Passam por experiências repetidas de desemprego.
- Enfrentam demandas imediatas de sobrevivência que não lhes permitem retornar aos estudos.
- Como não concluíram o ensino básico, dificilmente podem se candidatar a trabalho em grandes empresas.
- Podem mudar de funções na medida em que deixam um emprego e começam a trabalhar noutro, mas como o trabalho que encontram é semiqualificado quase nunca conseguem avançar muito em capacitações favorecidas pelos fazeres profissionais.
- Começam a ter mais tempo para estudo quando chegam à idade adulta.
- Geralmente passaram por escolas com instalações precárias e ensino de pouca qualidade.
Esse quadro, que inclui boa parte da população trabalhadora mais pobre, não é considerado na organização do ensino. E as dificuldades encontradas por tais trabalhadores para continuarem ou voltarem aos estudos acabam justificando seu fracasso na escola e no trabalho.
A história de vida de Chico apresenta também algumas características do trabalho de boa parte da população, principalmente a mais pobre, que marcam os fazeres profissionais. Convém listar algumas dessas características, pois elas precisam ser consideradas pelos sistemas educacionais, quer seja em educação geral, quer seja em educação profissional. Trabalhadores das camadas mais pobres da população:
- Iniciam sua vida laboral precocemente, antes de terminarem estudos no ensino fundamental.
- Podem permanecer nas escolas depois que começam a trabalhar, mas o abandono dos estudos é o desfecho mais comum.
- O trabalho que encontram geralmente não exige capacitação profissional prévia.
- O trabalho que encontram geralmente é precário e sem registro em carteira.
- Desemprego intermitente acontece com bastante frequência.
- Embora possam mudar de função na passagem de um para outro emprego, as diferentes atividades que exercem acontecem sob o guarda-chuva do trabalho abstrato.
- Recebem remuneração muito baixa.
- Como não concluíram o ensino fundamental, têm poucas chances de ingresso em empresas grandes e modernas.
A situação de trabalho da camada mais pobre da população não se explica por causa de baixa escolaridade. Ela se explica principalmente pela qualidade do trabalho oferecido. Ao analisar a situação de trabalho nos anos de 1970, o sociólogo espanhol Alberto Moncada (1977) observava que apenas dez por cento dos empregos disponíveis eram psicologicamente compensadores. Em outras palavras, apenas dez por cento dos empregos disponíveis exigiam demorada capacitação profissional e exigiam envolvimento com atividades cujo conteúdo implicava em desafios interessantes, motivadores. Se o quadro pintado por Moncada for verdadeiro, não é à educação que compete mudar a situação. O que é preciso é reorganizar o trabalho e oferecer melhores condições de emprego. Um exemplo nessa direção aconteceu com o contra-plano apresentado por operários na empresa Lucas Aerospace (CASASSUS e CLARK, 1978). Tal plano sugeria total reorganização da produção numa proposta que visava assegurar o direito ao trabalho e, mais do que isso, procurava assegurar o direito de usar as ferramentas e as qualificações profissionais para produzir bens do interesse de toda a sociedade. Na Lucas Aerospace, os trabalhadores eram altamente qualificados e ofereceram à empresa alternativa para manter empregos e continuar a produzir.
Não se pode aceitar a realidade do trabalho degradado como algo natural. Mudanças podem ser pensadas e implementadas na medida em que trabalhadores estiverem preparados para analisar as questões e propor soluções que enriqueçam o trabalho e tornem os resultados deste último socialmente significativos. Neste sentido, a educação pode desempenhar um papel importante, se se espera que os trabalhadores conheçam os processos técnicos das atividades nas quais estão envolvidos.
Outro aspecto a ser considerados é a possibilidade de acesso à educação. Para trabalhadores que, como Chico, tiveram que deixar a escola muito cedo em suas vidas, é preciso que existam soluções que ofereçam oportunidades para que eles possam finalizar seus estudos de ensino básico e aprender profissões que os habilitem a mudar de emprego ou superar situações de desemprego. A história de vida de Chico mostra isso com muita clareza. Quando pôde, ele buscou um curso de EJA e concluiu por essa via o ensino básico. Uma oportunidade na qual ele jamais havia pensado tirou-o do desemprego e abriu-lhe portas para exercer a profissão de jardineiro. Neste último caso, ele passou por um curso de qualificação profissional com carga horária bastante reduzida (cento e sessenta horas), permitindo apenas que aprendesse os aspectos básicos da profissão. Mas, o próprio Chico, avalia que a formação que teve, acontecida numa escola que contava com todos os recursos para que os alunos desenvolvessem as necessárias competências profissionais, preparando-os inclusive para continuar a estudar depois de concluído o curso, foi suficiente para que ele aprendesse a profissão.
Dos cinquenta e três aos cinquenta e seis anos, Chico voltou para a escola e fez três diferentes cursos: um programa de EJA para concluir seus estudos no ensino básico, um curso de qualificação profissional na área de jardinagem, um curso técnico no campo da segurança do trabalho. Sua história de vida mostra que jovens e adultos de sua classe social precisam de oportunidades de ensino que considerem suas necessidades e as dificuldades que enfrentam para ganhar a vida. Sua história de vida mostra também que talvez ele tivesse regressado aos estudos mais cedo se houvesse programas para tanto ou se as escolas, de educação geral e de educação profissional, estivessem organizadas para recebê-lo.
A história de vida de Chico mostra um caso de relativo sucesso. Não é uma história comum. As dificuldades enfrentadas pelos jovens pobres são bem maiores que as que foram enfrentadas por esse jardineiro que aprendeu um novo ofício depois dos cinquenta anos. Na faixa dos dezessete aos vinte nove anos, o desemprego dos jovens mais pobres é alarmante, chegando a trinta por cento (BARATO, 2013). E esse desemprego não decorre necessariamente de baixa escolaridade. Muitos desses jovens desempregados chegaram a concluir o ensino médio. O obstáculo maior encontrado por essa camada mais nova da população de baixa renda é a pobreza. Além disso, quase sempre a educação que receberam, mesmo lhes garantido certificado de conclusão do ensino médio, não foi suficiente para lhes proporcionar domínio competente de saberes necessários para se candidatarem a empregos em empresas que exigem escolaridade completa do ensino básico. Um sintoma dessa aprendizagem precária é a incapacidade de usar com a esperada correção o idioma nacional. Reflexos disso aparecem até mesmo entre jovens das camadas mais pobres que chegam à universidade, razão pela qual já existe há bastante tempo, como medida compensatória, ensino de português no primeiro anos da educação de nível superior. O problema não acontece apenas no Brasil; Mike Rose (2015) mostra que as medidas de educação compensatória para que jovens mais pobres dominem o inglês de acordo com expectativas acadêmicas é um enorme desafio nos Estados Unidos. Na Itália dos anos de 1950, Don Lorenzo Milani (MARTI, 1977), empenhava-se para que seus alunos (filhos de operários e camponeses, excluídos da escola pública) soubessem dizer sua própria palavra, considerando o ensino da língua nacional como principal ferramenta de uma educação libertária.
Além do domínio do idioma nacional, é importante que candidatos a emprego tenham outros conhecimentos. Hoje, por exemplo, espera-se que os trabalhadores quase sempre sejam capazes de utilizar computadores para diversas atividades. Jovens de classes sociais mais privilegiadas aprendem informática nas escolas e têm, em suas casas, acesso a computadores. Isso pode criar um imenso golfo que separa trabalhadores de diferentes classes sociais, como mostra estudo que analisa as dificuldades que as classes sociais de menor poder aquisitivo têm para frequentar educação técnica e tecnológica (WRESCH, 1996). No citado estudo, o autor mostra que a questão não se resume a acesso superficial a computadores, mas acesso a uma cultura tecnológica da qual os computadores são instrumentos. E essa cultura não decorre apenas de educação escolar, ela depende muito de condições de acesso a informações em casa e nos grupos de convivência.
Voltemos à história do Chico. Ela não é uma exceção. A pobreza afasta muitos jovens da educação e os obriga a procurar meios de sobrevivência em trabalhos de baixa remuneração, quase sempre sem as necessárias garantias de continuidade no emprego, de aprendizagem de uma profissão, de possibilidade de continuar estudos. Chico é exceção quando consideramos seu relativo sucesso e sua volta aos estudos depois dos cinquenta anos de idade. Sua história de vida sugere percursos educacionais que não são aqueles de frequência à escola em idade própria. A narrativa da vida de estudos e de trabalho do Chico mostra muito concretamente barreiras de acesso à educação de qualidade entre os jovens mais pobres. Ela mostra também a necessidade de abordar a verticalização da educação profissional tendo em vista o trabalho imediato que é oferecido aos jovens das camadas mais pobres da população.
Cabe aqui um reparo. Chico não voltou à escola em centros tradicionais de educação profissional. Em parte, ele conseguiu voltar aos estudos por causa de um programa emergencial, o PRONATEC; em parte, ele conseguiu complementar seus estudos de nível básico também num programa emergencial. Ele não conseguiria obter um certificado de conclusão do ensino médio, nem uma qualificação de jardineiro, nem um certificado de técnico em segurança do trabalho se tentasse se matricular nos programas regulares oferecidos por instituições de educação profissional como os IF’s e o Sistema S. A organização do ensino em tais instituições não favorece ingresso de alunos com histórico de vida parecido com o de Chico.
A vida escolar de Chico em sua infância sugere frequência a uma escola pública muito limitada e precária. Mas, essa é a escola à qual os pobres têm acesso. Sem entrar no mérito de teorias da reprodução, a escola pública frequentada pelos pobres oferece uma educação adequada para quem exercerá funções mal remuneradas e que não exigem muita capacitação profissional. Essa é mais uma questão que não é objeto deste estudo, mas que deve merecer alguma atenção, pois a permanência dos alunos numa escola de pouca qualidade não garante desenvolvimento de uma cidadania consciente e preparação para ingresso no mercado de trabalho. Esse aspecto negativo da escola pública degradada não costuma merecer atenção em análises das relações entre trabalho e educação, mas, essa é uma questão que não pode ser esquecida.
Trabalhadores com histórias de vida parecidas com a do Chico podem voltar à escola por vários caminhos. Não precisam necessariamente ingressar num curso técnico; e muito provavelmente não poderão fazer isso porque não concluíram o ensino fundamental. Ingresso num programa de Educação de Jovens e Adultos pode ser uma possibilidade, mas muitos dos trabalhadores adultos talvez não disponham de tempo para os estudos exigidos. Uma alternativa interessante pode ser a capacitação profissional em ocupação em que possam aproveitar suas experiências e saberes prévios aprendidos por meio do trabalho. Isso aconteceu no caso do Chico, embora o aproveitamento de experiências prévias não fique evidente, assim como não há indicações de que as escolas por onde passou levassem em conta suas aprendizagens no e pelo trabalho. Mas, ele em seu trabalho como ferroviário utilizou muitas ferramentas que está utilizando hoje no ofício de jardineiro; e Chico, além disso, já desenvolvera, em seu trabalho como ferroviário, muitas habilidades motoras necessárias no novo ofício. Além disso, considerando a narrativa que ele fez sobre seu desempenho no curso de jardineiro, o trabalho anterior o preparou para a necessária disciplina que se exige de atividades em que é preciso muita dedicação para obter os resultados esperados.[7] A partir da história de vida de Chico e sua relação com os estudos na idade adulta, podemos elencar algumas indicações sobre verticalização do ensino em educação profissional:
- As ofertas de cursos precisam facilitar possíveis articulações entre experiências profissionais dos alunos e o que irão estudar na escola.
- A escolaridade não pode ser uma barreira para que os trabalhadores possam aprender profissões ou habilidades no campo do ensino livre.
- As ofertas de educação profissional devem refletir possibilidades amplas de novas aprendizagens para o trabalhador, sem se prenderem aos formalismos de organização e estrutura do ensino.
- A organização do ensino deve ser flexível para que os trabalhadores possam estudar de acordo com o tempo de que dispõem.
- A capacitação profissional não deve estar limitada a ofertas imediatas de emprego, mas deve ser vista como oportunidade para que os trabalhadores retomem sua educação.
As considerações até aqui feitas têm como ponto de partida a situação dos trabalhadores, não as conveniências acadêmicas como as determinadas por eixo tecnológico, ciência ou tecnologia. Convém levar em conta situações concretas de vida dos trabalhadores em vez de conteúdos de ciência e tecnologia relacionados com o trabalho. Não se trata aqui de relegar ciência e tecnologia a um segundo plano. Trata-se mais de olhar para os trabalhadores e ver como eles podem aprender novas atividades e voltar à escola de acordo com suas necessidades, desejos e possibilidades.
As indicações feitas acima talvez não tenham ficado muito claras. Convém, portanto, explicar essas cada uma delas.
A primeira delas sugere necessidade de articulações entre experiências profissionais dos alunos e o que irão estudar. Estamos aqui dando destaque a jovens e jovens adultos que trabalham ou já trabalharam. Aqui não destacamos necessariamente conteúdos aprendidos no trabalho e conteúdo que será aprendido no curso. Destacamos mais a experiência de trabalhadores. Interessa, por exemplo, considerar os valores que os alunos já elaboram sobre o trabalho, como os experimentaram, como os veem. Cabe lembrar que esses jovens e jovens adultos não chegam à escola sem experiências no mundo do trabalho. E essas experiências não são necessariamente positivas. Mas, de qualquer modo, não podem ser ignoradas.
A segunda indicação faz referência à escolaridade. Há uma tendência nos meios educacionais a classificar qualquer curso profissionalizante de acordo com algum nível de escolaridade. Rigor nessa direção pode impedir que muitos trabalhadores voltem a estudar, começando por capacitação profissional em ocupação que certamente podem aprender. Se pensarmos as situações concretas da vida dos trabalhadores, não podemos impedir que eles voltem aos estudos por causa de certos pré-requisitos formais. Como veremos mais à frente, a inflexibilidade dos sistemas escolares acabam sendo superadas por organizações que oferecem ensino livre sem requerer comprovação de escolaridade de seus alunos.[8]
A terceira indicação sugere necessidade de considerar oportunidades de capacitação profissional que não se limitem a categorias definidas de acordo certo escolarismo que privilegia cursos técnicos. Costuma-se considerar atividades de educação profissional voltada para o trabalho imediato como “mero adestramento”. Desqualificam-se assim cursos como o de soldador, de cozinheiro, de eletricista etc. Ignora-se no caso interesses dos trabalhadores por oportunidades que possam melhorar suas chances de empregabilidade. Em estudos anteriores (BARATO, 2015 e BARATO, 2017b) verificou-se que os alunos de cursos de soldagem em regiões em que o trabalho de soldador é muito requisitado estão buscando oportunidades de novas aprendizagens e um meio para migrar para trabalho que lhes assegure carreira e remuneração mais expressiva. Cursos de qualificação profissional sem as amarras curriculares dos cursos técnicos podem ser uma forma efetiva de oferecer para trabalhadores oportunidades de aprenderem algo novo, melhorarem chances de empregabilidade, voltarem aos estudos. Não se trata aqui apenas de evitar um tratamento escolarizante para a educação profissional. O que está em jogo é a relação do saber do trabalho com a aprendizagem. Os saberes que se requerem, por exemplo, para que um trabalhador realize atividades de soldagem é muito exigente. E no caso, assim como em muitos outros, predomina no curso um saber que é intrínseco ao trabalho. O que se ensina não tem um enfoque disciplinar, mas é acima de tudo um ensino voltado para execução de obras, baseado no aprender no e pelo trabalho, não em estudo verbal de conceitos e princípios. Para verificar isso, basta observar atividades de aprendizagem numa oficina de soldagem.
No geral, as ofertas de educação profissional não são flexíveis. Espera-se muito mais adaptação do aluno à estrutura e organização do curso que adaptação do curso a possibilidades concretas que trabalhadores têm de estudar. Essa é a questão central da quarta indicação. Anos atrás, discutiu-se no Conselho Estadual de Educação de São Paulo pedido para que alunos do curso supletivo oferecido por um sindicato pudessem frequentar os estudos em horários diferentes do dia (AUR, 1980). O sindicato justificava o pedido, informando que os trabalhadores das indústrias da região rodiziavam turnos de trabalho e por isso não podiam frequentar as aulas sempre no mesmo período. A informação não satisfez os conselheiros, estes queriam que os alunos fossem matriculados num turno definido, sem as variações de que precisariam dadas as mudanças em suas escalas de trabalho. Conveniências e formalidades da educação estavam criando barreiras para que os trabalhadores pudessem voltar aos estudos. Uma intervenção do Professor B. Amin Aur, conselheiro na época, mostrando que a organização do ensino deveria estar a serviço de quem queria estudar, acabou revertendo a tendência inicial e o pedido do sindicato foi aceito como uma experiência pedagógica que poderia ser implantada. Essa história mostra que a flexibilização da organização escolar é uma necessidade se se quer facilitar volta dos trabalhadores aos estudos.
A quinta indicação sugere algo que contraria o pensamento hegemônico sobre educação profissional. Em propostas de ensino voltado para o trabalho há sempre justificativas relacionadas com o mercado de trabalho local. Mas, para que trabalhadores voltem a estudar, a promessa de uma capacitação profissional relacionada com oportunidades imediatas de emprego não é o único caminho. Mike Rose (2015) observa que a volta à escola de trabalhadores que dela se afastaram no que se rotula de idade própria não é percebida pelos alunos apenas como preparação para o trabalho. Os estudantes enxergam na oportunidade muito mais que formação profissional. Eles começam a se interessar pelo estudo, começam a entender como podem ajudar os filhos em seus estudos, melhoram sua autoestima na medida em que se veem como estudantes. Esse sentimento de satisfação em voltar aos estudos foi comunicado por uma adulta cega que estava fazendo um curso de salgadeiro num centro de educação profissional e tecnológica (BARATO, 2015). Em conversa com o entrevistador, ele disse que ficava muito orgulhosa quando alguém no ponto de ônibus a cumprimentava por ser “estudante”. Num certo sentido, não importa muito o que os trabalhadores adultos estão estudando em sua volta à escola. Importa que eles estão estudando.
Examinamos até aqui desdobramentos de possibilidades de educação profissional de jovens e adultos, tendo como referência a história de vida de um trabalhador, Chico, que voltou aos estudos depois dos cinquenta anos de idade. Nosso foco não é educação de adultos, mas a confluência entre educação profissional e as demandas de trabalhadores jovens e adultos que precisam e querem mais aprender. Em nossa análise, ressaltamos propostas de educação conhecidas como qualificação profissional, uma modalidade de ensino de caráter básico, sem as amarras legais dos cursos técnicos ou tecnológicos. Começamos nossas considerações sobre verticalização da educação profissional por uma modalidade de ensino que não costuma receber muita atenção em estudos acadêmicos sobre EPT. Ou que eventualmente são rotuladas de mero adestramento.
Estudo preliminar da verticalização da educação profissional e tecnológica sugeriu que a qualificação profissional não vem merecendo atenção devida em entendimentos sobre a relação entre ensino e capacitação para o trabalho. Indicou também que a natureza do trabalho em ocupações de base é pouco estudada.
Desenvolvimento da Educação Profissional e Hierarquia Ocupacional
A verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica é uma ideia que surge na medida em que atividades de capacitação profissional ganham contornos mais definidos em termos de educação formal, articulando-se com o sistema escolar em todos os níveis. Por essa razão, convém examinar como a formação profissional entrou em cena na história da educação. Até a primeira metade do século XIX não existiam praticamente instituições de educação profissional, salvo raras inciativas de capacitação para o trabalho em organizações voltadas para desvalidos da sorte (CUNHA, 1979). No Brasil, pode-se considerar que a capacitação sistemática de trabalhadores tem seu início com a criação dos Liceus de Artes e Ofícios em algumas capitais do país (MORAES, 2003). Nessas instituições o assistencialismo social deixa de ser a única razão para a oferta de cursos. No caso específico do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, demanda por trabalhadores especializados em diversos ramos da construção civil era o motivo mais considerado no desenho e oferta de cursos.
Os Liceus de Artes e Ofícios, apesar de apoio financeiro do estado, eram instituições não governamentais. Não configuravam ainda política de educação profissional no país. Tal política começa a se delinear apenas em 1909 com a criação de Escolas de Aprendizes e Artífices via Decreto (Decreto 7.566), assinado pelo Presidente Nilo Peçanha (BRASIL, 2008). Mas, as Escolas de Aprendizes e Artífices, apesar de serem instituições públicas, não se articulavam com o sistema de educação escolar. Ficavam à margem do sistema e ainda mantinham a marca de uma educação para desfavorecidos da fortuna. Tal marca caracteriza oferta educacional com traços moralizantes. Como repara documento da SETEC (BRASIL, 2008):
Neste sentido, não há dúvida de que aos objetivos das Escolas de Aprendizes e Artífices se associavam a qualificação de mão de obra e o controle social de um segmento especial: os filhos das classes proletárias, jovens em situação de risco social, pessoas mais sensíveis à aquisição de vícios e hábitos “nocivos” à sociedade e à construção da Nação. (p. 13)
A marca do moralismo e do assistencialismo em ofertas de educação profissional é um fenômeno que aconteceu também em outros países. A Escola Nacional de Artes e Ofícios do Uruguai, por exemplo, teve até 1919 uma organização militarizada, pois acreditava-se que era preciso disciplinar os alunos (BATEGAZZORE e CABAJAL, 2010). A monumental arquitetura da escola uruguaia, que num primeiro instante lembra fábricas, lembrava também presídios. O entendimento da educação profissional como atividade assistencialista e disciplinadora aponta para uma educação inteiramente desvinculada da história da educação que se estruturou a partir das escolas organizadas para formar os filhos das elites (MJELDE, 1987).[9]
À marginalização da educação profissional corresponde a marginalização do trabalho para o qual ela prepara seus alunos. As ocupações que constituíam (e ainda constituem) objeto de capacitação profissional não eram reconhecidas como atividades dignas.[10] Como a construção civil é uma área que pode oferecer grande número de empregos, propostas de formação de pedreiros sempre apareceram em listas de programas emergenciais de preparação para o trabalho ou realocação de mão de obra. Mas a profissão era (e é) vista como uma saída para pessoas com poucas capacidades intelectuais. Isso acontece com muitas outras ocupações. Nos Estados Unidos, a profissão que é vista como atividade que não requer muito saber é a de garçonete. Fica parecendo que qualquer pessoa, sem preparação profissional, pode ir para a sala de um restaurante e executar os necessários serviços a clientes. Mike Rose (2007), em obra importante sobre inteligência dos trabalhadores, mostra que o trabalho de garçonete é muito exigente em termos de planejamento, psicologia aplicada, administração de conflito, tomada de decisões etc., além de técnicas de serviço de restaurante. O que acontece com essas duas profissões, pedreiro e garçonete, que estamos tomando como exemplo, é a ausência currículos acadêmicos na preparação dos profissionais. Tal ausência decorre da natureza do saber necessário para o exercício de tais profissões, um saber executivo que não pode ser convertido em conhecimento proposicional, o conhecimento cuja estrutura favorece tratamento disciplinar, escolar. A formação autêntica de pedreiros e garçonetes não é escolar. Esta talvez seja a razão que leva os educadores a pensarem que a formação para tais ofícios não é exigente. Quando a profissão não é aprendida em ambientes escolares, difunde-se a crença de que elas não têm níveis de complexidade que mereça processos de aprendizagem sistemáticos. Ao considerar educação na América Portuguesa, o historiador Luiz Carlos Villalta (1997) faz a seguinte consideração:
Entre as camadas humildes, por outro lado, difundiu-se o aprender-fazendo: extramuros das escolas, na luta pela sobrevivência, adquiriam-se os rudimentos necessários para garantir a subsistência e para reproduzir os papeis que lhes eram reservados na sociedade. Em alguns casos, esse aprender-fazendo engastava-se em vínculos menos formais, envolvendo uma relação claramente contratada entre mestres e aprendizes; era normal em particular para a aprendizagem de habilidades, ofícios e primeiras letras. Nessa direção alargava-se o campo educacional, mas se empobrecia a instrução escolar; mais do que polir, cabia, na perspectiva das autoridades, cultivar a obediência, e, aos olhos das camadas mais humildes, garantir a sobrevivência. (p. 333)
O isolamento das instituições de educação profissional aos poucos foi sendo superado. A educação profissional se articulou com o sistema escolar, inicialmente em programas de formação como os ginásios industriais e comerciais que combinaram formação profissional com as séries do antigo ginásio no que hoje seria o ensino básico da quinta à oitava série. Posteriormente surgiram cursos técnicos em articulações entre a capacitação para o trabalho e o ensino médio. Nos dois casos, para efeitos legais, os cursos profissionalizantes de nível ginasial e técnico eram, por lei, equivalentes aos mesmos cursos de educação geral sem propósitos profissionalizantes.
A articulação da educação profissional com a educação escolar pode ser lida de várias maneiras. Uma delas é a de que as ocupações que são objeto de dado programa de formação precisam necessariamente ser desenvolvidas em determinado nível da estrutura escolar. Argumentos referidos a necessidade de domínio de saberes científicos e tecnológicos são utilizados no caso. Por outro lado, poucas vezes se leva em conta que a classificação de um curso como básico, técnico ou superior é também consequência de fatores sociais relacionados com as credenciais fornecidos pelo sistema escolar. Um caso que pode exemplificar isso é o da história da formação do fisioterapeuta. No Brasil, a ocupação inexistia até a década de 1950. Médicos da Universidade de São Paulo resolveram organizar serviços de fisioterapia para apoiar os tratamentos que prescreviam (MARQUES e SANCHES, 1994). Para formar os quadros necessários a tais serviços, os docentes da USP criaram um programa de ensino livre para formar fisioterapeutas. Durante vários anos esse foi o caminho de formação dos profissionais de fisioterapia. Posteriormente, tal formação foi desenvolvida num curso técnico de nível médio. Finalmente, a fisioterapia passou a ser objeto de um curso universitário, no início com três anos de duração e, na forma atual, quatro anos. Num período relativamente curto, a formação do fisioterapeuta saltou de um curso livre de três meses, sem qualquer amarra legal, para um curso de bacharelado. Pode-se perguntar por que tal formação não foi universitária desde o início. Aos profissionais envolvidos na criação do primeiro curso não faltava conhecimento para determinar qual deveria ser o nível educacional necessário para exercício da profissão. Mas, o desenvolvimento do curso passou por um processo de acomodação no qual, além de definições referidas a saberes científicos, entraram fatores como status profissional e negociações sobre como regular e controlar o acesso ao trabalho.[11]
Em tempos mais recentes, a área de cozinha conheceu diversificação notável na estrutura de formação de seus quadros. Até os anos de 1980, a formação de cozinheiros acontecia em cursos básicos. Numa das primeiras instituições formadoras de profissionais de cozinha, o Hotel Escola de Águas de São Pedro, a capacitação do cozinheiro se estruturou num curso básico, dividido em duas fases de três meses. Ao concluir a primeira fase o aluno recebia um certificado de auxiliar de cozinha; ao concluir a segunda recebia um certificado de cozinheiro. Nos anos de 1980 começaram a se desenhar cursos técnicos e superiores para formar profissionais de cozinha. Hoje temos tal formação em três níveis. O curso básico continua a existir sem grandes mudanças em sua estrutura. Mas agora há um curso técnico de cozinha e um curso superior de gastronomia. Em hotéis e restaurantes estão ingressando profissionais formados nestes três níveis, quase todos na mesma ocupação, auxiliar de cozinha. Essa tendência de contratação no nível básico da ocupação para todos os candidatos, não importando seus certificados e diplomas escolares, sinaliza certa falta de congruência entre formação escolar e carreira.[12]
Ainda é cedo para apresentar conclusões sobre o suposto rebaixamento ocupacional dos graduados em gastronomia. O que se observa incialmente é que os tecnólogos em gastronomia não dominam técnicas básicas de cozinha que possam assegurar resultados aceitáveis em termos de produção. Eles terão que aprender tais técnicas em serviço. E é bastante provável que alunos provenientes de cursos básicos dominem tais técnicas ao ingressarem no mercado de trabalho. Antes da existência dos cursos superiores na área de cozinha, um aluno formado no curso básico aparentemente tinha maiores chances de carreira, aspirando inclusive a vir a ser chef de cozinha depois de alguns anos de serviço. Hoje as chances de ascensão profissional de quem não fez o curso superior diminuíram. E, seguindo roteiros já existentes em outras áreas profissionais, ela até pode vir a ser bloqueada legalmente. O uso da escolaridade como forma de articular relações de poder no universo ocupacional já foi observada por Noble (1977) ao analisar o desenvolvimento dos vários ramos de engenharia no século XIX:
Os criadores da profissão [engenharia mecânica] promoveram a distinção entre “engenheiros mecânicos” e o “mecânico”, menos com base na posse de conhecimento técnico que no exercício de autoridade supervisora significativa. […] Como resultado, um novo tipo de profissionalismo emergiu, enfatizando as credenciais acadêmicas, e a promoção formal, dentro das hierarquias corporativas, na direção da administração. (p. 37)
No rumo apontado por Noble, os novos profissionais não precisam ser capazes de operar no nível da execução. Eles, na verdade não dominam as tecnologias da profissão para a qual formalmente foram capacitados. O objetivo de sua formação é outro, é a gestão. Quando isso acontece, as classes médias descobrem um destino ocupacional em área que até então interessava apenas aos trabalhadores de origem operária. Este parece ser o caso atualmente de cursos na área de cozinha. O fenômeno, porém, não se restringe a uma ou outra área ocupacional, ele vai se desdobrando na medida em que interesses de classe sinalizam que o exercício do poder no interior do trabalho pode ser baseado em diferenças referendadas por níveis de escolaridade.
O caso da área de cozinha sugere que as classificações de capacitação para o trabalho em níveis progressivos correspondem muito mais a formalidades escolares do que a progressão de níveis dos saberes do trabalho. Ou seja, nem sempre fica muito claro que os saberes necessários na qualificação profissional sejam de nível inferior aos saberes desenvolvidos em cursos técnicos ou tecnológicos. É possível que as diferenças de níveis correspondam muito mais a hierarquias de poder do que a níveis de conhecimento. Nesse sentido, quando se analisa verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica, é preciso considerar determinações sociais e econômicas que resultam em definição de perfis ocupacionais.
Um aspecto que merece registro quanto ao curso básico de cozinheiro é a mudança ocorrida no perfil dos alunos que nele ingressam. Nos primeiros anos de existência do curso, os alunos eram recrutados nas periferias urbanas ou entre egressos da Fundação do Bem Estar do Menor (a FEBEM). Eram pessoas extremamente pobres e com uma escolaridade muito baixa; por essa razão, exigiam-se apenas três anos de escolaridade dos candidatos, sem olhar para tal pré-requisito com muito rigor. Hoje os alunos do mesmo curso têm pelo menos o ensino médio e pertencem, quase sempre, a quadros de classe média. Com isso, atualmente pessoas de origem proletária dificilmente têm possibilidades de ingressar no curso. Hoje o curso é básico apenas no papel, pessoas mais pobres e sem grau escolar de nível médio praticamente não têm chance de ingresso. O curso, na verdade, é agora uma formação pós-secundária. Por outro lado, é provável que cursos com menor teor de exigência do que o cozinheiro básico estejam sendo oferecidos por organizações sociais para pessoas das camadas mais baixas da população, com certo grau de precariedade. É provável ainda que tais cursos mais precários guardem relação com os “peões de cozinha”. Os desdobramentos de propostas de formação profissional na área de cozinha parecem explicar um movimento que precisa ser examinado neste estudo: os cursos oferecidos por instituições tradicionais de EPT, não importa muito o nível escolar (qualificação, curso técnico ou curso tecnológico), caso a área passe a interessar pessoas de classe média, empurram para organizações sociais a educação profissional da parcela mais carente da população.[13]
O fenômeno observado no curso básico de cozinha não é certamente único. Também em outras áreas, antigos cursos básicos podem estar hoje funcionando na verdade como educação pós-secundária. O que acontece nesses casos é resultado da valorização de uma ocupação, despertando interesse de alunos de classe média que já concluíram o ensino básico. Nesse caso, a verticalização formal do ensino pode não favorecer inclusão. Pode, pelo contrário, provocar exclusão, afastando alunos mais pobres e com menor escolaridade de instituições tradicionais de educação profissional e tecnológica.
Os exemplos mostrados acima sugerem que fatores sociais como classe, renda familiar, expectativas de carreira, status da profissão desempenham papel relevante nos modos como se definem os cursos de educação profissional, incluindo-se o nível de ensino. Por essa razão, além de considerar a classificação da formação de trabalhadores na estrutura educacional, é preciso também considerar como um trabalho, dada sua maior ou menor complexidade, aparece na pirâmide ocupacional. Assim, as classificações que usam apenas referências escolares para determinar nível de uma ocupação podem ser enganosas. É comum, por exemplo, referir-se ao pedreiro como uma ocupação básica, pouco exigente em termos de formação, destituída de conteúdos significativos. Algo similar ocorre com o mecânico. No caso deste último, Matthew Crawford (2011) observa que e o profissional de uma oficina mecânica algumas vezes se confronta com problemas mais complexos que os enfrentados por doutores em trabalhos intelectuais.
As considerações até aqui desenvolvidas sugerem que há dificuldades para se definir com segurança o nível em que se situa dada profissão ou tipo de trabalho na pirâmide ocupacional. Considerando apenas a articulação entre ocupação e nível de escolaridade exigido ou esperado, a dificuldade desaparece artificialmente. Para determinar o nível de uma profissão basta se perguntar onde ela está colocada na estrutura de ensino. Considerando a educação escolar, as profissões podem ser básicas, médias e superiores. Há inclusive profissões que sequer entram no sistema de classificação, uma vez que as oportunidades de capacitação formal para elas acontecem no campo do ensino livre.
Uma decorrência das relações entre profissões e status social a elas atribuído é a marginalização de muitas ocupações do quadro de oferta de cursos das instituições de EPT. Estas, como regra geral, dedicam-se a profissões mais valorizadas, deixando para organizações sociais de benemerência a tarefa de oferecer cursos para ocupações de baixo status social. E as organizações sociais de benemerência geralmente não são instituições escolares, e seus quadros dirigentes não são constituídos por educadores. Além disso, os cursos em tais organizações são desenvolvidos de modo precário. São programas pobres para pobres.[14]
As observações até aqui registradas sugerem necessidade de que instituições tradicionais de EPT, com experiências de muitos anos em educação, não deixem de lado programas de capacitação profissional para ocupações pouco valorizadas socialmente. Essa talvez seja a principal razão porque a verticalização do ensino é necessária em EPT, pois historicamente, na medida em que se escolarizam, as instituições de educação profissional tendem a abandonar ensino voltado para ocupações que estão na base da pirâmide ocupacional. Essa tendência pode resultar em exclusão da parcela da população que busca capacitação ou atualização profissional mais imediata. Possivelmente será preciso olhar não apenas para o conteúdo de ensino de uma capacitação básica, mas também para o significado que a volta à escola tem para os trabalhadores.
As hierarquias ocupacionais não refletem apenas diferenças devidas a maior ou menor complexidade tecnológica, embora a crença predominante seja a de que as profissões mais exigentes do ponto de vista de conteúdos de saber são aquelas aprendidas em cursos superiores. Um dos motivos para tal crença é a ideia de que o conhecimento é necessariamente declarativo. Conhecimento e domínio de processos de execução não são vistos como saberes respeitáveis. Em diversas ocasiões esse modo de ver o saber emerge historicamente. Noble (1977) nota que as universidades tradicionais dos Estados Unidos impediam o ingresso de saberes tecnológicos em seus domínios. E a capacidade de realizar processos de execução, como tivemos oportunidade de registrar em encontro com educadores de nível superior, não é vista como uma necessidade na composição do repertório de saberes de profissionais com nível universitário (BARATO, 2017b). Na ocasião, uma coordenadora de curso superior de gastronomia, afirmou que seus alunos não precisavam dominar os fazeres da cozinha, deviam apenas ter um domínio de saberes teóricos que explicassem o fazer. Essa coordenadora explicitava em sua intervenção o entendimento de que o conhecimento proposicional é um saber superior ao conhecimento de processos, e que os estudantes de gastronomia tem como destino a gestão do trabalho na cozinha. De certa forma, entendimentos em tal direção degradam o saber técnico e o trabalhador que o domina.
Uma epistemologia que não considera o domínio do fazer como um saber com status próprio cria hierarquias ocupacionais que desvalorizam o fazer e o subordinam a saberes que, supostamente, o sustentam. Essa é uma questão que precisa ser mais investigada em termos das crenças dos educadores que trabalham com educação profissional e tecnológica. Assim, um estudo da verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica não pode restringir-se ao que já está formalmente definido na estrutura do ensino. Essa última pode ser reflexo de uma epistemologia equivocada, que reafirma a desvalorização do trabalho manual.
Há outra tendência que é necessário considerar aqui. Está generalizada a crença de que é preciso mais educação porque o trabalho está cada vez mais complexo. Ignora-se, no caso, todo o processo de simplificação do trabalho, tornando-o uma atividade monótona, repetitiva, pouco desafiadora. Atendentes de cadeias de fast food, por exemplo, não cozinham. Apenas finalizam um produto que já chega praticamente pronto ao restaurante. Eles repetem, na área de serviços, o que já acontecera na área industrial (DURAND, 1978). Eles executam operações padronizadas que não exigem qualquer perícia profissional. Situação parecida pode ser observada em maquiladoras onde os trabalhadores apenas montam componentes de equipamentos eletrônicos previamente fabricados, em operações muito simples que não exigem qualquer saber sobre processos de fabricação. [15] Mas, como em todos esses casos há muita tecnologia que substituiu o saber dos trabalhadores por sistemas, máquinas e/ou equipamentos, conclui-se erradamente que para o trabalhador comum o trabalho ficou mais complexo. Crawford (2011) comenta isso no campo a mecânica de automóveis, mostrando que o esvaziamento do conteúdo do trabalho, com introdução de sistemas fechados em vez de peças independentes, com diagnósticos de funcionamento dos veículos sendo feitos por sistemas computacionais, os profissionais da área são hoje apenas vendedores que pouco ou nada conhecem do funcionamento de carros e são incapazes de fazer qualquer reparo nos veículos. Uma das decorrências desse desenrolar da tecnologia no campo de automóveis, os profissionais não mais se interessam pelas máquinas, nem orientam os usuários. Esses vendedores que ocupam as antigas funções dos mecânicos talvez tenham mais escolaridade que estes últimos, mas sabem muito menos. Formalmente ocupam posição superior na hierarquia ocupacional. Na realidade exercem um trabalho muito esvaziado de conteúdos de saber.
Para encerrar esta seção é preciso resumir as direções que devem ser consideradas em análises da verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica tendo em vista o desenvolvimento histórico da mesma, assim como os múltiplos caminhos que trabalhadores trilham para aprender uma ocupação:
- A educação profissional começou com atividade instrucional não articulada com o sistema de ensino.
- Com o tempo, a educação profissional articulou-se com a escola convencional e começou a classificar suas atividades tendo como referência níveis de ensino.
- Na relação entre hierarquia ocupacional e níveis de ensino, as oportunidades de educação profissional acabam sendo classificadas como básicas, técnicas e tecnológicas, repercutindo entendimento de que os níveis mais elevados refletem necessidades de saberes mais complexos para exercício do trabalho.
- Interesses de classes e sociais podem estar na base de classificações escolares de dos cursos voltados para capacitação profissional.
- Muitas formações que surgem como ensino livre e com o tempo podem evoluir para cursos técnicos e até superiores.
- Instituições de educação profissional e tecnológica tendem a excluir a formação básica de suas ofertas de cursos.
- O ensino livre, oferecido por organizações sociais desvinculadas da estrutura educacional, acaba oferecendo de modo precário cursos para as camadas mais pobres da população.
Verticalização e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia
A ideia de verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica ganhou destaque com a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Os Institutos são um desdobramento da política de educação profissional inaugurada no país em 1909. Assim como organizações parecidas em diversos outros países, os Institutos refletem uma constante escolarização d EPT, com tendência inclusive para se tornarem instituições acadêmicas.[16] Convém aqui examinar mais de perto a proposta de verticalização do ensino nos Institutos Federais. Para tanto, iremos analisar como o Ministério da Educação descreveu a verticalização no momento de criação dos Institutos.
Em 2008, a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC) do Ministério da Educação (BRASIL, 2008) publicou documento que sintetizava os objetivos dos recém-criados Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Entre tais objetivos, a SETEC enfatizava o da verticalização assim conceituada:
Os Institutos Federais validam a verticalização do ensino na medida em que balizam suas políticas de atuação pela oferta de diferentes níveis e modalidades de educação profissional e tecnológica, tomando para si a responsabilidade de possibilidades diversas de escolarização como forma de efetivar o seu compromisso com todos.
- Como princípio em sua proposta político-pedagógica, os Institutos Federais deverão ofertar educação básica, principalmente em cursos de ensino médio integrado à educação profissional de nível médio; cursos superiores de tecnologia, licenciatura e bacharelato em áreas em que a ciência e a tecnologia são componentes determinantes, em particular as engenharias, bem como programas de pós-graduação lato e stricto sensu, sem deixar de assegurar a formação inicial e continuada do trabalhador e dos futuros trabalhadores. (BRASIL, 2008, p. 27)
No trecho acima citado, há aspectos que merecem destaque. Segue análise sintética de cada um deles.
Inclusão social. Em diversas partes do documento, a inclusão social aparece como um fim que precisa sempre estar presente em planos educacionais. Já na Apresentação destaca-se a intenção de concretizar “busca de um Brasil mais justo” na atuação dos Institutos Federais. Essa intenção reaparece no trecho acima citado por meio da declaração de que se pretende efetivar “compromisso com todos”. Isto sugeriu que neste estudo se examinasse a questão da inclusão, relacionando-a com oportunidades de trabalho e educação. É preciso também examinar a face negativa da questão, formas e motivos da exclusão, assim como as dificuldades de acesso a oportunidades de trabalho que os jovens das camadas mais pobres da população enfrentam. Um aspecto importante da inclusão é o acesso a oportunidades de educação e de capacitação profissional. Possivelmente, considerações sobre formas de acesso, assim como de barreiras que impedem as pessoas mais pobres de se beneficiarem de oportunidades educacionais, podem enriquecer bastante a compreensão de propostas de verticalização de ensino. O “compromisso com todos” deve ser qualificado tendo em vista as diferenças que levam à exclusão. Entre essas diferenças estão a pobreza, a passagem por um educação básica precária, o domínio insuficiente dos códigos de comunicação linguística, situações frequentes de desemprego ou de trabalho precário, dificuldades de acesso a ofertas de educação profissional de qualidade. Resta saber se no cotidiano os Institutos olham para isso e consideram como podem garantir a inclusão dos alunos que mais precisam de capacitação profissional imediata.
Ênfase em escolarização. O principal metro de avaliação do trabalho educacional utilizado pelo documento é o de sistema escolar. Há no texto uma flexão que privilegia a tradição escolar e ignora modelos educacionais desenvolvidos no interior do trabalho. Como se lê no trecho citado, os Institutos tomam para si “a responsabilidade de possibilidades diversas de escolarização”. Esse acento escolarizante precisa ser examinado e merecerá análise mais detalhadas neste estudo. Os Institutos, assim como outras instituições de EPT, com o tempo, organizaram suas atividades tendo como referência uma pedagogia elaborada a partir da escola. Nessa direção, a pedagogia nascida no interior do trabalho perdeu relevância. Reflexos disso podem ser encontrados nas formas de organizar o ensino, nos recursos materiais colocados à disposição dos alunos, etc. Cumpre observar que o pressuposto de que a escolarização é um avanço em atividades de capacitação para o trabalho não costuma ser contestado. Ele é aceito tacitamente sem discussões. Desdobramentos disso podem ser observados no campo metodológico (GAMBLE, 2008). Muitos planos de educação profissional organizam o ensino de acordo com pedagogias inovadoras que, segundo quem as propõe, superam a pedagogia intuitiva das relações de mestre e aprendiz das corporações de ofício.[17] Não se percebe no caso que as pedagogias inovadoras, a de projetos, por exemplo, foram buscar em aprendizagens não reguladas, sobretudo aquelas que acontecem no interior do trabalho, inspiração. Neste sentido soam bastante estranhas recomendações para que se adote pedagogia de projetos em oficinas onde até então os alunos aprendiam engajando-se na produção de obras. Diferenças profundas entre saberes elaborados proposicionalmente para explicar conceitos e princípios (modo predominante de elaborar ciência) e saberes tácitos relacionados com a execução não são consideradas; ou o saber de processos, característico do saber-fazer, é rebaixado a simples execução de um tecnologia que dele se serviu em sua elaboração. Em instituições escolarizadas, o saber do trabalho acaba sendo considerado como um conhecimento que deve se subordinar à teorias. E, por essa razão, em hierarquias ocupacionais passa a ser considerado como atividade inferior. Em outras palavras, com a escolarização corre-se o risco de rebaixar o saber mais enraizado em atividades de trabalho, numa verticalização que adota essa subordinação.
Ênfase no ensino médio. No documento, a forma preferencial de educação profissional é a de um ensino médio integrado com a educação profissional. Não há no texto declarações explícitas de que a ocasião mais adequada de capacitação profissional é a adolescência, quando jovens completam sua educação básica por meio do ensino médio. Mas, implicitamente é o que se propõe. Esse é um entendimento que merece análise, considerando tendências demográficas, expectativas da população quanto ao papel do ensino médio, desemprego dos jovens. O documento não sugere possibilidades de formação profissional pós-média não universitária, uma tendência internacional que cresce no Brasil por meio de cursos médios subsequentes, além de mudanças em perfis da escolarização da clientela de muitos cursos básicos como os de cozinha, marcenaria, soldagem etc. Oferta de cursos técnicos subsequentes não é certamente prioridade dos IF’s. Ela existe nas instituições, mas é quase que um acréscimo ao portfólio de cursos oferecidos. Este é um aspecto que exige mais investigação, uma vez que o interesse institucional é por educação integrada. Os cursos subsequentes sugerem que é possível uma formação cidadã sem incluir necessariamente conteúdos de educação geral no currículo. Aprender a fazer um trabalho bem feito parece ser um caminho interessante na formação de jovens e adultos que já concluíram o ensino médio. Essa observação não vale apenas para os cursos técnicos subsequentes, ele vale também par muitos cursos básico de qualificação profissional, uma vez que a clientela que os procura quase sempre tem ensino médio completo. Assim, algumas qualificações profissionais estão funcionando na prática como cursos pós-secundários quando se considera a história escolar dos alunos. A ênfase no ensino médio integrado precisa ser confrontada com as demandas de educação profissional e estas não se resumem a ocupações contempladas no catálogo de cursos técnicos. O documento, aparentemente, adota um entendimento de que a verticalização do ensino em EPT deve ocorrer tendo como base o ensino regular que se define por oportunidades de educação em faixas próprias para cada nível de ensino. Mas, as histórias de vida dos trabalhadores não acontecessem de acordo com as faixas etárias consideradas como adequadas para cada nível de ensino pelas escolas. É preciso mais analisar a questão e levantar dados que mostrem como as instituições consideram possibilidades educacionais que não se prendam a faixas etárias.
Ausência do trabalho como referência explícita de organização e estruturação do ensino. Ao justificar a oferta de cursos superiores pelos Institutos, o trecho citado reitera a convicção de que a educação profissional deve ser organizada tendo em vista a ciência e a tecnologia. O texto ressalta que os cursos superiores estarão voltados para “áreas em que que a ciência e a tecnologia são componentes determinantes, em particular as engenharias”.[18] Parece que há no caso entendimento de que o trabalho se subordina à ciência e à tecnologia. Pressupostos de que ciência e tecnologia precedem e são as bases do trabalho podem ter um viés que justifica relações de poder na pirâmide ocupacional, eliminação de saberes elaborados em oficinas por meio de uma “arte” que dá origem a tecnologias (cf. NOBLE.1977; CRAWFORD, 2011; BARATO, 2015, GAMBLE, 2007; MJELDE, 2016). O mesmo viés tem consequências na capacitação de trabalhadores em todos os níveis. E uma dessas consequências é a de um ensino de ciências que acaba convencendo os trabalhadores de que ciência é um conhecimento arcano ao qual eles não têm acesso por falta de inteligência (GORZ, 1979). Há relações lógicas que podem ser examinadas em termos de articulações entre ciência e trabalho. Mas, conhecer essas relações não implica necessariamente em facilitação da aprendizagem do fazer. A fórmula constantemente usada de que os alunos precisam aprender bases científicas e tecnológicas apontam para uma solução acadêmica em organização de currículos de educação profissional e tecnológica.
Secundarização da educação profissional básica. No final do texto, lê-se: “sem deixar de assegurar a formação inicial e continuada do trabalhador e dos futuros trabalhadores”. A educação profissional básica é um adendo. Uma das conclusões que decorre desse modo de ver a educação profissional básica é a de que esta última será tratada como um apêndice a ofertas de educação nos Institutos. Ela, por outro lado, parece indicar que a formação básica tem pouca importância. Esse entendimento situa a educação profissional básica de modo desfavorável em estruturas de verticalização. Provavelmente tal visão resulta do movimento de escolarização que é comum na história das instituições de formação profissional. Como não se encaixa bem nas categorias de níveis escolares, a educação profissional básica acaba sendo vista como um adendo às atividades de ensino das organizações. Para trabalhadores não qualificados, ou desempregados, ou com uma educação básica comprometida, ou que precisam de rápida atualização, ou que desejam aprender uma nova ocupação a principal saída é acesso imediato a oportunidades de capacitação profissional de boa qualidade. Exemplo nessa direção foi encontrado quando se acompanhou a formação de soldadores num importante centro de construção naval e exploração petrolífera (BARATO, 2015). Os alunos dos cursos acompanhados eram jovens com idade média de vinte e quatro anos que desejavam ingressar nas indústrias da área como soldadores. Muitos desses jovens eram trabalhadores de escritório que buscavam melhores condições de trabalho e melhor remuneração salarial. Quase todos os alunos já tinham concluído o ensino médio. É possível em cursos de até trezentas horas capacitar trabalhadores que terão boas chances de incorporação a um setor produtivo em crescimento como era o naval na ocasião. Esses cursos são básicos e garantem domínio de duas das técnicas mais utilizadas em soldagem e podem oportunizar ingresso imediato no mercado de trabalho. O que mais importa numa solução como essa não é encontrar um nicho educacional adequado para cursos de qualificação. O que mais importa no caso é encontrar formas de atender a uma população que busca capacitação profissional e melhores oportunidades de ganhar a vida por meio do trabalho. Em outras palavras, o que importa são as necessidades dos trabalhadores e de candidatos a empregos.
Ausência da arte como componente importante do trabalho. Em trecho já comentado, sugere-se que os fundamentos determinantes do trabalho são ciência e tecnologia. Essa é uma leitura do saber do trabalho que afasta do cenário a arte. É preciso destacar aqui o sentido de arte no campo do trabalho. Historicamente, corporações de ofício designavam suas atividades como arte (RUGIU, 19930. Esse entendimento coincide com perspectivas epistemológicas que dão lugar de destaque à experiência e a atividade como componentes importantes de saber. O que está em jogo aqui é a aprendizagem em oficina, a aprendizagem que se funda nas relações de mestre e aprendiz. Ou, para colocar a questão em outros termos: historicamente o trabalho se constrói com base em experiências dos trabalhadores; e essas experiências resultam de saberes compartilhados por meio do fazer; do ponto de vista epistemológico o saber de processos é sempre compartilhado por meio da realização de obras que trazem satisfação para o trabalhador individual e para o grupo ao qual ele pertence (a comunidade de prática, entendida sempre como prática social); a experiência, como expressão vivencial, é a base de todo o saber e vista como uma realização transformadora que os trabalhadores das corporações de artífices chamavam de arte; esta arte relacionada com a experiência perde lugar para um conhecimento que se organiza como saber proposicional ou científico; acontece, porém, que o entendimento do trabalho como arte não desapareceu.
Outro trecho do documento da SETEC (BRASIL, 2008) que convém destacar é o que segue:
Os Institutos Federais de Educação e Tecnologia, sem ignorar o cenário da produção, tendo o trabalho como seu elemento constituinte, propõem uma educação em que o domínio intelectual da tecnologia, a partir da cultura, se firma. Isto significa dizer que as propostas de formação estariam contemplando os fundamentos, princípios científicos e linguagens das diversas tecnologias que caracterizam o processo de trabalho contemporâneo, considerados em sua historicidade.
Entende-se que essa formação do trabalhador seja capaz de tornar esse cidadão um agente político, para compreender a realidade e ser capaz de ultrapassar os obstáculos que ela apresenta; de pensar e agir na perspectiva de possibilitar transformações políticas, econômicas e sociais imprescindíveis para a construção de outro mundo possível. A referência fundamental para a educação profissional e tecnológica é o homem, daí compreender-se que a educação profissional e tecnológica se dá no decorrer da vida humana, por meio de experiências e conhecimentos, ao longo das relações sociais produtivas. A educação para o trabalho nessa perspectiva se entende como potencializadora do ser humano, enquanto integralidade, no desenvolvimento de sua capacidade de gerar conhecimentos a partir de uma prática interativa com a realidade, na perspectiva de sua emancipação. Na extensão desse preceito, trata-se de uma educação voltada para a construção de uma sociedade mais democrática, inclusiva e equilibrada social e ambientalmente. (p. 34)
O trecho citado propõe direções que precisam ser mais analisadas. Ele acentua uma formação intelectualista, centrada em ciência e tecnologia, sugerindo caminhos de ensino e aprendizagem que não olham para o saber do fazer. Nesse sentido, fica ausente do horizonte uma epistemologia que tem a atividade como fundamento e referência. Por ouro lado, no mesmo trecho, reconhece-se que a formação do trabalhador extrapola a escolarização e acontece “ao longo das relações sociais produtivas”.
Na complementação do trecho citado lê-se:
Com essa dimensão, seria equivocado e reducionista, pois, imaginar que a necessidade da formação para ocupar postos de trabalho seja a razão exclusiva e definidora para a educação profissional. (p. 34)
Esse complemento funciona como crítica a abordagens de educação profissional que olham com mais atenção para o imediato. Há, em todo o texto citado, contradições ou oposições que favorecem uma educação profissional intelectualista e pouco sintonizada com o trabalho imediato que os alunos encontrarão em sua vida profissional.
Uma das perguntas preliminares sobre as relações entre trabalho e educação é a de que ocupações podem demandar capacitação prévia. O ingresso no mundo do trabalho poucas vezes é precedido por frequência a oportunidades educacionais que preparem o trabalhador para uma dada ocupação. Trabalhadores e seus filhos muitas vezes sabem que em empresas nas quais o trabalho foi simplificado e dividido não é preciso formação específica para obtenção de um emprego. Essa situação é objeto de um estudo clássico sobre as relações entre jovens das classes trabalhadoras, a escola e expectativas de emprego (WILLIS, 1991 ). Em tal estudo, Willis mostra que o trabalho abstrato (o trabalho do qual se esvaziou o conteúdo, assim como necessidades de saberes dos trabalhadores para exercê-lo) faz com que as diversas funções sejam intercambiáveis. Para exercê-las, basta ao trabalhador um nível mínimo de educação geral e o domínio de saberes que são patrimônio comum da própria classe trabalhadora. Essa é uma explicação que se sustenta quando os sujeitos acompanhados, como aconteceu no caso do estudo citado, pertencem a estratos da classe trabalhadora com história e tradição vinculada a fábricas, e com uma cultura operária construída por sucessivas gerações de trabalhadores. Cabe notar que a educação geral não é razão suficiente para a formação de trabalhadores capazes de perceber que podem exercer ocupações no âmbito do trabalho abstrato. Para jovens que não pertencem à classe trabalhadora como aquela a qual pertenciam os jovens acompanhados por Willis, a prontidão para o trabalho abstrato não se efetivará. Esses jovens ficarão marginalizados e engrossarão as cifras do desemprego. Talvez no caso destes últimos caiba alguma educação que possa prepara-los para o trabalho. A pergunta que fica é: qual o tipo de educação que é necessário neste caso? A resposta de Don Lorenzo Milani, por exemplo, foi o de uma educação muito rigorosa em termos de exigências de estudo para os alunos, pois estes tinham que superar um imenso fosso cultural que os separava dos alunos que os estudantes de Barbiana (RAPAZES DE BARBIANA, 1994) chamavam de “filhos de papais”. Mas, parece que há outros caminhos. Mike Rose (2015), em estudo sobre jovens e jovens adultos que voltam à escola, sugere que qualquer programa educacional oferecido, desde que de qualidade, pode ser uma saída interessante. Nessa direção, educação geral ou educação profissional stricto sensu poderá apoiar alunos das classes populares em sua busca de melhores condições de vida e de trabalho.
Antes de examinar atividades de capacitação para o trabalho, num e noutro caso, convém considerar, mesmo que sumariamente, o papel da educação geral na preparação para atividades produtivas. Na situação estudada por Willis e no caso de jovens de camadas marginais da sociedade é preciso rever a compreensão das relações entre educação geral e trabalho. O pensamento hegemônico, tanto o revelado por opiniões de economistas como o expresso por meios de comunicação de massa, simplifica a questão, sugere uma associação mecânica entre educação escolar e sucesso na obtenção de emprego, assegura que é preciso mais e mais educação para que o país alcance maior produtividade. Não há em tais propostas qualquer entendimento de que a cultura operária desempenha papel importante na preparação de jovens para o mercado de trabalho, sobretudo aquele mais moderno. Esses mesmos jovens, como mostra o estudo de Willis, oferecem grande resistência a valores promovidos pela educação escolar. Tais propostas também não incluem em suas considerações as limitações que condições de extrema pobreza impõem a resultados da aprendizagem escolar. Embora cheguem a terminar estudos no nível do ensino básico, muitos jovens das periferias urbanas não conseguem se integrar ao mercado de trabalho, pois as escolas durante sua formação não estiveram atentas para as necessidades que eles tinham para poderem desenvolver saberes dominados por filhos de operários ou de classes médias. Assim, mesmo que não tenham fracassado nas escolas, esses jovens fracassarão em suas buscas por emprego. Por outro lado é preciso considerar que, por um processo de acomodação, o sistema escolar oferece uma educação facilitária, permitindo que os alunos obtenham certificados e diplomas sem dominarem de modo competente os conteúdos que se espera aprendidos no ensino básico.
Um dos cuidados que as escolas não tomam é o de considerar o imenso fosso que separa os alunos menos favorecidos da cultura letrada que caracteriza o saber escolar. Como observa Hoffman (2007), ao examinar as propostas educacionais de Don Lorenzo Milani para filhos de trabalhadores e camponeses que fracassavam no sistema escolar, é preciso oferecer condições para que alunos com tal origem alcancem padrões de desempenho iguais ou melhores que os de filhos das classes abastadas que, nas escolas, veem reelaborado um saber que já trazem de casa. Pobreza e condições de vida de crianças e jovens das periferias geram uma cultura muito distante daquilo que a escola valoriza. Essa cultura, por sua vez, é um obstáculo para que os jovens se integrem a uma força de trabalho que precisa dominar saberes que não são valorizados em sua cultura de origem.
As dificuldades que jovens das camadas mais pobres da população enfrentam para ingressar no mundo de trabalho em ocupações com níveis de remuneração satisfatórios e em empresas que assegurem acesso, mesmo que limitado, a benefícios sociais colocam desafios que precisam ser considerados. Um desses desafios é o de avaliar até que ponto a pobreza interfere na educação das pessoas, mesmos que estas continuem formalmente avançar em seus estudos escolares.
Um desdobramento da educação precária oferecida para os pobres no ensino fundamental é a continuidade de estudos em cursos técnicos que não exigem aprendizagens em oficinas e laboratórios, resumindo-se a atividades em salas de aula. A aparente oferta de oportunidade de estudos no caso é apenas continuação de uma educação que não garantirá acesso a trabalho exigente e compensador. Neste caso, a aparente verticalização do ensino não garantirá a inclusão social com a qual se sonha.
O fracasso escolar dos jovens mais pobres, mesmo que estes tenham conseguido obter diplomas de conclusão do ensino básico, pode exigir medidas de educação compensatória. Medidas para sanar dificuldades no campo da leitura e da escrita, assim como no campo de saberes matemáticos, são as mais comuns neste sentido.
Alvo do Estudo
Análises e comentários até aqui efetivados sugerem que as propostas de verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica não dão destaque a modalidades de capacitação profissional da pirâmide ocupacional. E, como já observamos atrás, esta é uma circunstância que precisa ser analisada.
As investigações sugeridas por nossa análise preliminar da verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica sugerem um grande leque de temas que merecem investigação. Não foi possível, neste estudo, analisar todos os aspectos que devem ser considerados. Mas, como apontamos diversas vezes, o foco principal deste estudo deverá ser a questão da inclusão/exclusão social e educacional decorrente de como as instituições de educação profissional e tecnológica organizam sua s ofertas educacionais. Considerado este objetivo mais amplo, este estudo procurou:
- Verificar possível preferência pelo ensino acadêmico entre os educadores dos IF’s [e dos educadores do sistema S nos centros de educação superior das instituições].
- Analisar casos de educação pós-secundária, mesmo que não explicitada por quem a desenvolve, em cursos técnicos e básicos.
- Verificar possíveis tendências de abandono de programas de formação profissional básica por parte das instituições tradicionais de educação profissional e tecnológica.
- Examinar possíveis discrepâncias entre de níveis de formação profissional, as estruturas de trabalho e os sistemas educacionais.
- Verificar se há discrepâncias significativas entre o ensino oferecido por instituições tradicionais de EPT e organizações que oferecem oportunidades de ensino livre.
- Comparar verticalização da educação profissional e tecnológica entre instituições nacionais e instituições de outros países.
- Apontar possíveis inconsistências nas propostas de verticalização do ensino em EPT, considerando princípios de inclusão social e educacional.
- Sugerir medidas que possam aperfeiçoar propostas de verticalização da educação profissional e tecnológica nas instituições voltadas para a capacitação de trabalhadores.
Metodologia
Este estudo foi planejado para examinar a verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica nas instituições que tradicionalmente se dedicam à capacitação profissional. Mas, ao mesmo tempo, ele não deixou de verificar como se dá a capacitação profissional de trabalhadores em outras instâncias formativas, sobretudo aquelas que são conhecidas como agências de ensino livre. Complementarmente, foram examinadas práticas de ensino verticalizado em instituições de outros países, nomeadamente community colleges e colleges.
Levantamentos iniciais sobre verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica indicam que não é adequado olhar apenas para a educação formal em instituições tradicionais de EPT. Parece que nessas instituições predomina um viés que gera exclusão de estudantes que já foram penalizados com um ensino de pouca qualidade, necessidades de engajamento precoce no mercado de trabalho. Há um número expressivo de agências de ensino livre, coordenadas por ONG’s ou constituídas por pequenos empreendimentos privados, que oferecem capacitação profissional para alunos, sobretudo adultos, que não integram as prioridades das instituições profissionais. Eventualmente um ou outro curso livre similar ao oferecido por tais agências acontece em instituições tradicionais. Mas, isso é exceção. Há no movimento de repassar para agências sociais e instituições privadas a formação profissional básica um traço de exclusão que precisa ser investigado
Para os fins pretendidos foram utilizadas diversas estratégias para recolher dados, registrar experiências significativas, verificar como se estruturam ofertas verticalizadas nas instituições de EPT. Segue indicação de como as observações foram instrumentadas.
Observação de situações de ensino para caracterizar como a educação profissional e tecnológica é conduzida concretamente em salas de aula, oficinas e laboratórios foram realizadas em várias instituições e escolas. Essas observações foram conduzidas de modo participativo, enfatizando registros de como as atividades são desenvolvidas, com o complemento de entrevistas junto a alunos e docentes. O que se quis com tal abordagem foi obter uma descrição de como os eventos de educação profissional e tecnológica se desenvolvem, com atenção especial para eventos críticos que possam mostrar aspectos relevantes das transações do saber do trabalho. Essa abordagem já foi utilizada em duas investigações anteriores sobre educação profissional e tecnológica e mostrou-se bastante efetiva (BARATO, 2015 e BARATO, 2017). Para o presente estudo mudou-se apenas o foco. As observações foram efetivas para verificar se e como as atividades de ensino-aprendizagem sugerem diferenças significativas nas maneiras pelas quais os alunos são vistos pelos educadores e pelas instituições formadoras. Nesse sentido, foram comparadas narrativas de observações em três diferentes níveis de educação: básico, médio e superior.
Entrevistas semiestruturadas com educadores (dirigentes, coordenadores, docentes) foram conduzidas numa pequena amostra intencional nas instituições que abriram portas para a investigação. Tais entrevistas aconteceram com o objetivo de determinar como educadores das instituições percebem relações entre educação e trabalho.
No caso das instituições internacionais, estudas aqui, a abordagem aconteceu por meio de levantamento dos tipos de oferta de capacitação profissional que elas fazem, reparando se tal oferta tem traços que revelam verticalização do ensino.
A verticalização do ensino em ETP tem relações estreitas com medidas de inclusão social e educacional. Procurou-se, portanto verificar como educadores aceitam tal direção na estrutura de oferta de cursos de capacitação profissional. Entrevistas ou outros formatos de investigação direta de opinião podem não captar quais as reais atitudes dos investigados com relação a medidas de inclusão social e educacional. Por essa razão, procurou-se colher depoimentos espontâneos dos educadores para verificar como entendem a questão.
Competências e educação profissional
No mundo do trabalho, as ocupações têm posições relativas que permitem situa-las numa estrutura piramidal. Há trabalhos bastante simples na base de tal pirâmide. Há trabalhos muito complexos no ápice da pirâmide; e há trabalhos de complexidade intermediária entre os dois extremos. No geral, todos os níveis ocupacionais exigem aprendizagem do trabalho. Isso pode ser feito no e pelo próprio trabalho, como pode ocorrer em capacitações profissionais por meio de educação e treinamento.
Os sistemas educacionais, implícita ou explicitamente, definem níveis de educação tendo em vista a pirâmide ocupacional. Isso fica bastante claro com relação aos níveis intermediários e superiores. Mas não há muita clareza quanto às ocupações situadas na base da pirâmide. Elas costumam integrar uma área cinzenta exemplificada pela categoria ensino livre nos termos definidos por Vitor Paro (1981). Para as ocupações básicas a articulação com o sistema educacional é problemática.
É preciso reparar que a relação entre hierarquia ocupacional e níveis de ensino não é função exclusiva de conhecimentos e complexidade do trabalho. Fatores econômicos e sociais também entram no jogo. Assim, capacitações profissionais exigentes e demoradas, se referidas a profissões de pouco prestígio social, podem ser classificadas como básicas e exigindo nível fundamental de educação. Por outro lado, profissões menos exigentes em termos de conhecimento e complexidade do trabalho podem demandar legalmente nível de ensino universitário.
Ao estudar instituições de educação profissional e tecnológica no Reino Unido, verificamos que o país desenvolveu um sistema de classificação ocupacional que vale a pena considerar. No que segue, apresentamos uma síntese informativa sobre esse sistema britânico.
O Reino Unido passou, desde os anos de 1970, por grandes mudanças na organização de seus sistemas de educação profissional e tecnológica. E o principal motivo para tais mudanças foi a constatação do relativo atraso da produção industrial do país quando comparada com a produção dos países do continente europeu, mais particularmente da França e da Alemanha. Tecnologia ultrapassada, má organização das empresas e ausência de investimentos foram motivos inicialmente considerados. Mas, por volta de 1976, a explicação preferida passou a ser a educacional. Isso, segundo Trevisan (2001), era conveniente para aliviar a culpa dos setores empresariais e financeiros:
Todo processo de declínio é sempre acompanhado por procura de justificativa convincente que exima de responsabilidade os principais agentes econômicos envolvidos. Nas duas últimas décadas o “caso inglês”, por exemplo, tem sido emblemático dessa “procura”: o governo, empresários e até mesmo os sindicatos têm evitado acusações mútuas e buscado outros enfoques para explicar a perda de presença econômica do Reino Unido na ordem internacional. […] No início de 1970 o governo trabalhista Callaghan, depois de ensaiar uma “responsabilidade sindical” para o declínio britânico (politicamente insustentável para o governo trabalhista na época), percebera que uma “explicação educacional” possuía todas as condições para oferecer a mais suportável justificativa para o dramático declínio do desenvolvimento industrial do Reino Unido. O declínio econômico inglês estaria justificado pelo fracasso do sistema educacional, que gerava má qualificação de mão de obra, provocando portanto baixos índices de produtividade. (p. 191-192)
As medidas que o governo britânico foi ensaiando desde os anos de 1970 tinham por alvo melhorar a capacitação dos trabalhadores por meio de iniciativas que rompessem com as práticas anteriores, favorecendo e incentivando participação mais ativa das empresas no jogo. Surgiu então, no começo dos anos de 1980, proposta que recebeu o nome de NVQ (National Vocation Qualifications) para descrever competências desejáveis em quase todas as ocupações, para avaliar a força de trabalho britânica, e para credenciar trabalhadores por meio de exames nacionais de competências. Os NVQs não tinham como meta orientar a educação profissional e tecnológica de acordo com uma pedagogia das competências. Autores favoráveis ao sistema (JESSUP, 1991) insistem na ideia de que a educação deve ser organizada de acordo com indicações de aprendizagem, não de acordo com as competências porque essas são apenas indicadores do repertório desejável de saberes e habilidades dos trabalhadores em cada ocupação, não referência para decisões metodológicas. Mas, como o sistema das NVQs certifica a qualidade dos saberes e habilidades dos trabalhadores, com o tempo surgiram iniciativas cujo objetivo era o de treinar os candidatos para os testes estabelecidos para cada ocupação que é objeto de reconhecimento público por meio de exames nacionais.
Antes de examinar a educação profissional e tecnológica que se faz no Reino Unido, convém oferecer um quadro geral da vinculação da capacitação profissional ao conceito de competências. Para tanto, pode-se recorrer a uma obra fundamental sobre o tema (JESSUP, 1991), cujo autor foi por muitos anos Director of Research, Development and Information do Nacional Council for Vocational Qualifications. Para não deixar o texto muito pesado, com sucessivas referências da citada obra, as menções que aparecerem no que segue serão todas do livro de Gilbert Jessup, ressalvadas referências a outros autores que serão oportunamente indicadas.
Na justificativa que faz para sugerir mudanças profundas na educação britânica, o autor acentua uma visão economicista sobre o papel das escolas e repercute entendimento similar ao que Trevisan identifica nas reformas britânicas da educação vinculada ao trabalho:
A educação presente e passada e as práticas de treinamento têm sido muito ineficientes. As crianças gastam um tempo enorme em escolas, quase sempre aprendendo pouco e devagar. Isso não tem graça. Como sabemos, há um número significativo de alunos que não termina o ensino obrigatório, e não adquire sequer habilidades básicas para trabalhos que exigem pouca ou nenhuma qualificação. Os objetivos mais altos buscados por professores, tais como desenvolvimento de interesses culturais e artísticos, não são efetivamente concretizados para a maioria dos jovens. (p. 5)
Jessup afirma que a necessidade emergente do país na época era contar com trabalhadores mais competentes, responsáveis e autônomos. O autor diz que o que se esperava da educação e do treinamento era uma educação que preparasse as pessoas para uma sociedade mais dinâmica no século XXI.
Nas críticas feitas à formação dos trabalhadores britânicos, o autor acentua dois aspectos: ausência de flexibilidade e falta de autonomia. Na comparação com os profissionais do continente europeu, os trabalhadores do Reino Unido são vistos como incapazes de se adaptarem rapidamente a um trabalho mutante exigido pelas novas tecnologias. Eles também são caracterizados como incapazes de desenvolver atividades de trabalho sem supervisão.
A partir da crítica feita à qualidade de sua mão de obra, o país não optou por uma reforma imediata do sistema educacional, embora nele visse defeitos de uma educação que não preparava bem as pessoas para o mercado de trabalho. Resolveu-se investir num sistema que apontasse de modo objetivo o que se esperava dos trabalhadores em cada profissão ou ocupação. Para tanto foi criado o sistema NVQ (National Vocational Qualifications) com o objetivo de definir competências esperadas dos trabalhadores em todas as atividades econômicas.
O sistema NVQ tem várias finalidades. Ele tenta deixar claras quais são nacionalmente as expectativas das empresas quanto à mão de obra que empregam. Por essa razão, a definição de competências é elaborada por coletivos que representam áreas de negócios em todo o país. Ele incentiva trabalhadores e empresas a procurarem credenciais de competência por meio de avaliações conduzidas por agências reconhecidas por órgãos governamentais como aptas para tanto. O sistema produz quadros descritivos bastante minuciosos. Jessup oferece vários exemplos de tais descrições.
Foram elaboradas descrições detalhadas para centenas de atividades em todas as áreas ocupacionais. Tais descrições permitiram definir o que deve ser considerado para cada aspecto num trabalho ou ocupação. As avaliações, preferencialmente são feitas em locais de trabalho com amostras significativas dos desempenhos esperados por parte dos trabalhadores.
Além de descrever o trabalho em detalhe, as NVQs são estruturadas em níveis. Na obra de Jessup, tais níveis são descritos da seguinte forma:
- Nível I: competência no desempenho de atividades de trabalho rotineiras e previsíveis ou que consiste num fundamento geral que serve de base para posterior progressão.
- Nível II: competência num arco mais exigente de atividades de trabalho que envolvem grande responsabilidade individual e autonomia maiores que as de nível I.
- Nível III: competência em áreas que exigem grande habilidade e desempenhos num amplo arco de atividades de trabalho, incluindo muitas que são complexas e não rotineiras. Em algumas áreas, a competência supervisora pode ser uma exigência neste nível.
- Nível IV: competência no desempenho de atividades de trabalho complexo, especializado e profissional, incluindo aquelas que envolvem design, planejamento e resolução de problemas, com significativo grau de responsabilidade pessoal. Em muitas áreas a competência de supervisão e gestão será exigida neste nível.
- Nível V: competência ainda não definida [em 1991], mas que inclui todas as demais e níveis mais altos de gestão e supervisão, além de criatividade. (p. 23)[19]
competência prevista no nível 4 e formação para analisar, estabelecer “diagnóstico de situação”, bem como exercer funções de planejamento e avaliação de desempenho. (p. 203)
Os níveis das competências foram estabelecidos a partir de demandas ocupacionais, com destaque para responsabilidade pessoal pelo trabalho, autonomia, exercício de supervisão, resolução de problemas, criatividade. E embora não se buscasse equivalência entre esses níveis e os educacionais, é possível sugerir as seguintes orientações:
- Nível 1, que descreve expectativas de desempenho em trabalhos com pouca um nenhuma qualificação profissional, corresponde, em termos educacionais, a situação na qual os trabalhadores têm apenas educação básica mas nenhuma formação posterior à escolaridade obrigatória.
- Nível 2, que descreve expectativas de desempenho com certa autonomia do trabalhador, corresponde em termos gerais a cursos pós secundários de nível 2. Em comparações com nosso sistema educacional, é possível equiparar este nível ao de auxiliares técnicos, tendo o cuidado de notar que essa comparação é apenas indicativa, não significando necessariamente equivalência.
- Nível 3, correspondente a expectativas de trabalho com bastante autonomia e possíveis tarefas de supervisão, tem alguma semelhança com o nosso técnico. Esta é outra comparação apenas indicativa.
- Níveis 4 e 5, estágio que supõe trabalho de muita complexidade e supervisão de outros profissionais, correspondem de certa forma a atividades que exigem formação em nível superior (tecnólogo, licenciado, bacharel).
- Nível 6 e 7, estágio que requer domínio de todos os outros, além de criatividade, corresponde a formações em nível de pós-graduação.
Dedicamos até aqui especial atenção aos níveis das competências no sistema NVQ e adiantamos possível comparação entre tais níveis e os níveis escolares no Reino Unido. Avançamos, inclusive, um quadro de possíveis equivalências entre os níveis de competências e os níveis de escolaridade. E essa atenção se justifica uma vez que as gradações do trabalho são uma das referências para análises sobre verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica.
Na estrutura do ensino do Reino Unido há uma gradação muito grande de níveis, bem maior que a apontada até agora a partir dos sistema NVQ. Numa das fontes consultadas (NiDirect Government Services, 2018) encontramos a seguinte descrição para os níveis de capacitação profissional no Reino Unido:
Nível de entrada (introdutório). Desenvolve conhecimento e habilidadesbásicas. Desenvolve habilidade de aplicar a aprendizagem às situações cotidianas. Não está voltada para nenhuma ocupação específica.
Nível 1. Abrange: GCSEde graus D-G, oferece awards (reconhecimentos),diplomas e certificados de nível 1, NVQ (relacionada), Habilidades essenciais. Quanto ao trabalho: abrange conhecimento e habilidades básicos; habilidade de aplicar a aprendizagem com apoio e supervisão, pode estar ligada a competências laborais.
Nível 2. Abrange: GCSE graus A* – C, aprendizagem intermediária, níveis 2 deawards, certificados e diplomas, NVQs, Habilidades essenciais. Desenvolve: bom conhecimento e entendimento de um assunto (matéria, área); habilidade de realizar uma variedade de tarefas com algum apoio e supervisão; desejável para vários papéis no trabalho.
Nível 3. Abrange níveis AS e A; acesso a educação superior; aprendizagemavançada; bacharelado internacional; NVQs; diplomas, certificados e awards do BTEC (Business & Technological Education Council). Desenvolve: habilidade para apreender e aplicar um amplo leque de conhecimentos, habilidades e entendimento em nível de detalhe; apropriado se o aluno pretende ir para a universidade, trabalhar independentemente ou, em alguns casos, supervisionar e treinar outros profissionais em seu trabalho.
Nível 4. Abrange: NVQs; Diplomas, certificados e awards BETEC; HCNs(Higher National Certificates) ; Certificados de educação superior, aprendizagem de nível superior. Desenvolve: especialista em aprendizagem, envolvendo análise detalhada de altos níveis de informação e conhecimento na área de trabalho ou estudo; indicado para pessoas que trabalham em profissões técnicas, e que exercem gestão ou desenvolvem outros profissionais.
Nível 5. Abrange: HNDs (Higher National Diplomas), NVQs, diplomas,certificados e awards BTEC; graus fundacionais (Foundation Courses), diploma de educação superior. Desenvolve: habilidade de expandir a profundidade de conhecimento e entendimento de uma área de trabalho ou estudo, de tal maneira que a pessoa pode responder a situações e problemas complexos; envolve alto nível de especialização no trabalho e competência para gerenciar e treinar outros profissionais.
Nível 6. Abrange: bacharelado; licenciatura; certificado em educação(superior); diplomas de graduação, BTEC avançados; aprendizagem de nível superior. Desenvolve: um especialista, com conhecimento de alto nível de uma área de estudo e trabalho de tal modo que a pessoa usa suas ideias e pesquisa respostas para problemas e situações complexas; adequado para pessoas trabalhando como profissionais que têm como base de sua atuação o conhecimento, ou em posições de gestão.
Nível 7. Abrange: Mestrado; certificado de pós-graduação em educação;BTECs avançados. Desenvolve: conhecimento altamente desenvolvido e complexo, habilitando as pessoas a oferecer respostas originais para problemas e situações complicados e imprevisíveis; desejável para profissionais e gestores seniores.
Nível 8. Abrange: doutorado, awards (reconhecimentos), diplomas ecertificados especiais. Desenvolve: oportunidade para desenvolver abordagens novas e criativas que ampliam e redefinem o conhecimento existente ou práticas profissionais; adequado para experts, líderes ou praticantes de um dado campo de saber.
Como se pode constatar pela diversidade das classificações existentes para trabalho e educação no Reino Unido, não há um quadro único que defina níveis e graus relativos à capacitação dos trabalhadores. Cabe ainda ressaltar que há diferenças entre as classificações usadas pelos estados membros do Reino Unido para classificar seus cursos de educação profissional e tecnológica, assim como os níveis de competências no campo do trabalho. No caso dos cursos do Sheffield College, como veremos mais à frente, a grande maioria dos programas oferecidos são de nível 2 e 3 nos termos da classificação que acabamos de citar. Há no college também cursos de nível 1 e introdutórios, mas eles não são muitos. Finalmente há vários cursos de nível 4 e 5, superiores. E os cursos de nível 4 e 5 não compõem um bloco único, há uma variação dentro dos níveis como se verá quando analisarmos alguns exemplos de cursos universitários oferecidos pelo college.
O college de Sheffield é herdeiro de uma forma de organização da educação profissional e tecnológica iniciada por volta de 1840 (TREVISAN, 2001). O objetivo dos colleges era o de oferecer para pessoas com dezesseis ou mais anos uma segunda chance de escolaridade, quase sempre por meio de programas de capacitação profissional. Essa educação pós-secundária é conhecida pelo rótulo geral de Further Education.
Em seu estudo,Trevisan (2001) nota que a rede de Further Education mudou muito depois de 1996. Ela, segundo o autor, passou a ser frequentada por uma clientela com mais idade (a média de idade dos alunos chegava, na década de 1990, a 24 anos)[20]. Outra observação de Trevisan aponta que a maioria dos alunos dos colleges estava empregada em algum trabalho de tempo parcial. Apesar do Conselho dos NVQs sugerir que o sistema de competências não deveria influir em decisões de caráter pedagógico nas escolas, cresceu desde 1990 o número de cursos que preparam explicitamente os alunos para testes nos termos do sistema das NVQs.
Não foi possível verificar no caso do Sheffield College se as tendências apontadas por Trevisan continuam nos dias de hoje. Há na instituição um grande número de alunos adultos, mas aparentemente predominam nos programas jovens na faixa etária dos 16 aos 19 anos. Há diversos cursos que se articulam com exames de competências, mas não são maioria no catálogo da instituição.
A análise do caso britânico mostra situação em que há certa relação entre definições de níveis na pirâmide ocupacional e os níveis de ensino. Vale dizer que a classificação ocupacional (NVQs) não é feita tendo em vista educação formal, mas complexidade do trabalho.
Verticalização do ensino em EPT e inclusão
Há uma leitura de inclusão em educação que não depende de como se estruturam os cursos nas instituições, mas vincula-se a políticas que favorecem ingresso dos mais pobres e das minorias em qualquer programa oferecido. Exemplos desse tipo de políticas são medidas que os Institutos Federais vêm adotando para facilitar ingresso de alunos de escolas públicas e de minorias étnicas em cursos técnicos. Há outra leitura de inclusão que está relacionada com a estrutura da programação das instituições. Nessa leitura, o que se pergunta é se o olhar institucional é sensível para dificuldades apresentadas por muitos alunos em termos de domínio de conhecimentos desejáveis. Neste estudo, a inclusão sócio-educacional enfocada é a segunda. Para tanto, analisamos casos nas instituições internacionais e oferecemos alguns contrapontos a partir de observações em instituições brasileiras.
Educação compensatória, necessidade em EPT?
Alunos que terminam sua educação obrigatória podem apresentar dificuldades para continuar estudos ou para ingressar no mercado de trabalho. Uma das falhas mais notadas tem a ver com domínio do idioma. Muitos estudantes chegam ao fim de seus estudos na educação básica com problemas no campo da leitura e da redação. A questão vem sendo estudada há muito tempo e os autores geralmente revelam que a aprendizagem do idioma nacional não é satisfatória. Levantamentos junto a professores nos Estados Unidos e França (HEALY, 1990) mostram atrasos relativos de dois ou três anos entre estudantes que estão nas últimas séries do ensino obrigatório. Textos antes lidos com facilidade por estudantes com cinco anos de escolaridade são agora considerados difíceis por alunos das sétimas séries. Há também problemas no campo da aprendizagem da matemática. E mais recentemente, os educadores vêm insistindo que há mais uma área de estudos que precisa ser considerada no caso, as tecnologias de informação e comunicação. Certamente resultados insatisfatórios da educação básica aparecem também no campo das ciências. Mas, tradicionalmente, os educadores preocupam-se mais com falhas no campo do idioma nacional e das matemáticas. E, como observamos atrás, as tecnologias da informação e comunicação começam a entrar nessa conta dos fracassos da educação escolar.
Falhas de aprendizagem no campo do idioma nacional têm duplo desdobramento. Pessoas com dificuldades no campo da leitura não conseguem bom aproveitamento em estudos de disciplinas cujo principal meio de informação é o texto. Pessoas com dificuldade no domínio de seu idioma podem ter dificuldade no trabalho por não saberem manejar necessárias ferramentas de comunicação exigidas profissionalmente. Como observa Healy (1990):
Para ler bem, as mentes precisam estar treinadas no uso da linguagem, para refletir, e para persistir na solução de problemas. Os alunos podem aprender o som das palavras, mas a não ser que possuam um senso de responsabilidade para extrair o significado, eles se engajam em exercícios ocos e insatisfatórios. Com grande esforço, alcançamos sucesso ao ensinar os alunos das séries iniciais a “ler as palavras”. Os testes de leitura mostram, porém, resultados desastrosos quando os estudantes precisam relacionar as palavras com significados e dominar gramática e vocabulários mais avançados, assim como as demandas intelectuais exigidas pelo texto. (p. 25)
Nos Estados Unidos, críticas aos níveis insuficientes do domínio do inglês são muito comuns nas universidades. Uma das saídas, nem sempre bem sucedida para o problema, é a educação compensatória. Mike Rose examina essa questão em seu país (ROSE, 2015) e mostra que as soluções não são adequadas porque as metodologias adotadas em educação compensatória são as mesmas que levaram os estudantes ao fracasso no ensino fundamental e médio. Mas, Rose acredita que a educação compensatória é necessária e que é possível alcançar bons resultados se os educadores adotarem metodologias que ajudem os alunos a superarem suas carências no campo do domínio do idioma. O mesmo vale para outros conteúdos,
Educação Compensatória no Sheffield College
Embora guias e catálogos de cursos do Sheffield College não façam referências explícitas à educação compensatória, a instituição tem alguns programas que refletem preocupações de oferecer oportunidades para que muitos estudantes possam superar carências em sua educação. Há uma área no college, Foundation Studies, que pode ser traduzida como Estudos Básicos. Ela não está vinculada a um núcleo ocupacional ou eixo tecnológico. Sua finalidade não é a de qualificar imediatamente os estudantes, mas a de oferecer oportunidades de preparação geral para o trabalho, acompanhada por apoio e orientação profissional.
Para ilustrar o que se pretende com Foundation Studies, convém examinar um exemplo, o programa Personal Progress (Entry Level). O curso proporciona para o aluno um ano inteiro para desenvolver habilidades gerais e para ganhar confiança. O aluno é entrevistado e elabora com tutores um plano individual de aprendizagem para a vida e para o trabalho. Inglês, matemática e TIC são desenvolvidos de tal maneira que os alunos ganhem maior domínio nessas áreas de saber muito necessárias em qualquer profissão. O curso está voltado principalmente para alunos que terminaram sua educação obrigatória e têm alguma dificuldade de aprendizagem. A metodologia empregada procura garantir melhoras significativas no desempenho dos alunos, sempre em situações de aprendizagem com pequenos grupos.
Além de Personal Progress, há em Foundation Studies outros dezessete cursos. Alguns mais abrangentes como esse primeiro, outros com características de iniciação profissional. Entre estes últimos, podemos citar o Brickwork Entry Level e Retail Skills Level 1, o primeiro preparando o estudante para cursos de nível 1 na área de construção civil, o segundo, preparando os estudantes para provável engajamento em trabalhos do setor de varejo. O Retail Skills Level 1 (Habilidades de Varejo, Nível 1) parece se basear no pressuposto de que os concluintes do ensino obrigatório têm alguma chance de emprego no setor de varejo em tarefas mais simples de atendimento e venda.
Há outro programa na área que merece destaque: Independent Living Skills Entry Level. O programa se define como uma ajuda para o crescimento pessoal de jovens, sem ou com pouca experiência, que acabam de terminar sua educação obrigatória e revelam dificuldades de aprendizagem ou não escolheram ainda qualquer caminho em termos de sua formação pós-secundária. Cabe destacar os conteúdos do programa:
- Como fazer escolhas
- Olhando para você e para sua casa
- Técnicas básicas de cozinha
- Elaboração de alimentos simples
- Conservação da saúde
- Atividades outdoor
- Vida em comunidade
O programa lembra uma abordagem que foi muito popular em educação profissional na primeira metade do século XX, Economia Doméstica (MJELDE, 2015). Liv Mjelde estuda a literatura didática dos começos da Educação Doméstica em seu país, a Noruega, e destaca a preocupação crescente com uma educação para a economia do lar, com destaque para a alimentação:
Dorothea Christensen considerava que cada criança devia ter um livro de cozinha que incluísse “uma seleção de pratos em porções pequenas e, na medida do possível, especificações precisas de quantidades e pesos”, como expressa o prólogo do “Livro de cozinha para a escola e para o lar”, aparecido em versão editada em 1894, com Helga Helgensen como coautora. Seu objetivo era que o livro fosse acessível ao maior número possível de noruegueses, por ser mais barato. As autoras estavam determinadas em divulgar aquele livro, tornando-o acessível a todos os lares. (p. 106)
O livro de cozinha analisado por Liv Mjelde dá uma ideia das finalidades da economia doméstica: ensinar aos trabalhadores medidas para uma vida mais sadia e para um controle de gastos que lhes permitisse alimentar-se bem. A economia doméstica não era formação para o trabalho, mas formação para que trabalhadores aproveitarem melhor seus recursos no dia a dia. A proposta do curso Independent Living Skills sugere direção similar. E ela merece consideração em educação profissional e tecnológica. A economia do lar e no lar talvez seja uma saber muito necessário em nosso tempo.
Convém relacionar títulos de todos os cursos oferecidos na área Foundation Studies, reparando que a lista não chega a dezessete porque alguns títulos se repetem:
- Brickwork Entry Level
- Environmental Coservation Skills
- Foundation Learning Vocational Pathway Entry 3
- Foundation Learning Vocational Pathway Entry Level
- Foundation Learning Vocational Pathway Level 1
- Independent Living Skills Entry Level
- Painting & Decorating Entry 3
- Personal Progress Entry Level
- Retail Skills Level 1
- Supported Internship
- Supported Work Skills
- Work Skills Level 1
A lista apresenta programas de orientação geral e programas de iniciação profissional em algumas áreas. Em todos os cursos trabalha-se muito para que os alunos melhorem seu desempenho em inglês, matemática, e tecnologias da informação e comunicação. Essa orientação mostra que a área também tem pretensões de articular educação compensatória para alunos que não tiveram desempenho satisfatório durante os estudos de ensino básico, chegando aos dezesseis anos com domínio insuficiente do idioma nacional e da matemática.
Cabe ainda outra observação sobre os programas oferecidos. Um deles, Supported Internship, não é um programa convencional. Ele é atividade de apoio a alunos que conseguem alguma forma de estágio depois de concluírem a escola obrigatória. O programa tem duas faces. A primeira é a de apoiar alunos que já conseguiram algum tipo de estágio por conta própria. A segunda é a de oferecer para interessados, por meio de contatos com empresas parceiras do college, oportunidades de estágio. Como os alunos que ingressam em tais estágios não têm capacitação formal para o trabalho, supõe-se que ingressarão em ocupações bastante simples. Esta é outra particularidade que deve ser considerada, pois ingresso de jovens sem qualificação profissional no primeiro emprego sempre é bastante difícil. É interessante notar que no caso o estágio não é função de algum curso que no qual o aluno esteja matriculado. Nesse programa o estágio é a atividade central. Os documentos do college informam que há empresas parceiras no desenvolvimento de tal programa, o que nos faz supor que a instituição, por meio do Supported Internship, apoie alunos que concluíram a educação obrigatória e buscam o primeiro emprego mesmo sem qualificação profissional.
Além do Retail Skills Level 1, em Foundation Skills, há dois outros cursos que podemos caracterizar como iniciação Profissional: Brickwork Entry Level e Painting & Decorating Entry 3. Esses dois últimos cursos refletem a conhecida ideia de que a construção civil é um setor que pode acomodar mão de obra pouco qualificada. Ambos os cursos são desenvolvidos em nível elementar e estão voltados para alunos que não conseguem preencher pré-requisitos para ingresso em programas de capacitação profissional de nível 2 e 3. Os três cursos, com orientação mais explícita para oportunidades ocupacionais imediatas, são soluções que, aparentemente, foram organizadas tendo em vista necessidades de um grupo de alunos que não têm possibilidade de ingressar em estudos pós-secundários.
Podemos também considerar na linha de educação compensatória os cursos que o college oferece em cada área ocupacional como Entry Level Course. Tais cursos não exigem qualquer pré-requisito e são oferecidos a estudantes que não podem ingressar em cursos de nível 2 ou 3. Um exemplo: Catering & Hospitality Entry Level, curso que dá oportunidade para que os alunos aprendam sobre preparação de alimentos e desenvolvam empregabilidade. O uso do termo empregabilidade na descrição do programa revela preocupação de preparar alunos que concluíram o ensino obrigatório para ingresso no mercado, mesmo que não tenham qualificações profissionais desenvolvidas.
O catálogo assim descreve o curso:
O estudante passará boa parte do tempo em atividades práticas na cozinha para desenvolver habilidades típicas do setor. Ele irá preparar alimentos em cozinhas do college cujo padrão está acima da maioria das cozinhas comerciais. O curso dá oportunidade para que o aluno prepare alimentos sem a pressão de demandas de serviço como ocorre no restaurante (de aplicação) do college.
Há um tempo considerável de sala de aula para que o aluno desenvolva sua empregabilidade. Ele irá aprender como se apresentar publicamente e para clientes, e como manter uma aparência profissional. Aprenderá como trabalhar em equipe e como se comportar em entrevistas.
Jovens e adultos em busca de emprego precisam muitas vezes de informação. Mas não basta ser informado. É preciso desenvolver capacidades de julgar as informações disponíveis e julgá-las a partir dos próprios interesses e das competências pessoais dos interessados.
Há outro aspecto que convém considerar no âmbito da educação compensatória. Nos programas de quase todos os cursos, os catálogos do Sheffield College lembram que os alunos devem ter níveis de conhecimento do idioma nacional e de matemática compatíveis com a ocupação que é objeto do ensino que vão receber. Em alguns casos, o nível desejado de domínio dessas áreas de saber é um pré-requisito. Mas, em grande parte dos cursos, inglês e matemática não constituem barreira para o ingresso, mas são objetos de avaliação preliminar dos alunos, e se estes ainda não dominarem inglês e matemática como instrumentos funcionais para a profissão, durante o curso, deverão frequentar programas especiais para superar suas limitações. Essa é uma solução interessante, pois não penaliza os alunos pelo ensino deficiente que receberam, mas dá a eles oportunidade de alcançar níveis satisfatórios de conhecimento de inglês e de matemática.
Dizer a própria palavra
As questões de domínio do idioma nacional em relações com o trabalho é importante. Don Lorenzo Milani, ao formular propostas de educação libertária para os trabalhadores (MARTÍ, 1977) observava que é preciso que as pessoas sejam capazes de dizer suas próprias palavras. E é no domínio da linguagem que muitas vezes se decidem relações de poder no mundo do trabalho. Por essa razão, convém examinar mais de perto o que o Sheffield College propõe para alunos que não alcançaram no final de sua educação obrigatória domínio suficiente do idioma nacional.
O college tem uma área de estudos que não se vincula diretamente a saberes do trabalho. Essa área é a Maths, English and Languages. Vamos examinar aqui os programas de ensino de inglês. No geral, eles estão voltados para alunos que não conseguiram alcançar o conceito C no final de sua educação obrigatória.
São claramente programas de educação compensatória os cursos:
- English Language GCSE Online,
- English Language GCSE,
- Functional Skills English (Entry 3/ Level 1),
- Functional Skills (Adult),
- Functional Skills (Online)
Segue informação sintética sobre cada um desses cursos:
English Language GCSE. Este é o curso central entre aqueles que o college oferece compropósitos compensatórios para o idioma inglês. Convém, por isso, reproduzir aqui algumas das informações que constam no catálogo:
English Language GCSE deve assegurar que os alunos possam ler fluentemente e escrever de forma efetiva. Eles precisam estar aptos para demonstrar um controle seguro do Standard English, e precisam ser capazes de escrever sentenças com correção gramatical, empregar linguagem figurativa e analisar textos.
Functional Skills English (Online). Curso de 36 semanas, com exigência de estudoindividual e cumprimento de tarefas escritas. O caráter compensatório é sublinhado nas observações de apresentação do programa, lembrando que ele é uma oportunidade para que os alunos obtenham certificado comprobatório de que alcançaram pelo menos o conceito C para GCSE em inglês, abrindo com isso portas para prosseguir estudos no college ou em instituições de ensino superior.
Functional Skills English (Entry 3/Level 1). O catálogo informa que esse curso foiplanejado para que o aluno se sinta mais confiante no uso do inglês do dia a dia. Trata-se de um inglês instrumental que se define em função das habilidades de comunicação necessárias no exercício de trabalhos do nível 1. É interessante observar que o curso prepara o aluno par um exame de validade nacional. O programa prevê estudo, em tempo parcial, durante 35 semanas. Esse curso sempre é recomendado para alunos que ingressam em programas de capacitação profissional nos níveis 1 ou 2 e revelam dificuldades no uso do idioma
Functional Skills (Adult). O curso tem a mesma orientação que o anterior. Mas, osdestinatários são diferentes. No primeiro, os alunos normalmente são jovens com idade dos 16 aos 19 amos. Neste, os estudantes são pessoas de mais idade.
Functional Skills English (Online). Curso de 36 semanas, com exigência de estudoindividual e cumprimento de tarefas escritas. Em termos de conteúdo e finalidades é equiparável aos dois anteriores.
Entendemos que essas informações sobre medidas compensatórias para que alunos que costumam enfrentar problemas de uso adequado do idioma nacional devam ter destaque em estudos sobre a concepção de ofertas educacionais no campo da educação profissional e tecnológica. De pouco serve a crítica a desempenho sofrível dos estudantes no uso do português. É preciso apresentar caminhos para resolver o problema em vez de apenas lamentar.
Vale observar que o conceito de habilidades funcionais sugere a elaboração de descritores de conhecimentos que as pessoas devem dominar no uso do idioma nacional e das matemáticas para o exercício do trabalho em diferentes níveis. Com essa medida será possível planejar programas de educação compensatória para quem busca capacitação profissional e tem alguma carência em termos de uso do idioma e de saberes matemáticos.
Em possíveis comparações entre o que se oferece no Sheffield College e o que se oferece em instituições brasileiras de educação profissional e tecnológica, Foundation Studies pode iluminar áreas que não costumam ser consideradas no planejamento de cursos das instituições. Muitos estudantes que concluem o ensino médio em escolas públicas costumam ter dificuldades para ingresso no mercado de trabalho. Além de capacitação profissional, eles precisam de apoio e de informação. A instituição de Sheffield apresenta uma alternativa que merece ser considerada. Antes de ingressarem num programa exigente de formação profissional, talvez jovens mais carentes precisem aprender a lidar com as informações disponíveis, considerar escolhas, fazer algum curso introdutório para apreciar alternativas de formação. Essa é uma possibilidade educacional que, aparentemente, as nossas instituições de educação profissional não consideram. Mas ela pode atender a interesses de muitos jovens que estão concluindo a educação básica.
Educação compensatória no departamento de educação de adultos de San Diego
Entre as atividades de educação continuada em San Diego, há um trabalho voltado para adultos com pouca escolaridade e que não podem ainda buscar suplência para obter diploma de ensino médio, nem começar uma capacitação profissional.
Trata-se de uma educação compensatória que tem por finalidade preparar pessoas adultas com déficit educacional para os estudos. Convém reproduzir as informações que o catálogo d instituição (SAN DIEGO CONTINUING EDUCATION. 2016-1018 Catalog, 2016) fornece sobre tal programa.
Elementary Basic Skills
O Elementary Basic Skills está desenhado para que os estudantes desenvolvam habilidades educacionais básicas necessárias para que possam atingir suas metas individuais, familiares e de trabalho. O programa está desenhado para estudantes que precisam desenvolver habilidades básicas de leitura, escrita, matemática, comunicação e pensamento crítico.
O programa inclui o desenvolvimento de habilidades básicas e conteúdos de saber relacionados com o mundo do trabalho tais como relacionamento interpessoal, capacidade de se comunicar oralmente, capacidade de saber ouvir, vocabulário, leitura, escrita, uso de tecnologias, solução de problemas e planejamento de carreira. Após o curso, os alunos deverão estar aptos para fazer curso de suplência de nível médio e cursos de qualificação profissional.
A descrição do programa indica o que poderíamos chamar, nos termos que utilizamos no Brasil, suplência de educação fundamental. Cabe notar que esse programa cumpre dupla função: prepara os alunos para cursarem uma suplência de ensino médio, prepara os alunos para que possam ingressar em certificate programs. Associam-se no caso finalidades tanto de educação geral como de educação profissional.
A existência de um programa com tais características numa instituição cuja finalidade principal é a capacitação para o trabalho mostra uma direção que pode ser considerada em nossos estudos sobre EPT. É preciso reconhecer que parte da população tem déficits significativos em sua educação fundamental. E esses déficits criam sérias dificuldades para que tais pessoas possam capacitar-se profissionalmente.
É comum a existência de programas de educação compensatória para essa população, inteiramente desvinculados de preparação para o trabalho. E é provável que as instituições tradicionais de EPT não se vejam como responsáveis por programas como este desenvolvido em San Diego.
Inclusão e observações efetuadas no Brasil
As medidas de inclusão, considerando estrutura de ensino, nas instituições internacionais privilegiam educação compensatória. Essa forma de educação praticamente inexiste nas instituições de EPT brasileiras. Tivemos que procurar outra via para verificar necessidades de inclusão que passam pela estrutura da programação no Brasil. Para tanto, examinamos casos de cursos técnicos integrados para adultos e situações de ensino que sugerem problemas de ausência de capital cultural. Aparentemente não há em nossas instituições preocupação explícita em oferecer alternativas de programação que possam compensar déficits educacionais de parte dos alunos que precisa de educação profissional, mas tem dificuldades para ingressar em alguns programas porque lhes faltam fundamentos necessários para as atividades de estudo exigidas.
Ciência Inacessível
Uma das medidas de inclusão no campo da educação profissional e tecnológica é o PROEJA (Programa Nacional de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos). Nesse programa, alunos adultos que deixaram precocemente os estudos podem voltar à escola para uma nova chance, concluindo o ensino médio e capacitando-se para alguma ocupação que exige formação técnica.
Iniciamos nossa análise de processos de inclusão via PROEJA, considerando medidas administrativas que favorecem volta à escola para jovens e adultos que estavam fora dela e não concluíram o ensino básico. Para tanto vamos considerar documento (MEC, 2018) que orienta processo de seleção para ingresso no Curso de Técnico em Eventos, Programa Nacional de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA, por um dos Institutos Federais.
O documento propõe medidas que favorecem pessoas que:
- Já fizeram parte de sua educação por meio de programas de ensino para jovens e adultos.
- Deixaram a escola há mais tempo.
- Cursaram escolas públicas.
- Têm renda familiar muito pequena.
- Moram na zona rural.
Para cada um desses itens, há uma escala no sistema de pontuação que favorece pessoas mais carentes e que teriam maior dificuldade para ingressar no curso caso se considerasse exclusivamente o resultado de exames de seleção convencionais. No item “Tempo que está afastado da escola”, por exemplo, há uma escala de 08 a 20 pontos, na qual a pontuação menor será atribuída a candidatos que deixaram a escola recentemente (menos de um ano), e a pontuação maior será atribuída a candidatos que estiveram fora do sistema escolar por mais de dez anos. Há uma pontuação intermediária entre esses dois extremos. O mesmo tratamento acontece nos outros itens. Setenta por cento da pontuação possível decorre de tais critérios, e apenas trinta por cento da pontuação decorre de processo seletivo que considera, via entrevistas, capacidade de comunicação, motivação e disponibilidade dos candidatos.
As normas que regem a seleção para ingresso no PROEJA, nos termos do edital aqui citado, são inclusivas. Elas favorecem ingresso de pessoas de mais idade, afastadas a muito tempo das escolas, e que têm carências que poderiam dificultar sua volta aos estudos caso a seleção estivesse centrada em desempenho acadêmico. Mas, essa é apenas uma dimensão da inclusão. Outras precisam ser consideradas e as instituições têm dificuldades para identifica-las ou colocarem-nas em prática. Neste estudo são essas últimas dimensões as que mais interessam.
Uma dimensão que não é considerada no caso é a necessidade de estar atentos para as condições de vida de adultos trabalhadores que vivem em regiões metropolitanas.
O que se repara em situação como a que se narra aqui é uma organização do ensino que não considera as condições de vida de alunos trabalhadores. Estabelece-se um horário rígido que precisa ser cumprido. Mas, os alunos não têm como chegar no horário estabelecido. A situação já fora observada em outro Instituto Federal num curso de técnico em padaria, ofertado na modalidade PROEJA. Como as observações resultantes são coincidentes com o caso aqui narrado, deixamos de incluir a narrativa circunstanciada da situação verificada no curso técnico de padaria.
No Instituto Federal visitado as aulas começam às 18:20 e terminam às 22:20. Os gestores do instituto dizem que sabem do problema e dizem que não veem uma solução para o mesmo. Depois da reunião com os diretores da instituição, constatamos que poucos alunos chegam às 18:20. As classes só ficam completamente ocupadas por volta das 19:30.
O coordenador local do PROEJA informa que já foram tentadas soluções com a diminuição de carga horária diária, com a consequente ampliação da duração total do curso, tendo em vista que é preciso cumprir 2.480 horas para conclusão do programa. Essas tentativas de flexibilização de horário já não mais existem.
Cargas horárias em cursos voltados para adultos não devem seguir as mesmas regras que aquelas utilizadas em cursos regulares. Adultos são pessoas com muita experiência de vida que poderia ser considerada em abordagens de vários conteúdos do curso. E, em certos casos, aprendem mais que jovens e adolescentes. Em observação anterior, uma das professoras de um curso técnico de cozinheiro, desenvolvido no âmbito do PROEJA, declarou: “os alunos adultos são ótimos cozinheiros”. Essa observação da docente foi feita quando pedimos a ela para comparar desempenhos de alunos dos cursos técnicos regulares com alunos de cursos técnicos do PROEJA. A docente, ao mesmo tempo em que dizia que alunos mais maduros tinham dificuldade para acompanhar aulas teóricas, dizia que os mesmos tinham aproveitamento superior aos estudantes mais jovens nas aulas práticas. Observações como essa, porém, não resultam em qualquer medida que reconheça diferenças que deveriam ter consequências no plano didático e na organização dos cursos. Como os adultos, no caso, revelam maior aproveitamento nas aulas práticas seria interessante pensar num esquema que pudesse resultar em redução de carga horária em aulas práticas (ou em reconhecimento de competências), sem prejuízo para a aprendizagem. Essas possibilidades, pelo que se observou, não são consideradas. Parece que uma pedagogia dos adultos ainda precisa ser construída nas instituições de educação profissional e tecnológica para que as experiências de vida das pessoas maduras sejam incorporadas ás decisões didáticas e administrativas dos cursos de PROEJA. Essas considerações sobre rigidez no horário em cursos do PROEJA não indicam apenas necessidade de rever a questão, levando em conta história de vida e experiências dos adultos. Elas indicam sutil discriminação das pessoas mais maduras nas instituições escolares. Tais pessoas são submetidas às mesmas exigências feitas para jovens e adolescentes que não trabalham e, muitas vezes, tem disponibilidade para permanecer na escola em tempo integral. As instituições não arquitetam soluções inclusivas para o caso. Apenas recorrem a medidas paliativas, sem alterar carga horária que não é favorável aos alunos adultos e trabalhadores.
Vale registrar comentário feito pelo coordenador de PROEJA no instituto. Ele afirma que é bastante cuidadoso na escolha de professores para assumirem compromisso de lecionar para adultos. O dirigente diz que muitos docentes da instituição não querem dar aulas para adultos. Mas, mesmo professores dispostos a trabalhar com uma clientela madura, ausente dos bancos escolares por muitos anos, têm dificuldades para criar ambientes de aprendizagem para adultos. No caso narrado a seguir percebem-se dificuldades enfrentadas por professores em salas de aula do PROEJA. E a questão não se limita ao didático, ela também deve ser entendida como um problema de inclusão.
Estamos num curso de Técnico de Eventos, modalidade PROEJA. A aula é de biologia, com início previsto para as 18:20, mas que só começa às 18:40, ainda com poucos alunos (oito no total). O aluno mais novo tem dezenove anos. A aluna mais velha, cinquenta. O tema abordado é Ecologia Geral.
A professora projeta um roteiro em ppt na tela, lê o que está escrito[21], complementando a leitura com explicações. O nível de dispersão dos alunos é grande. Uma dupla conversa sem parar. Um aluno passa boa parte do tempo olhando para a tela do seu celular. O que ocorre nessa sala da aula corresponde ao padrão comum de aulas expositivas. A proposta expositiva tem alguns problemas que também são comuns no uso de ppt para apresentar matéria. Nota-se, no caso, a prática equivocada de projetar na tela um texto muito extenso, que será lido pelo expositor, que não tem qualquer atrativo visual. Tal uso de computadores para apresentar conteúdos de ensino não conquista interesse e atenção dos alunos. E isso vale não só para estudantes maduros, vale para qualquer grupo de aprendentes.
A observação de que a aula acompanhada indica que a docente não sabe fazer bom uso de recursos tecnológicos não é uma novidade. Projeções de ppt como essa foram observadas em muitas outras aulas acompanhadas para obtenção de dados para este estudo em cursos de todos os níveis e modalidades[22]. Esse problema didático não é, portanto, exclusivo de cursos voltados para adultos. Ele é um problema comum no ensino escolar. Provoca dispersão. Não cria um ambiente favorável para a aprendizagem. Mas, não caracteriza situação que deva merecer destaque em considerações sobre inclusão.
O que acontece nessa sala de aula, além de uma apresentação inadequada, com uso de recursos tecnológicos, é um ensino de ciência que desconsidera as possíveis dificuldades que alunos adultos possam ter para aprender conceitos abstratos, comunicados em linguagem que cria barreiras para a compreensão do conteúdo apresentado. O filósofo André Gorz (1979) analisa esta questão com certo tom irônico, reparando que a ciência é ensinada de tal forma aos trabalhadores para mostrar que eles são incapazes de aprender conteúdos que só podem ser entendidos por gente com posição superior na hierarquia ocupacional.
Cabe aqui registrar um trecho do texto do filósofo:
A forma ciência dos conhecimentos, tal qual ensinada pela elite, tende a substituir o latim e ortografia como instrumento principal para selecionar aqueles que ascenderão na cultura dominante e aos empregos “superiores”. […] a separação entre saber prático e conhecimento científico não tem nada de inevitável, e a subordinação do operário à ciência – ou seja, a quem a monopoliza – é qualquer coisa exceto uma necessidade. […] Temos que desmitificar, “desocultar” e “desescolarizar” a ciência, temos que perder nossos complexos escolares diante dela, todos estes complexos segregados pelo amplo trabalho da intimidação da escola. Os professores nos fizeram suar com seus problemas de física. O que resta disso não é uma cultura, mas, com frequência, um fastio, ou um sentimento de que é preciso ser superdotado para entender conteúdos científicos. (p. 24-25)
Voltemos à aula de biologia no curso de Técnico em Eventos, modalidade PROEJA. Os textos projetados pela professora utilizam uma linguagem característica da ciência. Diversos termos são de origem grega e soam incompreensíveis para os alunos. Um dos conceitos explicados é o de energia que vai diminuindo na medida em que os seres vivos se nutrem em cadeias alimentares. Essa ideia é ensinada como verdade científica, mas não é explicada. Aparentemente, espera-se que os alunos aprendam uma definição sobre o processo, sem entender muito bem o que supostamente estão aprendendo. As explicações prosseguem com o item “Ciclagem de Materiais no Ecossistema”, título que vem acompanhado de um texto copiado de um livro de biologia, citado de acordo com as normas da ABNT. No eslaide seguinte, a informação aparece em figura que retrata o ciclo alimentar num ecossistema enfatizando papel da fonte primária de energia (o sol), os produtores de energia, os consumidores e os decompositores. A partir daí, as explicações progridem na direção dos fluxos de energia e de matéria nos ecossistemas. Após meia hora de projeções de textos e de ilustrações, acompanhadas de explicações que não incluem exemplos acessíveis em termos da vida cotidiana dos alunos, a professora pergunta: “o que foi que vocês entenderam”. Um dos alunos que aparentemente acompanhou com atenção o que fora apresentado diz: “não entendi nada”. A docente reitera o que já disse outras vezes. Outros alunos manifestam a mesma opinião que o primeiro. Nada entenderam.
A matéria não é nova. Esta aula foi organizada para explicar um tópico de apostila que os alunos já deveriam ter estudado. Mas, em resposta à indagação da docente, os alunos dizem que ainda não leram o material. A professora diz que é preciso estudar, ler o material. Diz que, embora sejam trabalhadores, os alunos precisam encontrar algum tempo para o estudo. Os comentários dos estudantes são os de que não é possível entender o texto da apostila. Ela está escrita na mesma linguagem que os roteiros apresentados pela professora em aula.
Os conteúdos apresentados não se referem a elaborações científicas muito complexas. Eles são apenas uma forma de classificar relações entre seres vivos em cadeias alimentares dos ecossistemas. Não faltam exemplos do cotidiano para ilustrar a conceituação proposta. Mas, as explicações dadas estão codificadas numa linguagem abstrata, muito distante do falar das pessoas e, mais que isso, muito distantes do que os alunos podem observar no entorno em que vivem. Mas, como bem diz André Gorz, na escola predomina uma forma ciência que afasta as pessoas de um conhecimento científico que poderia ser por elas dominado.
A situação observada lembra um desafio geral no campo da educação: “como todos esses saberes escolares, derivados da ciência, podem ser elaborados para que os alunos os entendam e com eles se envolvam para elaborar conhecimento significativo?”. Tal desafio não é exclusivo da educação de adultos. Ele acontece em qualquer modalidade de ensino quando o alvo é o conhecimento científico. Mas, para os adultos, há aspectos que precisam ser considerados especificamente. A partir de informações de coordenadores e docentes de PROEJA, e de comentários de alunos de tal programa, ficou registrado o que segue:
- Alunos adultos têm grandes dificuldades de aprendizagem no campo do saber teórico.
- Os conteúdos científicos precisam ser simplificados em cursos de PROEJA.
- Ausentes por muito tempo do ambiente escolar, os adultos não conseguem acompanhar com facilidade apresentações sobre conceitos e princípios da ciência.
- Alunos do PROEJA costumam ir bem na aprendizagem de conteúdos práticos que não exigem muito fundamento científico.
- Conscientes das dificuldades de alunos adultos na aprendizagem de ciências, os professores precisam ser mais compreensivos na avaliação, exigindo menos em suas provas e testes.
- Os conteúdos de ciências (matemática, física, química, biologia) são muito difíceis para pessoas adultas que estiveram afastadas das escolas por muito tempo.
Todas essas afirmações criam o estereótipo de que alunos adultos não aprenderão conteúdos científicos com facilidade[23]. Pouco se considera a possibilidade de que a questão fundamental é a abordagem utilizada para ensinar ciências. O modelo de uma ciência que precisa ser aprendida a partir de abstrações exigentes não muda. Ele continua a ser utilizado e o seu insucesso é explicado por supostas incapacidades dos adultos para com ele lidar. Os professores se esforçam muito para melhorar o rendimento dos alunos. Para isso são menos exigentes, simplificam a matéria, dão menos conteúdo que o desenvolvido em cursos regulares do mesmo nível. E, sobretudo, se dedicam mais em explicações sobre a matéria. E tudo isso não costuma funcionar porque o aspecto fundamental da questão, a forma ciência escolarizada, não é posta em questão.
Embora não se refira especificamente à educação de adultos, análises feitas tempos atrás pelo filósofo H. S. Broudy (1977) podem ser úteis aqui:
O conhecimento como um sistema sobre entidades, relações e teorias em algum domínio de investigação tem suas próprias propriedades lógicas e critérios. A teoria que explica o processo existencial pelo qual a investigação foi instituída, conduzida e desenvolvida também tem uma estrutura (causal, de desenvolvimento), mas não necessariamente idêntica às propriedades lógicas do sistema conceitual que está sendo aprendido. (p. 4)
No trecho citado, Broudy mostra que a ciência que se ensina na escola é um sistema acabado, elaborado a partir de processos históricos e psicológicos que poderiam explica-lo. Mas, tais processos são ignorados no ensino. O que é apresentado é sempre um produto acabado.
Outra observação de Broudy que convém considerar é a que segue:
Essa discrepância [entre estrutura da ciência e seu desenvolvimento histórico] é importante por diversos motivos. Um deles é o de que a estrutura lógica de uma disciplina não proporciona qualquer direção útil sobre como o aluno pode descobri-la e aprende-la. […[ A habilidade de compreender sistemas conceituais é um dos mais amplamente reconhecidos índices da qualidade intelectual. Desde Platão há uma forte tradição – não isenta de críticas – de que a pessoas que dominam a teoria são melhores e certamente mais raras que as pessoas práticas. Um currículo que acentua a habilidade conceitual é altamente abstrato e facilmente faz com que muitos membros – talvez a maioria – da comunidade escolar se julguem incapazes e não tenham paciência para aprender os conteúdos típicos da ciência. (p. 4-5)
As análises do filósofo americano colocam em xeque o formalismo do discurso científico que é ensinado nas escolas. Este pode ser um ponto de chegada para um processo psicológico de elaboração de saberes que guarda certa relação com o processo histórico de sua construção. Mas, não é esse o caminho que se percorre no ensino de ciências. O que predomina é a apresentação de sistemas prontos, logicamente arranjados de acordo com as corporações científicas. Isso afasta as pessoas comuns da ciência.
Como dissemos, o ensino da ciência é um tema que já vem merecendo análises críticas há muito tempo. Broudy é apenas um dos autores que examina a questão e sugere que os possíveis caminhos de solução devem considerar os processos históricos e psicológicos de elaboração da ciência. Essa é uma discussão que vai mais longe do que o que estamos querendo ressaltar aqui a partir de observações sobre processos de ensino em cursos do PROEJA. Por outro lado, elas situam as dificuldades que observamos no ensino de ciência para uma clientela adulta que já vem para a escola pensando que não será capaz de ter bons desempenhos na aprendizagem de disciplinas como física, química e biologia.
A questão observada numa aula de biologia é aparentemente didática. Se assim pensarmos, bastaria recorrer a um bom arsenal metodológico para encontrar uma solução. Mas, como já ficou caracterizado, ela não é apenas didática. Ela tem a ver com crenças a respeito das capacidades cognitivas de adultos que deixaram a escola há muito tempo. Tem a ver com concepções de como a ciência deve ser apresentada para os alunos no universo escolar. Neste último caso, como observam Gorz e Broudy, a própria concepção do que é ciência desempenha um papel fundamental no que acontece em sala de aula. Neste sentido, não se abre qualquer brecha quanto ao uso de concepções de ciência como um instrumento de poder na sociedade. As explicações todas recaem na suposta incapacidade dos alunos, sobretudo os mais maduros, de aprender ciência.
Podemos concluir essas notas dizendo que o ensino de ciência da forma que ele ocorre em nossas escolas não é inclusivo. E ele é ainda menos inclusivo em cursos cuja clientela está voltando à escola com muita dificuldade, mas com esperança de que poderá concluir a sua educação de nível médio e aprender uma profissão. No ensino de ciência percebe-se com mais nitidez um problema que é mais amplo, o de crenças negativas quanto ás possibilidades de aprendizagem dos adultos.
Para oferecer outro ponto de partida para pensar inclusão dos adultos em processos educacionais, é conveniente recorrer a um estudo feito sobre falta de oportunidade de treinamento para trabalhadores mais maduros nas empresas (IMEL, 1996). Destacamos no estudo da autora citada o trecho que segue:
Os trabalhadores mais velhos não temem a mudança, temem a discriminação (Carnevale and Stone 1994). A ênfase negativa no fator idade, resultando num céu cinzento que não concede aos trabalhadores mais velhos oportunidades iguais e tratamento equitativo, parece ser um problema sério no mercado de trabalho (Siegel, 1993). Entre as barreiras e obstáculos enfrentados, os mais significativos são vieses gerenciais de que os trabalhadores mais velhos são muito caros, muito inflexíveis, e muito difíceis de serem treinados. Estes vieses resultam em falta de acesso ao treinamento que poderia capacitar os trabalhadores mais velhos para manter sua produtividade e valor (AARP 1995; Hall and Mirvis 1994). As políticas empresariais desfavoráveis nascem de atitudes e estereótipos mais significativos que os relatados pelos representantes das organizações. Apesar dos gerentes dizerem que há atitudes muito positivas no trato com os trabalhadores mais velhos, as políticas corporativas não confirmam suas palavras.
Abrindo portas em hotéis
O título dessa seção parece estranho num relato sobre observações para estudo que aborda verticalização do ensino em EPT. Abrir portas é um ato banal. E é banal também abrir portas de unidades de hospedagem utilizando um cartão magnético. Mas, como veremos a seguir, abrir portas com cartões magnéticos pode não ser tão banal quanto parece. O que segue decorre de observação de uma aula de curso que tem por objetivo capacitar camareiras para o trabalho em hotéis de três, quatro ou cinco estrelas.
A observação ocorreu num curso de capacitação de camareiras para meios de hospedagem. A duração do programa é de 220 horas, articulando parte teórica com aprendizagem de técnicas num hotel associado à instituição de educação profissional visitada. As alunas são adultas, com idade variando de vinte e dois a quarenta e cinco anos. A maior parte delas está regressando a oportunidade de ensino formal muitos anos depois de ter deixado a escola. As exigências de escolaridade para ingresso não são muito rígidas. Candidatas com apenas alguns anos de escolaridade do ensino fundamental podem ser aceitas, dependendo de resultado de entrevista. Mas, a maioria tem ensino fundamental completo, e duas delas são universitárias. O curso está apenas na segunda semana e as alunas estudam no momento noções básicas de hospedagem.
A aula já está na metade. A professora comenta conteúdo de um manual sobre a ocupação de camareira e princípios gerais de qualidades de serviço em relações com o trabalho da hotelaria. E na conversa ela também vai introduzindo informações sobre o dia a dia do serviço de camareiras. Numa dessas informações, a docente comenta o uso de cartões magnéticos para abrir unidades de hospedagem. Para deixar as coisas bem claras, ela diz que tais cartões são parecidos com cartões de crédito. E para complementar as informações, a docente vai até o armário do apartamento modelo onde a aula está ocorrendo e retira de lá um kit que contém objetos utilizados por profissionais e hóspedes em meios de hospedagem ( cartão de “Não Pertube”, lista de roupa para lavanderia, cartão de identificação do hóspede, cartão magnético para abertura da porta, etc.). Uma boa parte das alunas do curso (são quatorze na sala de aula) desconhece completamente uma prática hoje comum na maioria dos hotéis. Isso pode parecer banal. Vale, porém, examinar o caso em seus possíveis desdobramentos.
O que boa parte das alunas ignora precisa ser examinado a partir de possíveis questões vinculadas à origem socioeconômica das estudantes. O fato mostra que aquelas moças e senhoras jamais haviam se hospedado em hotel que adote medidas de segurança e controle que se tornaram comuns com o desenvolvimento de tecnologias digitais, embora estejam se preparando para trabalhar em tal tipo de hotel.
Na situação observada, a conversa sobre os cartões magnéticos não fica apenas na revelação de ignorância imprevista das alunas quanto a um aspecto banal no funcionamento de hotéis nos dias de hoje. Na medida em que a professora explica o funcionamento do cartão magnético na abertura de unidades de hospedagem, as alunas manifestam muitas curiosidades a respeito do assunto. Perguntam se as camareiras também abrem portas com cartões magnéticos. Perguntam se os hóspedes podem sair do hotel portando aquele objeto. Perguntam se os tais cartões podem garantir segurança. Todas as indagações das estudantes do curso de camareira soam estranhas para pessoas que frequentam hotéis habitualmente.
A conversa sobre cartões magnéticos utilizados como chaves em hotéis evidencia questão que não costuma ser considerada explicitamente em educação profissional, a de que o ingresso de pessoas de classes sociais menos privilegiadas em cursos que têm como alvo ocupações em setores modernos da economia pode ser um choque cultural impactante. Muitos objetos do trabalho, assim como sistemas e normas de funcionamento das atividades num dado setor de produção ou de serviços, são aspectos de um ambiente completamente estranho para os alunos. E é possível que algumas dimensões do trabalho não sejam assimiladas devidamente pelos estudantes.
Num projeto da Organização Mundial de Saúde para formação de agentes de saúde em comunidades periféricas de grandes cidades, a educadora argentina Maria Cristina Davini (1986) observou que havia grande dificuldade para que as alunas adotassem normas esterilização de objetos utilizados em postos de saúde. As práticas de esterilização seguiam padrões para garantir eliminação de micro-organismos. Mas, a aparência de um objeto esterilizado ou limpo é a mesma. Essas práticas supunham convicções de que os micro-organismos, apesar de invisíveis, existem e não são eliminados por cuidados de limpeza. Para as alunas do projeto, mulheres pobres das periferias urbanas, bastavam medidas cuidadosas de limpeza. Elas resistiam a utilizar autoclaves para esterilizar os objetos de uso em processos de atendimento dos pacientes. A professora Davini observava na ocasião que não bastavam informações bem desenvolvidas para mudar o comportamento das alunas do curso de formação de agentes de saúde. Mesmo bem informadas, elas relutavam em adotar práticas que garantissem esterilização de equipamentos e ferramentas que utilizavam. Não bastavam, no caso, medidas educacionais imediatas. Padrões culturais arraigados não mudam necessariamente com o ensino. Na experiência narrada pela educadora argentina, foi preciso adotar medidas de gestão que assegurassem as necessárias medidas de esterilização nos postos de saúde. Isso resolvia precariamente o problema, mas permaneceu o desafio de educar as pessoas da periferia urbana para que estas mudassem hábitos e crenças decorrentes de suas condições e história de vida.
A situação encontrada já mereceu atenção de analistas do ensino escolar. Cabe aqui recorrer a uma deles, o educador italiano Francesco Tonucci (2015), que em comentário sobre a educação fundamental e a dificuldades enfrentadas por crianças das classes populares observa:
E ainda hoje, a escola é uma proposta para crianças que sabem muito. Não é uma proposta para crianças que nada sabem. O conferencista identifica sinais disso na fala de uma professora: “Sinto muito, seu filho não consegue me acompanhar”. Essa professora espera que os alunos venham preparados de suas casas. Espera que dominem uma linguagem que lhes permita acompanhar o que ela diz. Essa e muitas outras professoras e professores dirão que as famílias não ajudam a escola. Esses mestres, embora não o digam claramente, imaginam que a escola deve apenas complementar a educação que se recebe em casa. Esse é um ponto que nossos professores devem considerar com muita atenção, pois as famílias das classes populares não têm capital cultural que possa ser repassado para seus herdeiros. Para se apossarem de tal capital, os filhos das famílias menos privilegiadas dependem inteiramente da escola.
A observação de Tonucci mostra uma escola que apenas reelabora um saber que o aluno já traz para a sala de aula. Caso não traga tal saber para a sala de aula, o destino provável do aluno é o fracasso. E o fracasso acontece porque a escola é incapaz de ver que seus alunos das classes populares não têm o capital cultural esperado. E, por essa razão, como diz a professora que o autor critica, os alunos das classes populares não conseguem acompanhar o que se ensina[24].
O ponto aqui abordado é muito importante em estudos sobre verticalização do ensino. A verticalização, muitas vezes, é entendida apenas como uma forma de organizar ofertas educacionais tendo em vista a estrutura formal de ensino. Mas o formalismo da estrutura de ensino não capta as questões sociais, culturais e econômicas de alunos interessados em se capacitar profissionalmente ou em aperfeiçoar seus conhecimentos relacionados com o trabalho. A todos os alunos é oferecido o mesmo ensino com as características que Tonucci julga incompatíveis com o saber das classes menos favorecidas. Quando as carências culturais dos menos desfavorecidos são ignoradas, os resultados educacionais podem impedir acesso ao saber necessário para o trabalho. E este saber, como estamos vendo no caso da formação de camareiras, não pode ficar restrito aos aspectos técnicos da profissão. Há dimensões culturais que precisam ser consideradas, caso contrário os trabalhadores poderão ter dificuldades para conseguir emprego e nele se manterem.
O que se observa aqui não é um problema que decorre de escolaridade. O que se observa aqui é um problema que decorre da origem socioeconômica dos alunos. Os mundos de significados em que ingressam durante sua formação profissional é completamente novo e pode contrariar muitas das crenças presentes na cultura em que vivem e foram educados. Cabe reparar que no caso das moças e senhoras do curso de camareira, muitas das alunas têm curso médio completo. A escolaridade, porém, não assegura conhecimentos que são determinados principalmente pelo acesso a bens de consumo ou a ambientes que, para serem frequentados, exigem alto padrão aquisitivo das pessoas. É bastante provável que aquelas alunas tenham feito um ensino médio em escolas que adotam propostas de ensino como as criticadas pelo autor italiano.
Voltemos à formação de camareiras. Em estudo sobre efetividade da formação desenvolvida pelo PRONATEC (BARATO, 2017), realizou-se uma longa entrevista com aluna considerada como caso de sucesso do Programa. Ela foi indicada por educadores que coordenaram a realização de um curso de camareira na região de Campinas. A indicada, dado o desempenho nas práticas profissionais, foi contratada imediatamente após sua formação pela empresa em que estagiou durante o curso. O caso foi considerado de sucesso por vários motivos. A aluna:
- jamais tivera carteira assinada, apesar de ter trabalhado desde os treze anos de idade;
- tinha apenas escolaridade equivalente à quinta série do ensino fundamental;
- era pessoa adulta, com quarenta e seis anos, que deixara os bancos escolares há mais de três décadas.
O sucesso da aluna parecia indicar que um curso de camareira bem planejado poderia ser um instrumento capaz de garantir incorporação ao mercado formal de trabalho para pessoas que haviam passado boa parte de sua existência trabalhando em situações de grande precariedade. A profissional foi entrevistada dois anos e meio após sua formação e ingresso no mercado de trabalho como camareira num hotel quatro estrelas. Na ocasião da entrevista, ela estava desempregada há um ano e meio. Fora demitida do hotel que a contratou por reconhecer suas competências profissionais, mas que a dispensou antes que ela completasse um ano como funcionária da empresa. Na entrevista, procurou-se determinar o porquê do desenlace pouco favorável de uma situação que começou como caso de sucesso. Os dados de entrevista não indicam qualquer motivo que tenha a ver com incapacidade técnica da aluna. Ela era uma camareira que conhecia bem seu ofício e o exercia com muita competência. Uma das explicações dadas pela entrevistada foi a de que ela não sabia se comunicar em inglês. Isso pareceu bastante improvável porque camareiras raramente se comunicam com os hóspedes, nacionais ou estrangeiros. Mas, durante a entrevista foram aparecendo indícios dos motivos pelos quais aquela profissional não conseguiu manter-se no emprego.
A ex-camareira vivia numa casa de laje na periferia urbana. Pela descrição que ela fez de sua residência e do entorno, havia indicações de que a sua moradia era uma unidade habitacional numa favela urbanizada. Além de viver em moradia precária, a entrevistada não participava de grupos religiosos e culturais que costumam enriquecer culturalmente os moradores da periferia[25]. Ao se comunicar, ela revelava domínio muito pobre do idioma. Essas e outras indicações foram delineando quadro do porquê a profissional fora demitida. Ela, nos contados com as chefias, era vista como uma funcionária com nível cultural inaceitável para a empresa. Essa explicação é compatível com os muitos fracassos experimentados pela ex-camareira em entrevistas de emprego em outras redes hoteleiras de perfil similar a que a contratara logo após o curso. Outro sinal das dificuldades culturais que ele enfrentava era o do trabalho eventual que estava fazendo na época da entrevista, o de diarista. Perguntada sobre a remuneração diária que vinha recebendo, ela disse que a diária era de R$80,00 (oitenta reais). Este número é bastante inferior aos R$150,00 (cento e cinquenta reais) que normalmente pagos a faxineiras nos bairros de classe média alta de Campinas. A entrevistada tinha dificuldades de acesso a casas em que seu trabalho pudesse ser bem remunerado. Isso sinaliza que ela não tem em seu entorno relações que possam abrir-lhe portas de trabalho melhor remunerado. O curso do PRONATEC funcionou como uma ponte que facilitou seu ingresso numa empresa moderna, mas essa oportunidade educacional não fez desaparecer as imensas diferenças culturais que lhe criam dificuldades para continuar empregada como camareira em hotéis de quatro estrelas (tipo de empresa em que ela ainda continuava a buscar ocupação na época da entrevista).
O caso aparentemente banal do cartão magnético em aula para alunas do curso de camareira mostra uma questão com desdobramentos educacionais e ocupacionais. No plano educacional, ele sugere que algumas dificuldades que os alunos podem enfrentar estão relacionadas com origem social. Ou, mais especificamente, com o capital cultural que alunos trazem para a escola. No plano ocupacional, ele mostra que as empresas não olham apenas para as competências técnicas de seus empregados. No plano educacional é preciso identificar possíveis carências culturais dos alunos e verificar como é possível superar o problema. Em análise efetuada sobre os cursos do Sheffield College, verificamos que a instituição oferece programas complementares de idioma (inglês) e de matemática para alunos que revelam alguma dificuldade nestas duas áreas. Medidas assim talvez não superem as carências culturais exemplificadas com o caso do cartão magnético. Mas, são tentativas que convém considerar. A superação de dificuldades culturais como as aqui examinadas não se resolve apenas com educação. Mas, essa pode desempenhar um papel importante em necessários processos de mudança.
O que destacamos a partir do caso de um curso para capacitar camareiras e da lembrança de propostas de complementação da formação de trabalhadores em idiomas e matemática no Sheffield College sugere cuidado de inclusão que não é adotado por instituições de educação profissional no Brasil. Essas instituições não têm planos bem estruturados de educação compensatória que possam ajudar os menos favorecidos a superarem algumas de suas carências educacionais e culturais. O que apontamos aqui é uma questão que precisa ser considerada na verticalização do ensino em EPT. Na verticalização não basta abrir o leque ocupacional e garantir acesso das pessoas a cursos básicos de educação profissional (o curso de camareira é típico neste sentido). A verticalização deve também incluir cuidados que garantam ás pessoas possibilidade de superarem grandes deficiências culturais decorrentes de um capital cultural muito pobre. Medidas de educação compensatória como as verificadas no Sheffield College e em San Diego devem ser consideradas. O que a observação no curso de camareira indicou foi a necessidade de refinar o conceito de verticalização do ensino em EPT para que ele inclua cuidados relativos o acolhimento educacional de pessoas que sofrem grandes impactos culturais quando recebem informações muito distantes de seu universo cultural.
Formação técnica pós-secundária
No desenvolvimento deste estudo, optamos por não aprofundar análises sobre o ensino técnico convencional, oferecido para jovens que acabaram de concluir sua educação fundamental. Preferimos concentrar esforços na observação de cursos técnicos subsequentes. Razões para tal escolha estão devem-se a vinculações dos cursos subsequentes com o trabalho imediato e das semelhanças que tal modalidade de ensino tem com os cursos pós-secundários ofertados em outros países. Além disso, no decorrer da investigação, ficou muito claro que os cursos técnicos subsequentes são programas pós-secundários de fato, embora sejam vistos como cursos técnicos oferecidos para clientela que não pode passar por uma habilitação profissional em idade própria. Na verdade, tais cursos são uma modalidade que precisa ser mais estudada tendo em vista propostas de verticalização da EPT.
No que segue, vamos examinar exemplos de cursos de capacitação profissional pós-secundária desenvolvidos em instituições internacionais. Na continuidade, vamos apresentar seleção de narrativas de acompanhamentos realizados em diversos cursos técnicos subsequentes em diversas organizações de educação profissional e tecnológica.
Educação pós-secundária no Sheffield College
Uma das referências internacionais escolhidas para este estudo, o Sheffield College, instituição britânica que acolhe principalmente egressos do ensino obrigatório do país, uma clientela que tem dezesseis anos ou mais e busca capacitação profissional imediata ou preparação para prosseguir estudos em universidades. No sistema britânico de ensino, a escolaridade obrigatória dura onze anos e os alunos a concluem por volta dos dezesseis anos. Nessa idade podem ingressar no mercado de trabalho ou dedicar mais dois anos em média para se preparem para o ensino universitário. Os concluintes do ensino obrigatório não têm qualquer qualificação para o trabalho. Assim, se ingressarem em alguma empresa, ocuparão postos de trabalho que não demandam conhecimentos específicos em termos ocupacionais.
Há também na instituição oferta de educação para adultos, desempregados ou empregados. Aos adultos são ofertados, quase sempre, os mesmos cursos oferecidos aos jovens egressos do ensino básico. Há situações, porém, em que o desenho do curso associa educação formal com experiência profissional cotidiana dos alunos. Neste último caso, supõe-se que a clientela é constituída por jovens e jovens adultos que buscam mais aprender sobre seus ofícios ou sobre oportunidades de mudança no universo ocupacional.
Num estudo clássico sobre a relação de filhos de operários, cursando o ano final da educação obrigatória, com o trabalho, Paul Willis (1991) descreve uma juventude que tem consciência de que ingressará no mundo do trabalho em ocupações pouco exigentes em termos de capacitação profissional, bastando, para exercê-las, a educação escolar que receberam e os conhecimentos desenvolvidos em seus grupos de referência. Nesse caso, supõe-se que os jovens aprenderão as necessárias atividades laborais no e pelo trabalho em curto espaço de tempo. Há, porém, muitas ocupações que demandam capacitação profissional formal em instituições de ensino, particularmente os colleges e academias. Essas alternativas são bastante variadas e incluem formações básicas, intermediárias e universitárias. O portfólio dos cursos do Sheffield College exemplifica muito claramente esse leque de formação profissional e tecnológica no Reino Unido. Assim, aos jovens egressos do ensino obrigatório, engajados imediatamente no mercado de trabalho ou interessados numa formação sistemática antes de começarem sua vida laboral, o college oferece um imenso leque de oportunidades de capacitação profissional.
A hierarquia dos cursos pode ser interpretada a partir de duas referências, ocupacional e educacional. Os níveis de formação quase sempre refletem julgamentos quanto à posição da ocupação ou ocupações equivalentes na estrutura do trabalho, mas eles também refletem o suposto nível de ensino em que são desenvolvidos. Pode-se, nesse sentido, utilizar a proposta de classificação de níveis ocupacionais nos NVQ’s (National Vocational Qualifications) com os níveis (Levels) utilizados para rotular os cursos.
As qualificações que são objeto de avaliação no sistema NVQ mostram grande concentração em torno das NVQ’s 2 e 3 (HYLAND 1994, TREVISAN, 2001)), refletindo expectativa de que a maioria das ocupações que requerem capacitação dos trabalhadores são intermediárias.
As particularidades do sistema educacional britânico não permite comparação direta do que se faz no Sheffield College com a educação que é oferecida em nossos Institutos Federais, no Sistema S, e em escolas técnicas de redes estaduais. É preciso certo cuidado interpretativo para fazer comparações entre a educação profissional e tecnológica do Reino Unido e a do Brasil.
Para o biênio 2018/2019, a instituição de Sheffield está oferecendo 490 cursos em diferentes áreas ocupacionais, com a seguinte distribuição por níveis:
- Nível introdutório: 11,5%.
- Nível 1: 12,8%.
- Nível 2: 26.2%.
- Nível 3: 34,8%.
- Nível superior: 14,7%.
Os dados mostram oferta verticalizada do ensino no campo da educação profissional e tecnológica, não deixando de fora nenhuma possibilidade de capacitação para o trabalho. Cabe reparar que o nível introdutório não está voltado para trabalho ou ocupação específica e que o nível 1 está voltado para ocupações básicas. Esses dois primeiros níveis guardam alguma relação com nossas FIC´s. O college concentra sua oferta educacional em torno dos cursos de nível 2 e 3 que, apesar de serem pós-secundários, podem ser comparados com os nossos auxiliar técnico e técnico.
Primeira aproximação: análise de cursos para ocupações do campo
Para situar os níveis de ensino nos cursos oferecidos pelo Sheffield College convém mostrar concretamente as oportunidades educacionais voltadas para um setor da economia. É isso que faremos nesta seção.
Na área primária da economia, o college oferece diversos cursos para um setor ocupacional designado como Animal Care. No que segue, fazemos um resumo interpretativo de alguns cursos oferecidos para mostrar a diversidade dos níveis dos programas pós-secundários.
Agriculture Level 2. O curso é um dos muitos credenciados e reconhecidos peloBTEC-Business and Technology Education Council. É destinado a ampliar conhecimentos científicos sobre atividades agrícolas, cobrindo vários aspectos do trabalho no campo. Dura um ano e requer seis semanas de estágio na fase intermediária de estudos.
Preparation for Animal Care Level 2. Este é um curso sem pré-requisitos e tem porobjetivo preparar os alunos para continuar estudos na área. O currículo não prevê estágios. O que se aprende no curso são informações gerais sobre o trabalho no campo. Se não continuarem estudos, os alunos provavelmente ingressarão em atividade básicas do trabalho agrícola, em ocupações equivalentes ao nível 1 das NVQ’s.
Animal Management Level 3. É um curso de aprofundamento de saberes e habilidadesdesenvolvidos no curso de nível 2. Supõe-se que os egressos trabalharão com mais autonomia que os concluintes do nível anterior. Este curso tem mais orientação para o trabalho que os de nível 2 na área.
Veterinary Care Assitent Level 2. O curso prepara os estudantes para o trabalhocomo auxiliares de veterinários. Dura um ano e tem várias atividades em clínicas. Funciona como pré-requisito para cursos de nível 3 como Animal Nursing ou Animal Management. Ele também pode ser terminal para alunos que resolverem se engajar de imediato no mercado de trabalho.
Veterinary Nursing Apprenticeship Level 3. O curso destina-se tanto a aprendizescomo a egressos do ensino obrigatório. Concluintes de Aprendizagem no nível 3 poderão continuar estudos em universidades, seja como estudantes comuns, seja como aprendizes [No Reino Unido. Os estudantes desenvolvem seus saberes principalmente nos locais de trabalho para os quais foram contratados como aprendizes. Eles têm aulas no college apenas um dia por semana, nos demais dias engajam-se em atividades nas clínicas veterinárias. Auxiliares de enfermagem veterinária apoiam veterinários em todas as situações de necessários cuidados voltados para a saúde dos animais. Alunos que concluem essa aprendizagem de nível 3 poderão ingressar no trabalho como auxiliares de enfermagem e/ou prosseguir estudos em nível universitário em cursos tais como: Enfermagem Veterinária, Comportamento (Psicologia) Animal, Bioveterinária, Veterinária para Equinos.
Nessa primeira análise já é possível registrar algumas tendências:
- Para os concluintes do ensino obrigatório são oferecidas oportunidades de capacitação profissional nos níveis 2 e 3, quase sempre em progressões de estudo que supõem que os alunos cursarão cada etapa de desenvolvimento numa dada ocupação ou atividade de trabalho. O nível 2 é terminal e pode preparar o candidato para ingresso no mercado de trabalho. Mas, não prepara o aluno para trabalho que dispense supervisão contínua. Para execução do trabalho com mais autonomia, espera-se que o estudante curse o nível 3. Atrás mencionamos que o nível 2 lembra nosso auxiliar técnico, e o nível 3 nosso técnico. Mas, essa é uma referência para que se possa entender diferenças entre uma e outra fase de formação. Cabe sempre lembrar que a educação profissional no Reino Unido é pós-secundária. Nem sempre há sequências de cursos nos dois níveis. Em alguns campos de trabalho a formação cessa no nível 2. Há que se reparar, porém, que há possibilidade de continuidade de estudos em área assemelhada no nível 3.
- Em quase todas as áreas ocupacionais predominam cursos de nível 2 e 3. Há duas explicações para isso. Cursos em tais níveis são ofertas naturais para alunos que acabam de concluir sua escolaridade obrigatória por volta dos dezesseis anos e buscam alguma preparação para ingressarem no mercado de trabalho. A outra explicação tem a ver com a estrutura do trabalho, a maior parte das oportunidades de emprego se concentram em ocupações de nível 2 e 3, tanto em classificações dos cursos como na classificação de competências dos NVQs.
- Os modelos adotados na organização curricular dependem muito da área ocupacional e dos ambientes de aprendizagem em que os alunos irão desenvolver seus saberes.
- Nesta área já aparece um exemplo de Aprendizagem que não registramos no Brasil. O college oferece Aprendizagem para formar auxiliares de enfermagem veterinária. Essa formação supõe bastante conhecimento científico que, no nosso caso, seria objeto de ensino escolar, não de elaboração de saber pelo trabalho. Em todas as Aprendizagens oferecidas pelo college, os alunos comparecem à escola apenas uma vez por semana. Nos demais dias, em trinta horas ou mais de trabalho, desenvolvem atividades nas empresas que os contratou. Embora a documentação disponível não explicite as abordagens metodológicas utilizadas, é de se presumir que a Aprendizagem é uma opção não só de trabalho como também educacional. Nela os alunos aprendem princípios e fundamentos do trabalho por meio da ação.
Uma área especial: Childcare
O Sheffield College sugere que algumas das capacitações para cuidado de crianças podem ser desenvolvidas no nível 2 (auxiliar técnico) e 3 (técnico). Essa é a característica de uma área especial, Childcare. As propostas da instituição britânica podem sugerir algumas direções para a preparação de agentes de educação infantil que talvez não estejam sendo consideradas pelas nossas instituições de EPT. Por essa razão daremos certo destaque à mencionada área neste estudo. Para tanto, vamos apresentar uma síntese dos cursos oferecidos, tendo como fonte o catálogo de cursos do Sheffield College.
Caring for Children Level 1. O curso foi planejado para que os alunos desenvolvamconhecimento prático necessário para o exercício de atividades supervisionadas no campo do cuidado com crianças. Necessariamente o aluno precisa conseguir um local para estágio concomitante com sua formação no college. Sobre isso, o catálogo esclarece:
A experiência de trabalho é valiosa como parte de sua formação e irá garantir que você esteja completamente preparado profissionalmente no final de seus estudos. Muitas, senão todas, instituições de ensino superior esperam que seus candidatos tenham experiência desenvolvida durante sua formação profissional [pós-secundária]. Estágio de um dia por semana durante o curso é parte integrante do programa.
O curso, de nível básico, exige um certificado de GCSE [ensino médio] com menções de pelo menos C. Alunos que não alcançaram tal desempenho no final de sua educação básica deverão fazer cursos compensatórios de inglês e matemática oferecidos pelo college. Se compararmos a proposta do curso com as funções desempenhadas em creches no Brasil, podemos entender que o curso forma cuidadores de crianças para o trabalho em escolas de educação infantil.
Childcare Apprendisceship Level 2. O curso forma auxiliares de educação infantil e prepara os alunos para prosseguir sua formação em níveis mais elevados. Destacamos aqui existência de Aprendizagem naárea de educação. No catálogo, o programa é descrito como segue:
Como aprendiz, você estará trabalhando com educação infantil em creches ou pré-escolas. Você estará no posto de trabalho quatro dias por semana e um dia no college. Um dia típico de trabalho envolverá receber as crianças e acomoda-las no ambiente. Você auxiliará profissionais na alimentação das crianças e na preparação delas para dormir. Uma vez que tenha a necessária experiência, você poderá assumir coordenação de atividades de recreação ou ajudar a planeja-las.
Childcare BTEC Level 2. De certa forma, esse curso é equivalente ao programa deAprendizagem no mesmo nível. A diferença maior é a de que grande parte do tempo os alunos estarão no college em atividades convencionais de estudo, mas a obrigatoriedade de estágio simultâneo às aulas faz parte do plano de curso.
Childcare BTEC Level 3. As mesmas observações feitas anteriormente valem aqui paraesse curso que guarda equivalência com a mesma formação feita por meio de Aprendizagem.
Há um grande número de cursos pós-secundários não universitários no Sheffield College. Para os fins deste estudo, fizemos seleção de alguns exemplos que podem ser considerados como referências para a educação pós-secundária no Brasil. É particularmente interessante a existência de programas de Aprendizagem para ocupações que no Brasil exigiriam, pelo menos, habilitação profissional de nível médio.
Cursos pós-secundários no Seneca Colege
O Seneca College, instituição canadense, oferece grande número de programas que não são de nível superior; são pós-secundários. É difícil caracterizar essa oferta a partir de categorias que utilizamos em nosso sistema de educação profissional e tecnológica. Talvez alguns programas possam ser caracterizados como qualificação profissional, outros como iniciação, outros ainda como especialização. Há também a possibilidade de frequentar cursos avulsos porque, além de alguns programas estruturados pelo college para situações específicas, os alunos podem escolher isoladamente qualquer curso que integre o currículo de um programa oferecido pela instituição. Cabe lembrar que no Seneca o termo curso tem o mesmo significado utilizado em outras instituições educacionais canadenses e americanas. Os cursos são conjuntos de unidades (geralmente três unidades definidas por três horas semanais de aulas ou atividades em laboratórios e oficinas) que podem compor currículo dos programas oferecidos pelo college. No Miramar College, instituição americana,os cursos são reunidos em seção específica do catálogo. No Seneca College eles aparecem dispersos pelos programas ou áreas, o que dificulta sua identificação de modo independente.
Exemplos de cursos pós-secundários
Em programação de computadores há um grande número de cursos (avulsos) para interessados em linguagens ou técnicas. Nessa área, é possível frequentar isoladamente cursos como:
- Macro Programming.
- Visual Basic Macro Programming.
- Java Programming.
Não há certificados específicos para tais cursos. Eles são apenas ofertas de educação para profissionais interessados em mais aprender em seu campo de atuação.
Além da possibilidade de alunos ingressarem em cursos avulsos. O college organiza oportunidade de formação profissional, compondo conjuntos de cursos que podem apoiar os alunos na aprendizagem de ocupações ou habilidades requeridas pelo mercado de trabalho. Esses arranjos não resultam em cursos de nível superior, mas são educação pós-secundária. É difícil, mais uma vez, compará-los com categorias que utilizamos em EPT no Brasil. Podemos utilizar aqui o rótulo geral de capacitação profissional, embora o college utilize diferentes rótulos para tais programas. O que consideramos capacitação profissional pós-secundária recebe no college os rótulos de Recognition of Achievement, Seneca College Certificate, Workshops. Há ainda programas que não recebem qualquer rótulo classificatório. Convém mostrar alguns exemplos de cada uma das citadas categorias.
Comecemos com os programas que fornecem aos conluintes um Certificate of Achievement. Um deles é o Food Quality Control. O portal do Seneca assim o descreve:
O Food Quality Control aborda temas importantes de controle de alimentos, do ponto de vista dos produtores e da legislação, reconhecendo a necessidade da qualidade no plano dos distribuidores, dos varejistas, dos consumidores. O programa abrange conhecimentos e habilidades requeridos pela introdução de sucesso de sistemas de controle, como os baseados em princípios aceitos de Good Manufacturing Practice (GMP) e outros padrões internacionais de gestão de qualidade.
O currículo do programa inclui:
- Applied Food Microbilogy.
- Food Quality Control.
- Food Chemestry Introduction.
- Food Chemestry Analysis.
Análise da descrição do programa e do currículo indica que não se trata de qualificação profissional. Não é também iniciação profissional. É uma complementação de formação para quem já trabalha na indústria de alimentos. É um caso exemplar de educação continuada. Os pré-requisitos de ingresso caracterizam o programa como pós-secundário. Há, porém, outros Certificates of Achievement que sugerem qualificação profissional. Este é o caso do Manicurist, assim descrito pelo portal do Seneca:
Como o cuidado com as unhas continua a crescer, o programa Manicurist foi planejado especificamente para indivíduos que têm paixão por unhas e interesse por trabalhar com mãos e pés. O ROA (Recognition of Achievement) consiste em três cursos que cobrem tópicos como noções básicas de estética, manicure e pedicure. Ao completar o programa, o aluno terá conhecimento para realizar operações de cuidado de unhas dos pés e das mãos, e entendimento das operações fundamentais nesse tipo de trabalho.
O currículo inclui três cursos:
- Noções Básicas de Estética.
- Manicure.
- Pedicure.
A titulo de comparação, escolhemos como referência um dos cursos de Manicure e Pedicure desenvolvidos no Brasil (SENAC SP, 2018). O portal institucional do SENAC de São Paulo assim define o curso:
Capacitar o profissional para atuar como manicure e pedicure, por meio de técnicas específicas e habilidades de higienização, corte, lixamento, hidratação e esfoliação, colocação de unhas postiças e de decoração, para o embelezamento e cuidado das unhas das mãos e dos pés, atendendo às normas de biossegurança.
A descrição do curso brasileiro é muito parecida com a descrição do curso canadense. Em ambos os casos, há uma oferta educacional que resulta em qualificação profissional ou capacitação do aluno para o exercício de uma ocupação reconhecível no mercado de trabalho. Mas, o curso brasileiro não é pós-secundário.
Mais Certificates of Achievements poderiam ser considerados aqui e, a cada caso, constataríamos que a categoria está sujeita a diversas leituras em termos de capacitação profissional, aproximando-se ora do que chamaríamos e qualificação profissional, ora de aperfeiçoamento, ora de especialização. Trata-se de formação pós-secundária vinculada ao trabalho com diversos arranjos em termos curriculares.
Pós-secundários no Brasil
Neste capítulo, com o objetivo de mostrar que na prática já existem cursos pós-secundários no Brasil, mostramos situações em que os estudantes já terminaram seus estudos de ensino médio e estão se preparando para o trabalho em programas não universitários.
Subsequentes ou pós secundários?
Fazemos aqui narrativas de observações em diversos cursos técnicos subsequentes. Tais cursos devem ser classificados como algo completamente diferente dos cursos técnicos oferecidos para adolescentes, geralmente em arranjos de ensino médio integrado. Os cursos técnicos subsequentes são na verdade educação pós secundária. No seu desenvolvimento eles têm características que os afastam do ensino secundário convencional, desenvolvido para pessoas estão que se convencionou chamar de “em idade própria”. Nas atuais práticas das instituições de EPT, o subsequente é visto apenas como uma das modalidades de ensino técnico. Essa visão não costuma considerar a clientela que frequenta cursos técnicos subsequentes. Os alunos que encontramos em tais cursos são adultos com escolaridade elevada e experiências diversificadas de trabalho. No geral, esses estudantes são diferentes de estudantes que estão concluindo o ensino básico, são maduros, têm mais interesse em aprender que os adolescentes, e suas motivações para fazer um curso técnico, ou mais propriamente um curso técnico pós-secundário, diferem das encontradas entre alunos de cursos técnicos convencionais. Suas razões para estudar em tal nível de ensino também são diferentes das razões que levam os adolescentes à escola.
Há um entendimento de que os cursos técnicos subsequentes são apenas uma segunda oportunidade de educação para quem não teve a chance de cursar ensino médio profissionalizante em idade própria. Esse entendimento desaparece na medida em que se conhecem os alunos matriculados em educação técnica pós-média. Eles são adultos que buscam educação profissional e tecnológica por diversos motivos, quase nunca o de fazer um curso que supra uma formação que não puderam alcançar na adolescência.
Idade, escolaridade e motivos dos alunos matriculados em cursos técnicos subsequentes acabam sugerindo um ensino muito distante daquele que se faz, supostamente, para capacitar pessoas para uma mesma ocupação no ensino médio convencional. A experiência que os alunos trazem do trabalho, por exemplo, resulta em arranjos de aprendizagem que não podem ser praticados em cursos técnicos regulares. Além disso, os alunos de programas de educação pós-secundária têm maturidade. Finalmente, os alunos de que estamos falando já passaram pela educação básica. Alguns deles, com formação universitária, trazem para o curso um repertório de conhecimento que pode criar um ambiente de intercâmbio cultural ausente em turmas constituídas por adolescentes que pertencem a uma mesma coorte geracional.
Entre os diversos grupos de alunos que ingressam em cursos técnicos subsequentes, há um segmento constituído por adultos que estiveram muito tempo ausentes da escola e a ela voltam para uma segunda oportunidade de aprendizagem. Em tal segmento, há pessoas que nunca tiveram laços formais de emprego e que tentam agora um caminho que os integre ao mercado formal. Há também pessoas que buscam o curso porque podem agora estudar por prazer. Essas pessoas não pensam no trabalho formal como destino após o curso. Elas querem apenas aprender conhecimentos que podem utilizar em sua vida cotidiana para fazer coisas prazerosas. Querem também aprender mais, desenvolver sua cultura por meio da aprendizagem de saberes técnicos que não são apenas um instrumento para o trabalho, mas um modo de ocupar tempos de lazer. Essa leitura de aprendizagem de conteúdos técnicos e tecnológicos não é usual, mas julgamos que ela deva ser feita a partir de vários casos que encontramos em nossas observações.
Ao analisar os registros de observações realizadas em cursos técnicos subsequentes de várias instituições de EPT julgamos que convém propor que tais oportunidades educacionais sejam consideradas como categoria independente em arranjos que têm por objetivo efetivar verticalização do ensino que considere tanto a estrutura ocupacional como as modalidades de ensino que melhor atendam a interesses dos diversos grupos sociais que buscam capacitação profissional. Para fundamentar tal proposta consideramos as observações realizadas para este estudo e que integram as narrativas que seguem.
O apelo da culinária
A disponibilidade de situações de observação nas instituições visitadas resultaram na indicação de três cursos técnicos subsequentes de cozinha como objeto de interesse investigativo. Cabe notar que a área de cozinha oferece possibilidades de análise de como mudanças recentes na estrutura ocupacional teve reflexos na oferta de cursos em diferentes níveis. Tais mudanças, como já se observou em estudo anterior (BARATO, 2015), resultaram num quadro de ofertas que inclui qualificação profissional, cursos técnicos e cursos superiores na formação de profissionais para a o trabalho em cozinhas. O mesmo movimento mostra alterações profundas no perfil da clientela que busca formação profissional no campo em análise. Por essa razão, embora as observações de cursos técnicos de cozinha tenham sido resultado de escolhas randômicas resultantes de indicação das instituições visitadas, as relações recentes entre trabalho e educação na cozinha, com a atração marcante que hoje existe por culinária, iluminam aspectos importantes da verticalização do ensino em EPT. Seguem relatos interpretativos do que se observou em três diferentes instituições que oferecem o curso em foco.
Técnico em Cozinha num Instituto Federal
O campus é relativamente novo (começou a funcionar em 2008). É uma unidade especializada em hotelaria, restauração e turismo receptivo. Tem cursos de iniciação, técnicos e tecnológicos desenvolvidos em espaços oficinais para todas as áreas, com destaque para oficinas e laboratórios em padaria, confeitaria e cozinha.
Duas professoras coordenam as atividades dos alunos na cozinha de aplicação. A docente com mais experiência já tem trinta anos de magistério e leciona em todos os níveis de formação (básico, técnico e superior). Ela ressalta a importância dos cursos técnicos, pois estes enfatizam um ensino voltado para a execução e ela entende que profissionais do setor, qualquer que seja seu nível de ensino, precisam dominar um repertório de técnicas que garanta trabalho fluente em termos de produção. Uma observação espontânea da professora merece registro, ela declarou que alunos de cursos técnicos do PROEJA são “ótimos cozinheiros, embora enfrentem dificuldades no estudo do português e da matemática”.
Os alunos são todos adultos, formando dois grupos bimodais, um com idades em torno de trinta, e outro com idades em torno de quarenta anos. Há apenas três alunos com idade em torno dos vinte anos e quatro alunos com idade superior a quarenta e cinco anos. As professoras informam que essa composição de alunos é comum nos períodos da tarde (a turma observada é do período vespertino) e da noite. Os alunos da manhã, segundo elas, são mais novos, pois muitos deles são jovens que não conseguiram ingressar no curso superior de gastronomia e optaram pelo técnico enquanto aguardam nova chance de ingresso no ensino superior. Seguem registros de entrevistas com alguns alunos.
Ela é uma senhora adulta de quarenta anos. Faz atualmente curso de gastronomia (superior) à distância. Tal curso, porém, não a satisfaz em termos das necessidades de domínio técnico dos fazeres da cozinha[26]. Por essa razão procurou o curso técnico no instituto. Ela continua a fazer o curso de tecnólogo em gastronomia à distância porque diz precisar do diploma superior para prosseguir estudos, pois pretende realizar pesquisas no campo da cozinha. Já fez um curso técnico na instituição, o de padaria, além de diversos cursos rápidos de confeitaria, bar e vinhos.
Outro aluno entrevistado é professor de química aposentado. Ensinou química no ensino médio da rede estadual de ensino. Hoje, aposentado, resolveu aprender técnicas de cozinha de maneira sistemática. Não pretende trabalhar na área, mas apenas cozinhar para família e amigos como hobby. Admite, porém, que se necessário, poderá assumir algum trabalho na área, mas essa não é sua intenção no momento.
O terceiro entrevistado é mais jovem. Tem vinte e nove anos, com várias experiências profissionais. Recentemente trabalhou numa lanchonete. Mas, não tinha planos de ingressar num curso técnico de cozinha. Como buscava alguma oportunidade de estudos, acabou encontrando o curso. Depois de algum tempo, diz ele, apaixonou-se pela cozinha. Quer agora fazer mais cursos técnicos na área (padaria e confeitaria) para depois tentar ingresso no curso superior de gastronomia.
A quarta entrevistada é uma senhora de cinquenta anos, cujo filho mais velho já tem vinte e sete anos. Ele veio do Interior para acompanhar os filhos em seus estudos na Capital. Hoje os filhos estão fora de casa. Ela ingressou no curso porque queria voltar aos estudos, depois de vinte e nove anos fora da escola. Vive no curso a experiência de regresso aos estudos. Não tem planos profissionais. No momento quer se ocupar e o curso preenche tal desejo. Gosta muito do que faz na cozinha de aplicação, pois sente muito prazer em aprender algo que envolva as mãos.
O quinto entrevistado é um rapaz que já teve várias experiências profissionais. É técnico em enfermagem e trabalhou em hospitais durante seis anos. Deixou recentemente seu trabalho no campo da saúde porque ao prestar serviços de enfermagem a um grupo de pacientes terminais acabou entrando em depressão. Sugeriram-lhe o curso de cozinha como uma oportunidade para se ocupar e como medida que poderia ajuda-lo a superar a fase depressiva. Diz que se encontrou no curso. Pensa em ingressar profissionalmente na área.
Uma moça mais jovem, do grupo de alunos em torno dos trinta anos, fez contabilidade. Mas, descontente com o trabalho burocrático, resolveu buscar outra oportunidade profissional. Por isso está no curso de técnico em cozinha. Seu destino profissional ainda não está planejado, mas acha que encontrará alguma ocupação na área de hotelaria.
A sétima entrevistada é um senhora formada em enfermagem e em direito. Já se aposentou e vem fazendo cursos no campo da hotelaria, restauração e produção alimentar. Já fez os técnicos de confeitaria e de panificação. Ela é outra aluna que não pretende ingressar no mercado de trabalho. Gosta de cozinha e vai utilizar o que aprende apenas em ocasiões especiais, produzindo almoços ou jantares para familiares e amigos.
Outra aluna entrevistada é uma senhora de quarenta e cinco anos. Voltou à escola depois de muito tempo e fez no instituto um curso técnico que associava padaria e confeitaria (esse curso não mais existe e a escola voltou a oferecer habilitações distintas para confeitaria e padaria). Agora faz o curso de cozinha, mas quer aproveitar o que está apendendo para aplicar, sempre que possível, em confeitaria. Ainda não decidiu se entrará no mercado para trabalhar o dia todo. Atualmente aceita encomendas eventuais para festas e eventos, mas não é ainda um trabalho no qual ela pretenda investir seus talentos.
Outros alunos não foram entrevistados mais longamente. Deles obtivemos apenas informações sobre escolaridade e interesses imediatos. Não é generalizado o interesse em trabalhar em restaurantes ou hotéis. Alguns alunos declaram que fazem o curso porque é uma oportunidade educacional de muita qualidade e que abre um leque para futuras opções (essas opções são indeterminadas, mas incluem quase sempre prosseguimento de estudos no nível superior). Todos os alunos concluíram o ensino médio. Seis alunos têm nível universitário.
A procura pelo curso técnico de cozinha é muito grande. Até 2016 o ingresso dependia de bons resultados em exame de seleção. A partir de então, os alunos são escolhidos por sorteio. O sorteio, porém, obedece também a cotas especiais para alunos de escolas públicas, para certas etnias, e para alunos cuja renda familiar seja muito baixa. Todas essas providências estão sendo tomadas tendo em vista inclusão sócio- educacional.
As atividades do dia estão voltadas para a produção de pratos da cozinha brasileira. Cada grupo fica responsável pela produção e um menu completo (entrada, prato principal e sobremesa). As equipes distribuem internamente as tarefas e o trabalho flui normalmente. O padrão de trabalho é o mesmo observado em oficinas de outras áreas. Há grande envolvimento dos alunos com as tarefas, mostrando que os mesmos têm muito interesse pela obra comum que estão produzindo. Esse interesse de adultos pelo aprender foi ressaltado pela coordenadora do curso em entrevista realizada pela manhã. A educadora ressaltou que em cursos técnicos subsequentes interesse é a norma, em contraste com o que se observa em cursos técnicos frequentados por adolescentes.
A cozinha não é um laboratório. É uma oficina. Não é um espaço onde os alunos testam princípios empiricamente. É um espaço de produção de obras. Nela, os saberes do trabalho não são convertidos em saberes escolares, coisa que pode acontecer, por exemplo, num laboratório de elétrica no qual as experiências ali realizadas tem nível de abstração (saber escolar) muito distante de canteiros de obras. Essa circunstância sugere necessidade de distinguir cursos técnicos escolarizados de cursos técnicos que continuam muito próximos de suas raízes no mundo do trabalho.
Outro elemento distintivo a ser considerado a partir de observações nos cursos técnicos subsequentes de cozinha é a clientela que os frequenta, jovens que já concluíram o ensino médio e adultos. Para quem os frequenta, esses cursos são propostas de capacitação profissional para profissionais que resolvem:
- Aperfeiçoar seu talentos; ou
- Ingressar numa nova área de trabalho; ou
- Fazer um curso em área que amam.
Estes três argumentos estiveram presentes nas declarações de todos os alunos entrevistados e nas declarações de educadores envolvidos com a formação de cozinheiros no instituto. Para os adultos entrevistados, o curso, além de ser oportunidade de aprendizagem de técnicas de cozinha, é uma oportunidade de desenvolvimento cultural. No curso, as possibilidades de associação da cozinha com história, ciências e cultura foram destacadas espontaneamente pelos alunos. Essas declarações sugerem pontes com propostas como a de Alice Waters (2008) que busca associar a produção de alimentos com história, ciência e cultura, e com as observações de Mike Rose (2015) sobre o entusiasmo de adultos que voltam à escola e recebem uma educação de boa qualidade.
A maior parte dos alunos não vê a cozinha como seu destino ocupacional após o curso. Esse modo de ver contraria o discurso usual de que a educação profissional prepara ou deve preparar os alunos para o mercado. O quadro que encontramos não foi um de congruência estrita entre formação profissional e destino ocupacional. Alguns alunos, quase sempre com ensino superior, voltam à escola para fazer um curso que lhes dá prazer. Eles vêm ao instituto para aprender, mas não pensam num futuro profissional. Outros alunos têm interesse por trabalho na área, mas não pretendem fazer uma carreira profissional em que é necessário “começar por baixo”, pois no mercado não importa muito o diploma que os alunos terão, os contratos iniciais tendem a ser para a função de auxiliar de cozinha.
Técnico em Cozinha no SENAC
É uma turma pequena, com apenas oito alunos. Em parte isso acontece porque o a cozinha pedagógica da escola tem espaço para o máximo de dezesseis alunos. Convém incialmente resumir registros sobre o que foi desenvolvido na ocasião.
No dia, o professor revela que serão desenvolvidas algumas técnicas especiais de cozinha. Tais técnicas consistem basicamente em desenvolver certos itens do cardápio com produtos que podem substituir os originais, seja por questões de custo, seja por decisões que podem favorecer saúde dos consumidores. Entre as várias técnicas utilizadas, destacamos a de produção de “caviar de sagu” e a de produção de uma “maionese de abacate”. Além disso, o professor preparou algumas surpresas, uma delas foi a de produzir azeite em pó. Estes detalhes todos não importam muito para o alvo de nosso estudo, verticalização do ensino. Mas, essas informações contextualizam a observação realizada.
Como muitas das técnicas apresentadas eram novas para os alunos, estes apenas observaram o professor enquanto este as realizava. A sessão de atividades que acompanhamos não era a que normalmente ocorre em oficinas, nas quais o professor interfere no processo de produção para ajudar alunos em dificuldades ou para demonstrar alguma técnica após avaliação formativa. De resto, como acontece em oficinas, os alunos participaram ativamente da produção do menu do dia.
O curso técnico de cozinha existe na escola apenas há dois anos. Antes, no mesmo local, era oferecido um curso básico de cozinheiro. Com a introdução do curso técnico, o curso básico deixou de existir, pois, segundo a coordenação, carga horária e destino ocupacional dos formandos não mudaram muito com a alteração. Essa é uma informação que precisa ser interpretada com certo cuidado. Na verdade houve uma mudança significativa em modos de ver o trabalho na cozinha. Destino ocupacional de pessoas pobres e pouco escolarizadas, a cozinha passou a ser um desejo de consumo de pessoas de classe média e bastante escolarizadas. Com isso, o perfil da clientela dos cursos, mesmo do curso básico, foi alterado. E, como já registramos anteriormente, surgiram programas de nível médio e nível universitário. Em muitas escolas, como nessa, o curso básico desapareceu. Com isso, uma das dimensões da verticalização do ensino, a de oferecer um leque de níveis educacionais, sofreu alteração que merece destaque, a base da pirâmide deixou de ser atendida.
No caso da cozinha, além da diminuição desaparecimento de oportunidades de formação básica, houve também a criação de barreiras para que pessoas mais pobres e menos escolarizadas continuassem ingressar nos cursos básicos. Os cursos básicos de cozinha ainda existentes são hoje frequentados por alunos de classe média e com escolarização elevada. Em dois cursos básicos acompanhados em 2014 (BARATO, 2015) todos os alunos tinham ensino médio completo, e muitos deles tinham cursado ensino superior. Aconteceu na área um processo de exclusão dos menos desfavorecidos das escolas de hotelaria. Tal processo de exclusão pode ser verificado nos perfis de alunos que hoje fazem curso na área.
Voltamos ao curso observado. Os alunos são adultos, com idade acima dos trinta anos. São representativos da clientela típica dos cursos subsequentes observados em termos de faixa etária.
Como o número de alunos era muito reduzido, não foi possível liberar todos eles para entrevistas, pois as diversas tarefas na produção dos menus do dia exigiam trabalho contínuo do grupo. Foi possível entrevistar apenas três alunos. Segue resumo dos registros de tais entrevistas.
O primeiro entrevistado é um rapaz que fez pedagogia e um curso de especialização em educação. Deu aulas na rede estadual durante doze anos e hoje é auxiliar de cozinha numa unidade do SESC. Diz que pretende articular sua formação superior com o que está aprendendo aqui e, no futuro, voltar à docência em cursos de FIC na área de cozinha. Se continuar seu trabalho na cozinha provavelmente receberá promoções e poderá chegar a posições de chefia.
A segunda entrevistada é uma técnica em recursos humanos. Já trabalhou em atividades para qual se formou no ensino médio, Agora faz o curso de cozinha para, segundo ela, melhorar suas chances no mercado de trabalho por meio do que chamou de “diversificação ocupacional”.
A terceira entrevistada é uma administradora de empresas, com formação universitária. Hoje é gerente em uma empresa de comunicação visual. Faz o curso de cozinha esperando, da mesma forma que a segunda entrevistada, que surjam chances para que ela mude seu destino ocupacional, deixando para trás o trabalho burocrático. Este é um desejo de muitos profissionais de escritório segundo um analista americano (CRAWFORD, 2009) que critica o que ele denomina aprisionamento em caixas estanques tal qual personagens das histórias de em quadrinho que têm como herói principal personagem chamado Gilbert. Em sua obra, Crawford mostra que o trabalho como mecânico pode desempenhar tal papel de libertar o trabalhador de escritório de uma vida sem sabor. Parece que alunos do curso em análise acreditam que a cozinha pode desempenhar a mesma função.
A partir das observações realizadas, destacamos dois pontos que coincidem em parte com o que já observamos entre os alunos do curso técnico subsequente de cozinha num Instituto Federal.
- A clientela do curso tem escolaridade muito superior à mínima exigida, e manifesta interesses profissionais que não são necessariamente voltados para a ocupação alvo do curso. Eles querem aprender cozinha, sem necessariamente desejarem ingresso no mercado de trabalho como profissionais que fariam carreira tradicional no setor. Não têm como horizonte de suas vidas o trabalho que anteriormente era desejado por alunos formados em cursos básicos. Essa circunstância sugere que os segmentos sociais que antes conseguiam fazer cursos da área de cozinha que oferecem educação de qualidade ingressam no mercado sem capacitação profissional ou fazem cursos em instituições que não oferecem condições de ensino adequadas. Essa é uma questão que deverá ser mais considerada neste estudo. Nós já a levantamos quando examinamos o ensino livre, uma educação precária que era e ainda é buscada pelas populações mais pobres (PARO, 1981).
- Aqui o perfil dos alunos é claramente de classe média, pois a mensalidade do curso é de R$900,00 (novecentos reais), um quantia de que não dispõem os trabalhadores que queiram fazer o técnico de cozinha na instituição. Mas, mesmo no curso do Instituto Federal, que é gratuito, os alunos são pessoas com mais posses que os alunos que ingressavam nos curso básico de cozinha nos anos de 1960 e 1970.
Curso de Técnico em outra unidade do SENAC
A primeira informação interessante é sobre a formação do professor. Ele fez o curso de tecnólogo em hotelaria. Depois de diplomado no curso superior, candidatou-se e foi aceito no curso básico de cozinheiro no Hotel Escola de Águas de São Pedro. Esse é um percurso que mostra que itinerários formativos, sempre propondo passagem de cursos de níveis mais baixos para níveis mais altos é um caminho desejável, pode produzir alguns problemas em termos ocupacionais. O professor, no caso, buscou formação em nível inferior, se olharmos para estruturas convencionais de ensino. E o caso dele não é único. Outros alunos formados no curso superior de gastronomia fizeram posteriormente o curso básico de cozinheiro do citado Hotel Escola. Casos como esses precisam ser considerados em estudos de verticalização, pois indicam que há saberes profissionais que a tradição bacharelesca do nosso ensino acaba afastando de cursos superiores. No caso de cozinha, parece que muitos formandos de cursos superiores entendem que lhes falta domínio de repertório de técnicas necessário em seu trabalho e, por essa razão, acabam cursando programas básicos ou técnicos depois de sua formação universitária.
O curso é matutino. Como observaram educadores do Instituto Federal, entrevistados na unidade que oferece também o técnico subsequente em cozinha, há uma tendência de procura de alunos mais jovens no período da manhã. A maioria dos alunos aqui tem idade em torno do vinte anos. E há uns poucos estudantes mais maduros, com idade superior a quarenta anos.
Embora o conteúdo da aula não importe muito para o que se busca no presente estudo, cabe registrar em linhas gerais o que foi desenvolvido. O dia foi dedicado à preparação de saladas, algumas exigindo tratamentos especiais de carnes que entram na montagem final dos pratos. Os alunos trabalharam de acordo com o padrão usual de aprendizagem em oficinas. Cada grupo assumiu a produção de determinados pratos, com distribuição de tarefas entre os componentes das equipes. Eventuais casos de cooperação entre grupos aconteceram. E o professor atuou como especialista que dava apoio aos executantes quando solicitado ou quando entendia que era preciso apoiar o trabalho dos alunos.
O primeiro aluno entrevistado acaba de fazer serviço social. Ainda não conseguiu diploma de nível superior porque está “devendo” estágio. Atualmente trabalha com um primo numa cozinha de restaurante da família. Como já está na área, resolveu fazer o curso de técnico em cozinha. Diz que provavelmente não irá trabalhar como assistente social. Mas, quer obter o diploma de nível superior para, depois, fazer uma pós em cozinha. Este aluno comenta um aspecto que é comum à maioria de seus colegas. Ele busca estágio voluntário e remunerado na área, pois precisa de fonte de renda adicional para se sustentar durante o curso. Revela que é difícil conseguir o estágio e que a remuneração é muito baixa. Segundo o entrevistado, há uma dificuldade adicional, as empresas preferem contratar, para estágio voluntário, alunos do curso superior (gastronomia).
O estágio voluntário em cozinha, assim como em outras áreas, além de obtenção de renda durante o tempo de estudo, acrescenta um aspecto que precisa ser considerado neste estudo. Mesmo possuindo ambientes necessários para a praticagem, o Sheffield College em muitos cursos ou exige ou incentiva os alunos para que estes trabalhem durante sua formação. No caso inglês a orientação é claramente pedagógica. Nos casos que acompanhamos, predomina o desejo dos alunos em ingressarem no mercado por motivos financeiros. Mas, o estágio voluntário é uma possibilidade que deve ser examinada como medida que pode favorecer articulação entre o aprender no trabalho com o aprender em instituições escolares. Como veremos à frente, no curso de técnico em estética, a professora entende que estágios voluntários de suas alunas resultam em aprendizagens mais completas.
A segunda entrevistada é uma senhora aposentada. Fez direito. Trabalhou muito tempo em escritórios de imobiliárias verificando autenticidade de documentos, processos e encaminhamento de contratos. Agora, com a aposentadoria, diz que vai se dedicar ao que realmente gosta de fazer, a cozinha. Ela já tem mais de trinta anos de casada e está chegando aos sessenta anos. Não pretende trabalhar na área. Para ela cozinha é um hobby. Convém lembrar que encontramos casos parecidos com o dela no IF. A presença dessas pessoas maduras em cursos técnicos subsequentes mostra um papel que as instituições de EPT desempenham para pessoas maduras que querem voltar à escola e aprender técnicas de trabalho que possam utilizar mais por prazer que para obter ganhos num trabalho remunerado. Tal papel não é reconhecido explicitamente, mas as instituições estão aceitando pessoas maduras em seus cursos e a presença delas confere à educação características bastante diferentes daquela de organização de ensino para pessoas “em idade própria”. Pessoas assim podem eventualmente ingressar em cursos superiores, mas parece que elas preferem cursos técnicos de duração mais curta e sem exigências acadêmicas que não gostariam de cumprir.
O terceiro entrevistado é um jovem formado em gestão de RH (curso superior). Trabalhou em setores de recursos humanos durante quinze anos e acaba de ser demitido. Resolveu não tentar nova colocação em RH. Quer iniciar nova carreira profissional. Planeja trabalhar em hotéis alguns anos e ganhar experiência para abrir negócio próprio no campo da alimentação.
As entrevistas que se seguiram aconteceram coletivamente, pois quatro alunos se interessaram por conversas sobre seus estudos e perspectiva de carreira. Num intervalo das produções que estavam desenvolvendo, resolveram se aproximar e manifestar suas opiniões. Todos eles terminaram o ensino médio recentemente. Um deles manifesta com um “Graças a Deus, não aguentava mais aquilo!” seu alívio por ter concluído o ensino médio. Diz que não gosta de atividades de sala de aula. Outro aluno diz que fez um preparatório para o ENEM. Obteve bons resultados, mas ainda insuficientes para ingressar numa universidade pública no curso que quer fazer, nutrição. Os quatro pensam que a formação em cozinha servirá para conseguirem trabalho, mas pretendem prosseguir estudos no nível superior.
Observações e entrevistas, com professor e alunos, indicam tendências que foram verificadas no acompanhamento do técnico subsequente em cozinha em duas outras instituições. Vamos registra-las a seguir, mesmo correndo o risco de repetir análises que já foram feitas.
- Duvidosa congruência entre estrutura educacional e estrutura ocupacional. Supõe-se que níveis de ensino correspondem a posições na hierarquia ocupacional. Os cursos podem ocorrer no nível básico (para formar trabalhadores para tarefas operacionais), nível médio (para formar trabalhadores que desempenharão algumas tarefas operacionais, mas que ocuparão postos de gestão), nível superior (para formar trabalhadores que ocuparão posições de gestão no universo ocupacional). Essa definição tem como base possibilidade de organizar a educação para que esta espelhe o mercado de trabalho. As análises do que ocorre com alunos dos cursos técnicos subsequentes mostram que a pretendida congruência não se efetiva. No nível da execução são tênues as distinções entre o que acontece num curso básico de formação de cozinheiro e nos cursos de nível mais elevado que foram criados nos últimos anos. Os diferentes níveis de ensino no caso refletem muito mais status social das clientelas que procuram capacitar-se profissionalmente no campo da cozinha.
- Em cursos na área de cozinha, semelhantemente a outros cursos em que predomina o aprender em oficinas, boa parte dos saberes neles desenvolvidos não é transformada em saber escolar. Em observações efetivadas junto a cursos de administração, notamos que o saber do trabalho é convertido em saber escolar, o que facilita ensino em sala de aula. Essa não é a tendência em formações que requerem ambientes oficinais (caso de cozinha, soldagem, podologia, estética facial etc.). Isso sugere outro cuidado que deveria existir em projetos de verticalização do ensino em EPT. Parece que é preciso considerar formações que requerem aprendizagem em oficinas como uma categoria especial na estrutura das ofertas de educação profissional e tecnológica. Seja qual for o nível de ensino, há ocupações que precisam ser aprendidas em ambientes que garantam praticagens em condições as mais próximas possíveis do que se faz em situações concretas de trabalho. Neste sentido, convém relembrar que o saber que se desenvolve em oficinas é saber do trabalho, não saber escolar. Embora existam cursos de diferentes níveis nos quais a aprendizagem oficinal predomina, a natureza do conhecimento ali desenvolvido é a mesma. Isso, em parte, explica a dificuldade para estabelecer distinções em aprendizagens de técnicas em diferentes níveis de ensino na cozinha. O ingresso de alunos formados em gastronomia em curso básico de cozinha mostra que essa questão precisa se melhor estudada. Nas observações e entrevistas que realizamos ficou evidenciada que a distinção de níveis na formação de cozinheiros tem muito mais a ver com status social dos novos interessados pela área do que com o conhecimento próprio das ocupações da área. Isso fica comprovado na destinação profissional dos egressos dos cursos em todos os níveis. Formandos em cursos básicos, cursos técnicos ou cursos superiores quase sempre ingressarão no trabalho de como ajudantes de cozinha (BARATO, 2015).
- Os cursos técnicos subsequentes de cozinha sugerem que é preciso considerar quem é a clientela que os procura majoritariamente. Boa parte dos alunos de tais cursos é composta por adultos, todos com escolaridade igual ou superior a nove anos de educação. Muitos fizeram cursos superiores. Essa clientela mais madura tem interesses diversos. Alguns alunos fazem o curso para aperfeiçoar um hobby. Outros vêm à escola para se ocuparem com algo que gostam de fazer. Outros ainda, buscam curso em substituição a curso superior no qual não conseguiram ingressar. O número de alunos que declara interesse em ingressar no mercado para fazer carreira como cozinheiros não é muito grande. Em parte, a explicação para isso foi a que já desenvolvemos quando examinamos a impossibilidade de estrita congruência entre educação escolar e destino profissional. Mas, há aqui outro aspecto que é preciso considerar, a exclusão das camadas mais pobres da população de cursos de formação de cozinheiros ofertados pelas principais instituições de educação profissional do país. Examinamos mais este assunto no próximo item.
- A formação hoteleira teve seus inícios nos anos de 1960. O curso de cozinheiro era então uma qualificação profissional básica que exigia pouca escolaridade dos alunos. Nos anos de 1980 a situação começa a mudar. Surgem cursos técnicos e, logo depois, superiores. Cursos básicos começam então a ser substituídos pelos cursos técnicos. Mas, a mudança não aconteceu apenas no campo escolar. Ela aconteceu também no campo do acesso a oportunidades de formação. Pouco valorizados nos anos de 1960 e 1970, cursos para a formação de cozinheiros eram frequentados por pessoas de baixo poder aquisitivo. E isso foi alterado quando as ocupações da área passaram a ser objeto de desejo de gente de classe média. Novos alunos, com mais escolaridade e mais poder aquisitivo, desalojaram a antiga clientela dos cursos de cozinha. O fenômeno sugere que se pense em mecanismos de inclusão para que os mais pobres não fiquem de fora e possam também se preparar para o trabalho de cozinheiro em instituições que oferecem educação de qualidade. Há aqui necessidade de relembrar que um dos objetivos da verticalização do ensino é a de promover inclusão. Nesse sentido, espera-se que instituições de EPT não deixem de lado os cursos básicos, tradicionalmente frequentados por pessoas de menor poder aquisitivo. Mas, não se trata apenas de garantir oferta de cursos voltados para a base da pirâmide ocupacional. Como reparamos aqui, no caso da cozinha, mesmo em cursos básicos, os menos favorecidos perderam espaço para uma clientela de classe média. Caso queiram cursar algum programa que os capacite para o trabalho em cozinha, alunos mais pobres terão que procurar organizações beneméritas ou pagar por sua formação em instituições que oferecem educação em situação precária em termos de recursos e capacitação dos docentes. O fenômeno da exclusão dos mais pobres de oportunidades educacionais de boa qualidade fica muito evidente no caso do ensino voltado para a hotelaria, particularmente na cozinha. Mas, é provável que isso não ocorra apenas com a capacitação para ocupações hoteleiras. Em outras áreas em que houve elevação do nível de ensino associada com valorização social das ocupações a elas relacionadas é provável que o mesmo tenha ocorrido ou venha a ocorrer. Por isso, é preciso que o sistema educacional esteja atento para esses mecanismos que resultam em exclusão sócio-educacional.
- Nos cursos observados, apesar do ambiente oficinal e da existência de uma obra no horizonte imediato da aprendizagem, os pratos elaborados pelos alunos não foram consumidos por clientes de um restaurante. Uma vez prontos foram fotografados (um costume que decorre do desejo de celebrar trabalho e aprendizagem) e posteriormente consumidos pelos próprios estudantes, quase sempre num exercício de degustação orientado pelos professores. Há, no caso, uma diferença notável se comparamos tal destino da obra com as produções que são elaboradas para consumo de clientes num restaurante que funciona normalmente e não apenas como ambiente pedagógico. Quando a obra não entra em circuitos comuns de consumo perdem-se algumas condições que dão significado ao saber do trabalho (MJELDE, 2015). As observações registradas neste item podem ler lidas apenas como um comentário de caráter didático-pedagógico. Mas, elas têm certa importância para lembrar questões relativas a concepções de ensino que se articulam com a com a verticalização como se reparou na análise de alguns cursos do Sheffield College.
Curso Técnico de Estética Facial
O ambiente é bastante amplo, com vinte macas próprias para atendimentos de clientes de serviços de estética. Cortinas de plástico grosso permitem, se necessário, que o atendimento seja personalizado, preservando a intimidade das clientes. As atividades começam com uma conversa da professora com as alunas (não há homens na turma), retomando assuntos da última aula. Não é uma aula convencional. A conversa flui de modo informal. A professora reforça a ideia de que as alunas devem buscar oportunidades de estágio (voluntário), pois a aprendizagem das técnicas necessárias a profissionais da área exigem muitas e repetidas práticas. Duas alunas fazem estágio, uma delas numa clínica coordenada por uma biomédica. Em tal clínica a aluna está acompanhando procedimentos vedados a esteticistas faciais, pois são considerados atos médicos. A oportunidade que a aluna tem de acompanhar tais procedimentos é utilizada pela professora para ressaltar fronteiras entre práticas superficiais de cuidados de pele (área em que esteticistas podem atuar) e cuidados que interferem em camadas profundas da pele (área de atuação exclusivamente médica). Na conversa, a professora comenta que mesmo os biomédicos serão impedidos em futuro próximo de realizar procedimentos que atinjam camadas profundas da pele. O único profissional que poderá fazer isso será o médico. O comentário faz referência a uma profissão, a de esteticista, que no passado era considerada como atividade na área de beleza. Isso mudou e a profissão passou a ser classificada como trabalho na área de saúde, com os decorrentes controles que são exercidos por médicos sobre as demais profissões no campo da saúde. Fazemos tal registro aqui porque controles sobre exercício do trabalho por profissionais dos níveis mais altos na escala ocupacional são um dos elementos que é preciso considerar em mudanças de níveis na formação de trabalhadores. Por essa razão, em muitos casos, é difícil analisar que nível de ensino seria mais adequado para formar o profissional que até poucos anos atrás não era obrigado a fazer cursos.
Cabe aqui uma ponte com as exigências que se faz em alguns cursos do Sheffield College, a de que os alunos necessariamente estejam trabalhando na área do curso em que se matricularam. No caso do college inglês, o que se propõe é uma associação necessária entre o que os alunos fazem no trabalho e o que aprendem na escola (não é possível matricular-se no curso sem comprovar vínculo empregatício. Para que tal associação ocorra é preciso que os alunos sejam trabalhadores com idade superior a dezoito anos e algum tempo de experiência profissional. O curso não prepara para o trabalho. O curso associa educação e trabalho como formas de aprendizagem que acontecem simultaneamente na escola e nas organizações ou empresas em que os alunos estão empregados[27]. No caso do curso de estética encontramos apenas uma orientação para que as alunas associem trabalho e estudo por meio de estágios voluntários. A informação é de que o estágio voluntário, sempre remunerado, não é obtido com facilidade. Mas, a professora insiste na ideia de que a associação entre trabalho e curso é ideal na formação profissional para a área. Esta é uma possibilidade de organização do ensino que vale a pena considerar quando se pensa em ampliação dos modos de educação para o trabalho. Não se trata de Aprendizagem nem de co-op education (Canadá), mas de um arranjo articulador de educação e trabalho.
Cabe um primeiro comentário sobre a questão do estágio. Ele não é obrigatório. E a instituição oferece muitas oportunidades de atendimento a clientes na segunda parte do curso. Mas, a insistência sobre estágios voluntários sugere que, se possível, durante o curso as experiências em clínicas podem desempenhar um papel importante na capacitação profissional. Isso fica evidente na conversa da professora com as alunas, pois as técnicas que estão sendo aprendidas são bastante discutidas a partir das narrativas das duas alunas que fazem estágio.
Como se verá nos registros de entrevistas, muitas alunas têm experiência em atendimentos a clientes na área de cuidados de beleza. Não são, portanto, estudantes que estão tendo contato com o trabalho de clínicas de estética ou salões de beleza pela primeira vez. O grupo é constituído por adultas com a média de idade em torno dos trinta anos. Não se trata, portanto, de um curso técnico convencional voltado para alunos adolescentes que acabam de terminar seus estudos no ensino fundamental.
A aula informal dura apenas trinta minutos. O tempo restante será dedicado a aplicação de técnica de usos de um equipamento a laser para tratamento de pele. Resolvemos não acompanhar o trabalho, entendendo seria preciso preservar a intimidade de quem passasse pelo processo simulando a situação de cliente (as práticas ainda acontecem entre as alunas e não há ainda atendimento a público externo). Assim, em vez de fazer observações do que aconteceria na clínica, esperando a emergência de eventos críticos que pudessem nos ajudar a recolher informações com alto teor de autenticidade sobre o ensino naquele curso técnico, resolvemos fazer entrevistas individuais, numa escala de liberação das alunas durante a aula para conversa com o investigador. No que segue, apresentamos uma síntese de tais entrevistas.
Caso 1. A primeira entrevistada é uma moça de vinte e nove anos. Ela trabalha como caixa e recepcionista numa pequena empresa e não tem ainda qualquer experiência na área. Já fez curso superior, tendo cursado faculdade de contabilidade. Pretende, depois de algum tempo de experiência em uma clínica, atuar como autônoma. Diz que certamente deixará de trabalhar na área burocrática.
Caso 2. A segunda entrevistada é uma senhora de sessenta e dois anos, formada em farmácia (concluiu o curso superior há quarenta e dois anos). Trabalhou muitos anos como pesquisadora em laboratórios de produtos cosméticos, mas nunca esteve no campo da aplicação de produtos. Agora, aposentada, resolveu ampliar seus conhecimentos e aprender técnicas próprias da profissão de esteticista. Diz que agora que está aposentada tem o tempo necessário para verificar como produtos, que conhece bem do ponto de vista de produção em laboratório, são utilizados por profissionais de estética. No curso, articula seus saberes acadêmicos com as tecnologias próprias do ofício de esteticista, mas preferiu não ser dispensada da parte teórica do curso (diz que já se esqueceu de algumas abordagens teóricas e aproveita a oportunidade oferecida pelo curso para atualizá-las). Ela também pretende trabalhar como autônoma, mas não vê seu futuro como uma nova carreira profissional.
Caso 3. Ela terminou o ensino médio em 2003, quinze anos atrás. Tem trinta e dois anos, gosta de cosmetologia e quer fazer faculdade nessa área. Diz que teve alguma dificuldade na aprendizagem dos conteúdos teóricos do curso. É um caso típico de volta à escola depois de muitos anos de conclusão do ensino básico. Outras alunas não comentaram dificuldades no estudo, mas é provável que tenham enfrentado problemas semelhantes. A entrevistada tem uma história de trabalho de quem passa por diversos empregos semiqualificados. Agora está se preparando para uma profissão mais exigente e sonha em construir uma carreira como esteticista.
Caso 4. Ela é uma das mais jovem da turma. Tem vinte e três anos. Terminou o ensino médio em 2013. Foi aprendiz no campo do atendimento e recepção hospitalar. Efetivaram-na no hospital depois do período de aprendizagem. Passou depois para atividades de apoio no laboratório de análises clínicas da instituição. Essas experiências iniciais de trabalho despertaram seu interesse pela área de saúde. Esse é o motivo de sua busca pelo curso de estética, mas ela é uma das alunas que não vê o trabalho como esteticista no horizonte imediato de sua vida. Faz o curso para ver que desdobramentos podem acontecer em termos de trabalho, mas continua a pensar em formação de nível superior.
Caso 5. É uma diarista. Já faz algum tempo que a única maneira de ganhar a vida que encontrou é o trabalho doméstico. É mais uma aluna que volta à escola muitos anos depois de ter concluído o ensino básico (2001). Diz que não tinha uma noção clara do trabalho da esteticista. Agora já sabe o que faz a profissional do ramo e julga que poderá entrar no mercado como autônoma. Não pensa em fazer curso superior, mas quer fazer cursos de especialização em estética depois de formada.
Caso 6. Ela já fez cursos de cabeleireiro e de manicure numa rede privada de escolas de São Paulo. Trabalha em salões de beleza (por tarefa, mas sem contrato de trabalho) atende a clientes em suas residências. Além de cursos de qualificação, fez diversos cursos rápidos de atualização na área de beleza e cuidados pessoais. Concluiu o ensino médio há doze anos. É mais um caso de volta à escola muitos anos depois da conclusão do ensino básico.
Caso 7. Ela terminou o ensino médio em 2010. Diz que demorou bastante para obter o certificado de conclusão da educação básica porque optou por ir fazendo exames para eliminar pouco a pouco as matérias. Confessa que não gosta muito de estudar matérias teóricas. Também fez curso de cabeleireira e da manicure na mesma rede de escolas particulares frequentada pela aluna anterior. Trabalha como auxiliar de cabeleireira num salão. Tem grande interesse pela área. Quer progredir, por isso está fazendo o curso de técnico em estética.
Caso 8. Ela é outra aluna de idade bastante inferior à média da turma. Tem vinte e dois anos e terminou o ensino médio em 2015. Trabalha como recepcionista num salão de beleza. Não é profissional da área, mas em seu trabalho acabou descobrindo que o curso de estética facial poderia ser uma boa oportunidade de desenvolvimento profissional. Diz que no momento “dá um tempo”, enquanto aguarda possibilidade de ingressar na universidade. Pretende dar continuidade ao que está aprendendo hoje e quer fazer curso de biomedicina.
Caso 9. É aluna também mais jovem que média da turma. Tem vinte e quatro anos e terminou o ensino médio em 2012. Quer fazer faculdade de fisioterapia ou de medicina. Depois que concluiu o ensino médio tentou vários trabalhos na área de administração. Fez um curso de marketing que não lhe abriu portas em termos ocupacionais. Como o pai tem uma pequena empresa, trabalhou com ele na administração dos negócios, mas sentiu que isso não lhe dava a desejada autonomia. Está no curso em busca de uma habilitação profissional que lhe abra oportunidades de trabalho por conta própria e lhe permita se preparar para o ensino superior.
Caso 10. Ela é uma jovem adulta, trinta e quatro anos. Fez faculdade de Ciências Contábeis e especialização (pós lato sensu) em controladoria. Trabalhou por muitos anos em banco, mas deixou um trabalho que considera desgastante. Queria fazer algo que exigisse desenvolvimento e uso de habilidades manuais. Por isso buscou o curso de estética. Elogia espontaneamente o ensino que é muito prático, com a maior parte da aprendizagem acontecendo no ambiente que simula uma clínica. Ela é mais uma aluna que sonha com possibilidades de desenvolvimento profissional na área por meio de um curso universitário relacionado com estética facial e corporal.
Caso 11. Cinquenta e dois anos. Terminou o ensino médio em 2000 pela via supletiva. Sempre teve que trabalhar para se sustentar e ajudar a família. Começou a trabalhar aos treze anos em serviços domésticos. Depois foi costureira, trabalhando como operária. Acabou fazendo um curso de auxiliar de enfermagem e conseguiu emprego num hospital exercendo a função para a qual se preparara. Exerceu a profissão de auxiliar de enfermagem por quinze anos. Hoje, aposentada, busca atividade para complementar renda. Acredita que conseguirá o que pretende como esteticista facial. Não pensa em continuar estudos em nível superior.
Caso 12. Não sabe muito bem quando terminou o ensino médio. Acaba informando que provavelmente foi em 1997. Não diz a idade, mas, pelo seu histórico escolar, deve ter cerca de quarenta anos. Fez faculdade de administração com ênfase em comércio exterior. Exerceu diversas atividades nas áreas de finanças e administração. Trabalhou em bancos. Foi corretora de seguros, especialmente no campo de proteção contra sinistros. Deixou a área bancária e mesmo sem formação está trabalhando na área de estética com uma amiga proprietária de salão de beleza. Faz o curso para mais aprender e para regularizar sua situação como profissional.
Caso 13. Depois que terminou o ensino médio em 2015, essa jovem de vinte anos procurou fazer curso para se capacitar profissionalmente. Fez um curso rápido de computação, um curso de maquiagem e um curso de banho e tosa. Trabalha atualmente como vendedora de langerie. Pretende trabalhar tanto como esteticista facial como maquiadora. Sua preferência é maquiagem, mas entende que precisa de se qualificar como esteticista facial para melhorar suas chances de emprego (por tarefa e sem vínculo empregatício) em salões de beleza e clínicas.
Caso 14. A última entrevistada é ex-metalúrgica. Além disso, trabalhou como ajudante geral, operária em empresa de produção alimentícia. Ultimamente atua como manicure, atendendo em domicílio e eventualmente em salões de beleza. Diz que o ganho é incerto e que precisa de uma capacitação profissional mais completa. Não sabia da existência do curso técnico de esteticista facial. Foi informada dele por um irmão que frequentava a instituição em que o curso é oferecido. Não podia pagar as mensalidades, mas ganhou bolsa de estudos. Tem alguma dificuldade na parte teórica. Terminou o ensino médio em 2001, em curso noturno.
Como já observamos em várias partes deste estudo, os cursos técnicos subsequentes guardam poucas relações como os cursos técnicos oferecidos para jovens em idade própria (cursos oferecidos para jovens que acabam de concluir o ensino fundamental). Eles muitas vezes não são substitutos para uma educação que certas pessoas não conseguiram acessar na adolescência. Os alunos são adultos, quase sempre com variadas experiências de trabalho e de educação escolar. Como no caso específico mínimo de dezoito anos de idade e conclusão do ensino médio são pré-requisitos de ingresso, as alunas são pessoas adultas, com variações de idade num intervalo de vinte a sessenta anos e média em torno do trinta. A idade das alunas certamente influencia seus interesses e visões com relação ao trabalho.
Entre as alunas mais jovens predomina o desejo de prosseguir estudo no nível superior em área relacionada com estética facial. Quando isso acontece, as alunas não veem o trabalho de esteticista facial como destino de trabalho, mas apenas como uma ocupação de passagem. Neste sentido, veem a educação técnica da mesma forma que adolescentes alunos do ensino técnico de nível médio. Isso indica que o trabalho como técnico não é um destino profissional desejável pelos jovens que estão no ensino médio ou o concluíram recentemente. Há aqui um desafio em termos de estudo. O pressuposto, nem sempre expresso, é o de que a oferta de ensino médio profissionalizante para adolescentes é uma forma interessante de preparação de jovens para o mercado de trabalho. Tal pressuposto é negado em duas frentes. As próprias escolas que oferecem ensino técnico para adolescentes ressaltam mais os resultados de educação geral que a capacitação efetiva para o trabalho. Um sintoma disso aparece na maneira pela qual os jovens adolescentes aprendem as tecnologias relacionadas com as áreas de trabalho para as quais supostamente estão sendo preparados. As tecnologias são apresentadas geralmente em laboratórios que favorecem muito mais o ensino de ciências que a aprendizagem de processos de trabalho próprios da profissão. O que costuma ser apresentado nos laboratórios são princípios científicos em contextos que permitem comprovação empírica.
Entre as alunas mais maduras, as que estão no grupo daquelas com trinta ou mais anos, predomina o entendimento de que a estética facial é um destino de trabalho desejável. O que determina tal entendimento não é apenas a idade, mas principalmente histórias de vida que incluem diversas experiências de trabalho. Isso muda substancialmente o ensino. O interesse das alunas é por aprendizagem de um repertório profissional que as capacite para o trabalho. Embora eventualmente declarem que querem continuar estudos no nível superior, elas entendem que o destino ocupacional como esteticista facial é desejável.
Curso de Técnico em Podologia
Os registros sobre esse curso incluem destaques sobre observações de atividades, história do curso, e resultados de entrevistas informais com a professora e alunas. A abordagem foi bastante diferente do que aquela utilizada no curso de técnico em estética facial. Em podologia havia informações disponíveis sobre como evoluiu a relação entre formas de capacitação dos profissionais e articulações com a estrutura de ensino. Essas informações podem ser relevantes em análises sobre níveis dos cursos oferecidos e demandas ocupacionais.
As atividades do curso funcionam em quatro ambientes: uma sala de recepção, uma clínica de podologia, uma área (sala equipada para os fins) de expurgo de materiais utilizados em atendimento na clínica, uma área de esterilização de equipamentos utilizados (sala equipada para os fins) em procedimentos de cuidados dos pés. Nas atividades práticas, os alunos atuam nos quatro ambientes. Na sala de recepção, duas alunas atendiam clientes que chegavam, conferiam se os mesmos já possuíam fichas na clínica, realizavam registros de novos clientes, orientavam-nos para aguardar chamada assim que houvesse vaga na clínica. Na sala de expurgo, duas outras alunas administravam o movimento de material que precisa ser descartado de acordo com normas de saúde que orientam o descarte de materiais utilizados em serviços hospitalares e assemelhados. Na sala de esterilização, três alunas administravam os serviços necessários, operando autoclaves para esterilizar ferramentas de podologia, para controlar e proteger material esterilizado, para fornecer aos alunos da clínica os necessários instrumentos de trabalho. Na clínica, com dezesseis equipos de podologia, alunos atendem a clientes. Há um aluno ou aluna por equipo. Três alunas circulam pela sala ajudando as alunas que estão executando serviços de podologia. É preciso notar que recepção de clientes, expurgo de material utilizado em cuidado dos pés na clínica, e esterilização de material não precisariam necessariamente de ambiente próprios e amplos, encontrados na escola e operados pelos alunos em eventos de aplicação ou praticagem. A primeira é um serviço não vinculado a obrigações legais e o que nela se passa poderia ser objeto apenas de aulas teóricas. As duas últimas são obrigações legais, mas a escola poderia atender ao que prescreve a legislação sem integrar dois ambientes à clínica e sem utiliza-los como áreas de praticagem para os alunos.
A descrição sumária do ambiente de praticagem no curso de podologia observado sinaliza um ensino bastante diferente do ensino escolar. A instituição procura reproduzir em suas instalações uma clínica padrão de podologia e boa parte do ensino (mesmo aulas teóricas) acontece nela, não em sala de aula convencional. Os quatro ambientes utilizados pelos alunos não são laboratórios nem locais que simulam atividades de trabalho que podem ser encontradas fora da escola. Elas são de fato espaços de serviços de podologia. Em contraste com o que observamos, cabe reparar que curso superior de podologia está sendo desenvolvido via EaD por uma universidade privada. Supõe-se que nesse caso os alunos resolvam individualmente e sem ajuda de um profissional experiente ( o professor) as praticagens necessárias à sua aprendizagem. Além do individualismo de propostas de EaD (KAPLÚN, 1998), o aluno não terá acesso a ambientes profissionais para suas praticagens. Na situação observada vê-se que os alunos trabalham num ambiente onde a integralidade do trabalho do podólogo é transparente. Além disso, a integralidade do serviço envolvendo todos os quatro setores acima nomeados dá ao estudante a oportunidade de participar de uma dinâmica que não fica reduzida ao desenvolvimento de habilidades individuais em atendimento a um cliente. Tal dinâmica não é substituível por explicações abstratas de como o trabalho do podológo pode ser desenvolvido.
As considerações até aqui registradas sobre o curso de técnico e podologia observado sugere um aspecto que não costuma ser contemplado em considerações sobre verticalização do ensino em EPT. Já abordamos essa questão, mas não lhe demos o devido destaque. Fazemos isso agora, pois o ambiente e a dinâmica de aprendizagem dos alunos mostram um ensino bastante identificado com saberes do trabalho, mas que corre riscos com possível elevação do nível de formação do profissional. Tal elevação de nível quase sempre resulta em um ensino com maior grau de abstração e menor compromisso com o fazer. Mas, é preciso observar que o mesmo pode ocorrer com mudança de enfoque no ensino com ênfase na escolarização. Este pode ser o caso de ensino via EaD, pois este tenta converter o saber tácito do trabalho em saber proposicional, apresentado por meio de materiais didático escritos. Essas reflexões introduzem um elemento adicional a ser considerado na verticalização do ensino. Curso como o técnico em podologia revela a tensão existente entre a escolarização da educação profissional e as tradições do aprender no e pelo trabalho. Fazemos tal observação tendo em vista que a formação do podólogo poderá brevemente migrar para o ensino superior, com possível academização dos processos de capacitação do profissional, provavelmente com diminuição do acento no fazer.
Cabe um registro de como surgiu e desenvolveu-se o curso técnico de podologia no Estado de São Paulo com base em relatos de educadores que estiveram envolvidos com a organização de oportunidades para capacitar podólogos. Até o final dos anos de 1970, o profissional da área era chamado de pedicuro calista. Não havia oferta de cursos para qualificar essa mão de obra. O pedicuro calista aprendia o ofício acompanhando o trabalho de um profissional experiente e, para exercer legalmente a profissão, submetia-se a um exame organizado pelos serviços de fiscalização de saúde no estado. Associação dos Pedicuros Calistas do Estado de São Paulo desejava que a formação de seus profissionais acontecesse num curso formalmente reconhecido pelo sistema educacional. Procurou para tanto o SENAC para que este criasse, à semelhança do que já existia no Rio de Janeiro, um curso de pedicuro calista. Tal curso foi organizado como uma qualificação profissional básica, com duração de trezentas e vinte horas. Essa solução durou poucos anos. Na metade dos anos de 1980 a formação do pedicuro calista passou a acontecer em curso técnico e o profissional da área passou a ser designado como podólogo. A carga horária mínima de tal curso é de 1200 horas. As mudanças ocorridas na formação de profissionais dessa área merecem mais considerações. Da informalidade da capacitação que acontecia em pequenas clínicas, nas quais um profissional experiente ensinava aprendizes que seriam oportunamente examinados pelo serviço de fiscalização de saúde, partiu-se para um curso de qualificação básica organizado por uma instituição educacional, e, logo em seguida, o curso passa a ser de nível técnico. Nessa transformação dos modos de capacitar o profissional da área, a Associação dos Pedicuros Calistas teve papel fundamental. Ela queria que seus associados tivessem uma formação mais exigente do ponto de vista escolar. Esse é um processo que acontece com muita frequência em várias profissões, com mudanças que podem elevar o status do profissional por meio de títulos escolares.
Voltamos a sugerir que a movimentação da formação profissional para níveis mais elevados não se deve necessariamente a razões exclusivamente tecnológicas e científicas. Fatores culturais, econômicos e sociais podem ser determinantes no caso. Maiores exigências de escolarização podem, inclusive, provocar perdas na formação dos profissionais. Em nossas investigações sobre a formação de profissionais de cozinha, professores a analistas de conteúdos na área comentam que a formação em níveis mais elevados dos profissionais está ocorrendo com prejuízo em termos de saberes mais voltados para a execução e domínio fluente de técnicas de serviço. Os mesmos comentaristas dizem que estão verificando que muitos alunos de cursos superiores na área de cozinha estão procurando cursos básicos na área para aprender técnicas necessárias aos fazeres profissionais do dia a dia. Essas observações seguem a mesma linha que as análises feitas por Liv Mjelde (2015) sobre o empobrecimento da formação profissional quando esta passa a ser dominada por saberes escolares que perdem de vista o saber do trabalho.
O curso de técnico em podologia é um bom exemplo de atividade educacional caracteristicamente pós-secundária. A profissão exige que o trabalhador tenha mais de dezoito anos. Por isso, não é aconselhável oferecer o curso para adolescentes que estão cursando ensino médio. A formação de podólogos deve acontecer com alunos jovens e adultos. E, por essa razão, a grande maioria dos alunos já concluiu seus estudos secundários, embora seja possível matricular-se no curso sem ter concluído o ensino médio (o plano de curso estabelece que é possível ingresso de alunos que estão cursando ensino médio, desde que matriculados na segunda série).
Chegamos à clínica de podologia já em funcionamento. Há clientes acomodados em todos os dezesseis equipos disponíveis. Há cerca de vinte alunas no ambiente. As que não estão atendendo clientes diretamente circulam pela clínica e dão apoio à demais. Conversamos com uma senhora que mostrava muito segurança em atividades de apoio. Julgamos que era a professora. Era uma aluna. Entrevistamo-la informalmente. Ela é professora de geografia na rede estadual de ensino. Quer mudar de vida e de profissão. Descobriu a podologia e diz que uma vez formada deixará a carreira docente. As atividades em andamento não destacam de imediato quem é a docente. Para um observador externo, ela parecia mais uma docente desempenhando funções de apoio às alunas que atendiam aos clientes nos equipos. Não havia qualquer sinal de ensino convencional. O papel da professora acabou sendo destacado por uma cliente que revelou que frequenta a clínica de podologia da escola há oito anos. Ela costuma pedir a professora indicação de cremes que utiliza para aumentar o conforto de seus pés após a sessão de tratamento na clínica. Cliente e professora conversam sobre o curso e os serviços que o mesmo presta a pessoas que precisam de tratamento dos pés. A cliente revela total confiança no tratamento que ali recebe. Na continuação da observação o papel da docente foi se revelando porque foi possível vê-la em avaliações formativas do trabalho que as alunas estavam realizando. Além disso, eventualmente alguma aluna a procurava para resolver dúvidas quanto ao procedimento que vinha sendo desenvolvido.
As observações registradas no parágrafo anterior podem ser lidas como anotações de interesse metodológico. Mas, é preciso reparar também que elas podem ter outra leitura. Elas sinalizam situações de aprendizagem que aproximam as práticas em andamento do que acontece numa clínica padrão no campo da podologia. As alunas, todas maiores de dezoito anos, prestam serviço de podologia com bastante autonomia. Atuam como profissionais numa clínica de cuidado dos pés.
O curso observado é diferente de cursos técnicos convencionais em vários sentidos:
- É frequentado por uma clientela adulta semelhante às que encontramos em cursos subsequentes de técnico em cozinha.
- Há muitas horas de praticagem numa clínica padrão, frequentada por clientes que confiam nos serviços prestados por alunos. O ambiente, como já reparamos, em nada lembra sala de aula.
- A natureza do trabalho no caso da podologia cria muitas barreiras que impendem que o ensino no curso seja escolarizado.
Dada a dinâmica da sessão de trabalho acompanhada, acabamos nos concentrando mais em observações sobre o funcionamento da clínica que em entrevistas sucessivas com as alunas. Foi preciso circular continuamente pelos quatro ambientes para determinar como as atividades de ensino estavam se desdobrando. Entrevistas com alunas ocorreram oportunamente, mas não numa sucessão de encontros como foi possível realizar em outros cursos técnicos subsequentes. Por essa razão intercalamos narrativas sobre entrevistas com as observações sobre desenvolvimento do ensino.
Uma das alunas termina atendimento a um cliente mais rapidamente que suas colegas. Está num intervalo em que é possível conversar com terceiros. Ela é uma jovem adulta na casa dos trinta anos. Trabalha como manicure em salões de beleza, mas já realiza alguns cuidados de podologia com seus clientes. Está no curso para obter o necessário certificado que lhe garanta possibilidade de exercer o trabalho de podóloga legalmente. Terminou o ensino médio há mais de dez anos e seu ingresso no curso pode ser caracterizado como uma segunda chance de educação, uma vez que ela passou muitos anos sem frequentar escolas.
Na dinâmica do trabalho observado fica evidente que as alunas experimentam uma situação de conhecimento compartilhado em ambientes com várias funções necessárias ao funcionamento de uma clínica. Além de ser um curso frequentado por gente madura, o técnico subsequente de podologia fica muito distante de cursos técnicos das áreas burocráticas, nos quais o ensino em sala de aula predomina.
Surge nova oportunidade para entrevistar aluna que acabou de encerrar atendimento a um cliente. É uma jovem senhora de quarenta e dois anos. Tem formação superior em curso de enfermagem. E trabalha em hospitais desde que concluiu sua formação universitária. Ela está elaborando um plano para propor ao hospital em que trabalha a criação de serviços de podologia para pacientes internados. É um serviço que pode aumentar o conforto de clientes que passam por restrições de movimento e são portadores de alguma moléstia que merece mais cuidados com os membros inferiores, como é o caso de diabéticos. A entrevistada diz que poderia desenvolver o plano que está elaborando a partir de estudos de especialização numa universidade. Mas, ela preferiu ingressar no curso técnico para o mesmo fim e acredita que o que está aprendendo será muito útil caso o hospital em que trabalha aceite a proposta de criação do serviço de podologia. Ela informa que sua decisão de escolher o curso técnico porque no passado fez escolha inadequada para reunir informações sobre outra área de interesse, estética facial. Entendeu no caso que um curso de especialização iria ajuda-la. Hoje sabe que um curso técnico subsequente de estética seria muito melhor para os fins pretendidos, pois o curso de pós apenas explicava princípios e facilitava reconhecimento de equipamentos utilizados no trabalho, mas não oferecia aos alunos oportunidade de vivenciarem técnicas.
O depoimento dessa enfermeira sinaliza uma das funções que cursos técnicos subsequentes podem ter, o de serem oportunidade de aprendizagem de tecnologias a partir de oportunidades concretas de aplicação. Sugere mais. Sugere que tais cursos podem ser uma forma interessante para o enriquecimento de saberes de profissionais de nível superior que buscam informações relacionadas com seu trabalho. Esse é mais um argumento que pode ser utilizado para a classificação da modalidade de educação em análise como ensino técnico pós-secundário.
Outra aluna foi entrevistada mais rapidamente, pois dispunha de um intervalo curto entre um e outro atendimento a cliente. Ela é dona de casa. Já trabalhou eventualmente, mas sem vínculos empregatícios. Decidiu agora que quer ter uma profissão. Está muito contente com sua decisão e acha que poderá começar uma carreira na idade madura.
Durante a observação aconteceram conversas rápidas com outras alunas em todos os ambientes (clínica, sala de recepção, sala de expurgo, sala de esterilização). Os registros individuais dessas conversas não configuram entrevistas, mas apenas oportunidade de recolher informações que poderiam indicar algumas tendências em termos das escolhas pelo curso. As alunas têm interesse em:
- Se capacitar como podólogo e atuar em clínicas .
- Associar a capacitação em podologia com trabalho no nível superior na área de saúde.
- Associar a capacitação em podologia com trabalhos em salões de beleza.
- Regularizar trabalho que já realiza.
- Mudar de profissão.
- Ingressar no mercado de trabalho em idade madura e sem experiências prévias no mercado.
Este conjunto de interesses mostra alunos completamente diferentes dos adolescentes que ingressam em cursos técnicos convencionais. No curso de formação de podólogos encontramos pessoas que têm uma visão de mundo de trabalho construída a partir de experiências que as orientam em termos de escolhas ocupacionais. A profissão, que exige idade mínima de dezoito anos para seu exercício, não favorece propostas de cursos para adolescentes na área.
Um caminho para a educação técnica pós-secundária, não universitária
As análises dos cursos técnicos subsequentes observados sugerem necessidade de criação de uma modalidade de educação que ainda não está formalizada no país, os cursos pós-secundários. As narrativas de observações realizadas para este estudo mostram caminhos a seguir. Mas, ainda não queremos sugerir uma direção mais estruturada para tanto.
Assim como acontece com a Aprendizagem, a educação profissional pós-secundária não universitária precisa ser considerada em estudos sobre verticalização do ensino em ETP. Ela não aparecia como tópico a ser considerado neste estudo. Mas, a partir de algumas observações realizadas, ficou evidente que essa categoria de educação precisa compor o leque dos programas que podem definir um quadro bem equilibrado de ofertas verticalizadas de educação profissional e tecnológica.
A educação profissional pós-secundária é uma dimensão importante quando olhamos para demandas de capacitação profissional que envolvem adultos que tem muitas experiências no mundo do trabalho. Esses adultos não fazem escolhas da mesma forma que jovens de quinze anos de idade que acabaram de concluir o ensino fundamental. Eles têm uma visão mais clara do trabalho e do emprego no momento em que escolhem um curso. Ao contrário dos jovens que ingressam em cursos técnicos de ensino médio para conhecer a área, eles quase sempre sabem que rumo querem tomar em termos de destino profissional.
Foram acompanhadas diversas turmas de cursos técnicos subsequentes. Cabe uma nota sobre dois deles, nos quais predomina uma clientela adulta, com média de idade em torno de trinta anos: o técnico em podologia, e o técnico em estética facial. Nos dois casos, as alunas entrevistas fizeram escolhas para uma profissão que querem exercer ou até que já estão exercendo por meio de estágios voluntários. Em ambas as turmas foram encontradas pessoas que já fizeram algum curso de nível superior. Em ambas as turmas também foram encontrados profissionais de nível superior que procuram o curso como forma de expandir seus saberes em áreas nas quais já trabalham.
Como já reparamos antes, o alto nível de escolaridade e a maturidade dos alunos da maioria dos cursos técnicos subsequentes não são as únicas características que os diferenciam de cursos técnicos integrados para adolescentes. Eles são realmente pós-secundários. São uma capacitação profissional com o predomínio de atividades práticas em oficinas, laboratórios, ateliês ou clínicas. Este mesmo predomínio de atividades práticas diferencia-nos de formação em nível superior, pois nos cursos não se enfatizam saberes acadêmicos, embora estudos de ciências e tecnologias possam ser exigentes neles.
Cursos técnicos subsequentes têm procura significativa nas instituições de formação profissional Eles sinalizam escolha por um formato de educação que capacita de fato profissionais e que é visto pela clientela como caminho adequado de formação profissional de adultos. Por essa razão precisam ganhar destaque em propostas de verticalização do ensino em EPT.
Cursos superiores
Neste capítulo destacamos a diversidade dos cursos superiores de tecnologia nas Instituições internacionais. Fizemos algumas observações em cursos de formação de tecnólogos no Brasil, mas consideramos que elas não acrescentaram informações relevantes a um quadro que pudesse mostrar novos caminhos para o ensino superior mais vinculado à educação profissional e tecnológica. Consideramos que as variadas formas do ensino superior tecnológico verificadas em outros países podem servir de guias para uma verticalização mais sintonizada com o universos do trabalho, uma vez que a solução que temos hoje em nossas instituições de ETP parecem estar muito mais orientadas por formalidades do universo escolar.
Cursos superiores no Seneca College
Uma das instituições internacionais de educação profissional e tecnológica que escolhemos para análise de programação oferecida é o Seneca College (SENECA COLLEGE, 2018). O college não publica catálogos de cursos. Para examinar os programas do Seneca é preciso percorrer o portal institucional do mesmo, examinando os hiperlinks que descrevem detalhes de cada programa desenvolvido. Fizemos isso, analisando amostras representativas de todos os programas oferecidos. Além disso, utilizamos o mesmo portal institucional para recolher informações sobre história e funcionamento do Seneca College.
O college surgiu em 1967 e funcionava em instalações cedidas por outras instituições governamentais. Com o tempo, o Seneca foi construindo campi próprios em várias regiões da Grande Toronto. Hoje o college tem dez campi. A programação atual do Seneca abrange ensino superior e ensino pós-secundário não universitário.
Na instituição há um grande número de programas de ensino superior, quase todos tecnológicos, com uma parcela expressiva de bacharelados. As titulações canadenses referem-se a várias formações de nível superior, em percursos formativos que duram de um a quatro anos. O portal do Seneca College resume sua oferta em quadro que indica o número de títulos por categoria:
- 16 Bachelor´s Degree.
- 72 Diploma Programs.
- 28 Advanced Diploma Programs.
- 23 Certificates Programs.
- 48 Post-Graduate Certificates.
Percursos formativos que resultam na obtenção de um Bachelor´s Degree exigem quatro anos de estudos. Segue exemplo de um desses programas, o Honours Bachelor of Technology-Software Development:
O currículo inclui exploração extensiva de linguagens de programação, sistemas operacionais, aplicações web, interfaces multimídia, segurança em informação, base de dados, análise de sistemas, e princípios de planejamento de software.
O curso dura quatro anos. Há diversos requisitos acadêmicos para ingresso, sobretudo o de bom desempenho em ciências e matemática no ensino médio. Exige-se também nível alto de domínio da língua inglesa. Para adultos com comprovada experiência no setor, os requisitos acadêmicos podem ser dispensados. O Seneca segue aqui uma orientação parecida com a que encontramos no Sheffield College, valorizando saberes desenvolvidos por meio do trabalho, mesmo que o candidato não tenha alcançado desempenhos satisfatórios em suas notas de ensino médio. Essas condições existem em todos os outros programas de Bachelor´s Degree. O reconhecimento de saberes dos trabalhadores não depende de um sistema de avaliação institucionalizado. Ele acontece a partir de análises dos educadores do próprio college. Isso evita burocracias e favorece articulações mais flexíveis entre experiência profissional e estudos.
A formação do profissional (Honours Bachelor of Technology-Software Development) também inclui um Mandatory Degree Co-op. Em muitos cursos superiores no Canadá há uma pratica de educação cooperativa que articula aprendizagem no trabalho com estudos acadêmicos. O modelo mais comum dessa prática é o que intercala períodos de trabalho numa empresa com períodos de estudo na universidade.
Para exemplificar Diploma Programs, escolhemos o Esthetician. O programa dura dois anos e é equivalente ao nosso curso superior de tecnologia. Há, inclusive, curso similar no Brasil (BRASIL, 2016), listado no Catálogo Nacional de Cursos Superiores de Tecnologia: Curso Superior de Tecnologia em Estética e Cosmética.
Todos os demais programas que resultam na obtenção de um Diploma duram também dois anos.
Os Diploma Programs predominam no Seneca College, eles constituem 38% dos programas de educação superior na instituição.
Para exemplificar os Advanced Diploma Programs escolhemos o Fashion Arts, assim descrito pelo portal da instituição:
Fashion Arts, voltado para design e produção, é um programa de três anos que lhe oferece uma carreira orientada para a indústria da moda. Como um aluno de Fashion Arts você irá estudar têxteis, a história da moda, design e produção de moda assistidos por computador. Por meio de estágio na área, participação em competições e trabalho voluntário você terá oportunidades de entrar em contato com a área, estabelecer conexões e desenvolver seu crescimento e criatividade.
Todos os demais Advanced Diploma Programs têm caraterísticas semelhantes. A titulação é regional (Ontario College Advanced Diploma). A diferença entre esses programas e os citados no item anterior é a duração, três anos em vez dos dois anos para os Diplomas básicos.
Esses programas com o rótulo de advanced também podem ser equiparados a nossos cursos superiores de tecnologia. Há curso similar ao citado programa no Brasil. O catálogo de cursos superiores de tecnologia do MEC (BRASIL, 2016) lista um Curso Superior de Design de Moda.
Há também na instituição programas de ensino superior que duram apenas um ano; são os Certificates Programs. Eis aqui um exemplo: Underwater Skills. Escolhemos esse programa por ser ele algo bastante inusitado, diferente de outros programas do mesmo nível referidos a ocupações bem conhecidas como Accounting Techniques, Flight Services, Floral Design etc. No portal da instituição, Underwater Skills é descrito da seguinte forma:
Estudando de setembro a junho, você irá receber treinamento prático em habilidades de mergulho relativas ao trabalho submerso, soldagem submersa, construção e trabalho em rios, lagos e canais, assim como inspeção e trabalhos de reparo em atividades em águas profundas, no litoral ou em alto mar.
Os Certificates Programs duram um ano e também são de reconhecimento provincial (Ontario College Certificate). Não há equivalentes para tais programas no Brasil. Cursos universitários de apenas um ano de duração não fazem parte de propostas de ensino superior em nosso país.
O Seneca College também possui atividades de pós-graduação. Elas aparecem no portal da instituição com o rótulo Graduate Certificate Programs. Um exemplo: 3D Animation, assim descrito no portal do Seneca:
Especialize-se em modelagem 3D e animação apoiadas por computador. Como estudante deste programa você irá utilizar as mais modernas workstations e aprender a usar ferramentas para resolver problemas, para criar demos (filmes) usando Maya, Nuke, Mental Ray e o Arnold Renderer. Este programa de dois semestres permitirá que você desenvolva sua carreira em animação em 3D.
A titulação que se recebe ao concluir programas de pós-graduçao do Seneca College é um Ontario College Graduate Certificate. Os pré-requisitos para ingresso nos programas são bastante exigentes. No caso do 2D Animation, o candidato deve:
- Possuir graduação em instituição reconhecida em artes, animação, fotografia, cinema/vídeo, arquitetura ou graphic design; OU
- Candidatos mais maduros, com experiências de 3 a 5 anos relacionadas com a área, poderão ser dispensados das exigências acadêmicas a critério do college. Para tanto será preciso fornecer documentação comprobatória de experiências de trabalho.
- Comprovar proficiência satisfatória em inglês.
Além das exigências acadêmicas, o candidato deverá comprovar suas capacidades como desenhista. Essa comprovação inclui apresentação de seis diferentes desenhos do corpo humano, dois desenhos feitos à mão livre, dois desenhos de objetos, dois desenhos do ambiente, e dois desenhos livremente escolhidos pelo candidato.
Todos os programas de pós-graduação do Seneca College têm duração de um ano. Há variações de pré-requisitos e nos trabalhos que os estudantes devem executar durante seus estudos. Os programas não são de mestrado, nem de doutorado. São atividades que têm como finalidade desenvolver capacidades profissionais mais elevadas que aquelas já constituídas por meio de estudos universitários e/ou experiência profissional comprovada. Eles são pós-graduações profissionais para as quais não conseguimos encontrar algo comparável em nosso sistema de ensino. Entre nós, talvez, se convertessem em mestrados profissionalizantes. Essa alternativa, porém, tem certo ranço acadêmico que a instituição canadense não possui. Ela propõe uma pós-graduação tecnológica que tem como referência exigências de trabalho que requerem conhecimentos mais aprofundados que aqueles desenvolvidos em cursos de graduação. Essa experiência do Seneca College talvez deva ser considerada por nossas instituições de EPT ao proporem cursos de pós. Há uma tendência entre nós de optar por soluções inspiradas por modelos acadêmicos. No college canadense parece que o modelo inspirador são as exigências do mundo do trabalho.
O que examinamos nesta seção mostra um caminho de verticalização na organização do ensino superior no campo tecnológico com quatro alternativas de graduação, Bachelor´s Degree, Diploma Programs, Advanced Diploma Programs e Certificate Programs. O segundo e o terceiro guardam alguma relação com nossos cursos superiores de tecnologia, a terceira é um ensino superior que, no que estudamos aqui, tem paralelo apenas no Sheffiled College. Merece destaque a maneira pela qual o Seneca College conduz suas atividades de pós-graduação. Elas são nitidamente tecnológicas e não acadêmicas.
Cabe uma última observação nesta seção. Assim como o Sheffield College, o Seneca apresenta uma diversificação de cursos superiores que parece refletir hierarquias ocupacionais e não apenas organização de cursos de acordo com tradições do ensino escolar. Isso dá à verticalização do ensino uma gradação que reflete de maneira mais completa a vinculação entre trabalho e educação. Vale considerar como britânicos e canadenses propõem um ensino superior com mais nuances que as tradicionais fórmulas de organização das graduações nos institutos de ensino superior.
Cursos superiores no Sheffield College
Os cursos superiores oferecidos pelo Sheffield College variam bastante em termos de concepção. Atualmente a instituição oferece quarenta e dois cursos de nível superior, muitos deles em articulação com universidades onde os alunos poderão prosseguir estudos. Para situar mais concretamente como se dá o ensino superior no college, convém examinar alguns exemplos dos programas desenvolvidos.
Proporcionalmente, a área com mais cursos superiores é a de engenharia. Como na área predominam os cursos superiores, apresentaremos aqui sínteses de todos eles.
Electrical & Electronical Engineering HND. O curso é uma das muitas particularidadesdo ensino superior britânico. Ele é definido em suas linhas gerais pelo BTEC (Business and Technology Council) e propõe formação básica de nível superior (níveis 4 e 5) para trabalho em elétrica e eletrônica. Pode ser definido como um curso de engenharia básica com duração de dois anos. As aulas acontecem apenas um dia por semana em tempo integral. O curso dura dois anos e os formandos podem, se aceitos, prosseguir estudos numa universidade. Não se pode comparar tal curso com nossos programas de formação de tecnólogos. Ao mesmo tempo, é preciso observar que os pré-requisitos de ingresso exigem uma formação prévia que inclui um BTEC de nível 3 na área, com menções A em ciências e inglês. Assim, embora o programa não seja equivalente ao nosso curso para formar tecnólogos, os alunos que nele ingressam Já devem ter uma formação prévia em curso técnico pós-secundário de nível 3.
HNC Electrical & Electronical Engineering. O curso está voltado para técnicos emengenharia[28] já empregados na indústria de manufatura ou em indústrias de engenharia. Assim como o curso anterior, esse programa é uma concepção criada pelo BTEC e define possibilidades nacionais de trabalho em elétrica e eletrônica. HNC é sigla de Higher National Certificate, um título que designa formações superiores básicas, de grau inferior ao HND –Higher National Diploma. O curso também é desenvolvido num único dia da semana, em tempo integral.
HNC Manufacturing Engineering. O curso está voltado para técnicos em engenharia jáempregados ou procurando emprego na indústria manufatureira ou nas indústrias de engenharia. As condições de desenvolvimento do curso são similares às descritas paras o curso anterior.
HND Manufacturing Engineering. Este BTEC de nível 5 em Engenharia de manufatura éum curso de tempo parcial que dura um ano. Ele está voltado para estudantes que cursaram o HNC com o mesmo título ou que têm experiência no campo da engenharia.
Todos os cursos aqui descritos dão direito a continuidade de estudos em universidades na direção de um bacharelado em engenharia. E são, ao mesmo tempo, terminais, pois correspondem a ocupações de nível superior que exigem apenas formação de curta duração em engenharia. Como já observamos, tais cursos são bastante diferentes de nossos cursos de tecnologia de nível superior. Há que acrescentar que os mesmos cursos supõem engajamento dos alunos em trabalho da área. Por essa razão, as aulas são desenvolvidas em tempo integral, mas apenas um dia por semana. Isso possibilita situação em que os alunos estudam e trabalham na área, numa associação interessante entre atividades produtivas e estudos.
HND Animal Management. Diferentemente dos cursos de engenharia, ele é desenvolvido em tempo integral (três dias por semana, o dia todo), com uma carga horária bastante mais elevada. Este é um curso bastante parecido com nossos cursos superiores de formação de tecnólogos.
BA HONS (Top Up)[29] Management Events. Este é um curso com nomenclaturadiferente. Ele é um Bachelor in Arts, geralmente desenvolvido em universidades num programa de três anos. Mas, o programa do college prevê uma formação em apenas um ano, porque o requisito de ingresso é uma formação prévia no nível 5 (universitária). A continuidade de estudos poderá ocorrer no nível de mestrado. No caso deste curso, o Sheffield College tem acordo de validação com a Open University.
AAT Professional Diploma in Accounting (Level 4). O nível 4 é o mais básico noensino superior britânico. O programa em questão é definido pela AAT, Associação Britânica dos Técnicos em Contabilidade. Esse programa, bastante procurado, está voltado para estudantes que chegaram recentemente ao nível 3 do Diploma em Accounting da ATT e querem se tornar técnicos superiores de contabilidade. Cabe reparar que tal curso, que dura apenas um ano, em tempo parcial, exemplifica mais uma possibilidade de formação superior no Reino Unido.
CIM Certificate in Professional Marketing (Level 4). Este é outro curso superior básico,de nível 4. Ele é definido, como o anterior por uma associação que congrega profissionais da área, o CIM- Chartered Institute of Marketing. Na definição do programa, o catálogo informa:
O CIM Professional Certificate in Marketing procura oferecer a profissionais relevantes conteúdos na área e os necessários conhecimentos e habilidades para o sucesso profissional no ambiente de marketing. Ao conseguir essa qualificação, o estudante estará equipado com profundo entendimento e conhecimento de demandas do cliente em diferentes contextos, comunicação integrada com os clientes, e a importância da sempre mutante e dinâmica paisagem digital, e como desenvolver habilidades para promover a efetividade digital em marketing. Este curso é destinado a profissionais de marketing que buscam desenvolver-se em sua carreira profissional.
FdA Fashion Production with Business. Temos aqui mais uma categoria classificatóriade curso superior: FdA- Foundation in Arts. O curso, desenvolvido em dois anos, em tempo integral, é classificado como de nível 4 no primeiro ano, e de nível 5 no segundo. O estudo envolve tanto design como promoção em moda. O curso tem interfaces com cursos similares desenvolvidos em outros países europeus (incluindo Finlândia e Itália). Este é um programa bastante próximo de nossos cursos para a formação de tecnólogos. A formação implica em terminalidade e também abre portas para continuidade de estudos em nível 6, num bacharelado em artes.
ILM Level 5 NVQ in Management & Leadership. Temos aqui mais uma variação nanomencltura de cursos superiores no campo da educação tecnológica. No caso, uma associação profissional, ILM- Intitute of Leadership and Management, sugere curso superior que se articula com demanda futura em termos de credenciamento do trabalhador após exame correspondente no sistema NVQ. O curso, que dura 35 semanas, em tempo parcial, em termos das classificações acadêmicas é de nível 4, pois é uma formação básica e rápida de ensino universitário. A proposta tem algumas particularidades que merecem destaque. Segue descrição encontrada no catálogo:
O Diploma ILM Level 5 NVQ in Management and Leadership está voltado para os quadros médios da gestão com responsabilidade por programas e recursos substanciais. Ele desenvolve habilidades em planejamento estratégico, mudanças estratégicas e processos de planejamento de negócios, assim como liderança básica e gestão de habilidades tais como aquelas para inspirar os colegas e alcançar resultados.
Essas qualificações reconhecem as habilidades e experiências que os candidatos possam ter desenvolvido durante um período de tempo, ou que adquiriram por meio do trabalho. Essa qualificação também faz parte da ILM Level Management Apprenticeship. Tanto para o Diploma como para a Aprendizagem, os candidatos precisarão estar num papel de gestão (full time, part time, ou em trabalho voluntário).
Reproduzimos um longo trecho de descrição do curso porque as informações contêm aspectos interessantes:
- O programa está voltado para quadros médios que queiram progredir em suas carreiras.
- A formação pode ser desenvolvida em curso convencional ou por meio de Aprendizagem.
- Necessariamente, os alunos precisarão estar trabalhando na área.
As três características atrás listadas, exceto a primeira, não são comuns para cursos superiores desenvolvidos no Brasil. Não temos Aprendizagem escalonada em níveis, muito menos Aprendizagem equivalente a curso superior. Finalmente, o curso exige que os alunos estejam trabalhando, Essa é uma condição que talvez não possamos considerar no caso brasileiro (é preciso verificar se a possibilidade não tem impedimentos legais), mas assim como na Aprendizagem, ela sugere uma articulação interessante entre educação e trabalho. O que se propõe não é a tradicional recomendação de considerar a experiência de trabalho dos alunos, mas uma concepção de desenvolvimento educacional que exige que os alunos estejam trabalhando na área que é objeto de seus estudos.
Management Apprendiceship Level 4. No item anterior fez-se menção á equivalênciade um curso superior convencional com programa de Aprendizagem. Mas, o college não está oferecendo tal Aprendizagem. Aqui é diferente. O programa de nível superior é uma Aprendizagem de nível 4. Vale reproduzir a descrição do programa tal qual aparece no catálogo:
As demandas e desafios que as organizações enfrentam mostram que a liderança de grupos e habilidades de gestão nunca foram tão importantes. Esta qualificação é adequada para gestores que chegam ao nível intermediário da administração e que desejam construir suas habilidades e experiências em liderança e gestão, com uma combinação de atuação profissional e estudos teóricos. Aprendizagens são um excelente caminho para desenvolver novos empregados e para elevar domínio de habilidades em membros das equipes existentes em habilidades próprias do ramo de negócios, ao equipá-los com uma qualificação nacionalmente reconhecida.
Essa alternativa de formação superior para desenvolvimento de saberes no trabalho e pelo trabalho, com assistência e apoio de instituições de EPT, sugere metodologias que valorizam a ação como fonte de conhecimento.
FdSc Bakery & Patisserie Technology. Este é mais um curso com o rótulo Foundation.No caso, os aspectos fundacionais têm a ver com ciência (Sc = Science). O curso é validado pela Universidade College de Birmingham. O programa prevê dois anos de curso, dois dias por semana, em tempo integral. O curso é equiparável a formação superior de tecnólogos e não se articula com qualquer formação similar no nível de licenciatura ou bacharelado. Possivelmente isso acontece porque o aprofundamento de estudos de padaria e pâtisserie em dois anos de ensino superior já é um avanço muito grande em termos de formação de profissionais do ramo.
Foundation Degree Early Years Education. O curso é validado pela Universidade de Hallam. O termo Foundation sugere, como nos casos anteriores, aprofundamento de estudos numa área de saber. Vale observar que esta também é uma Foundation em Artes. No catálogo, o curso é descrito da seguinte forma:
O curso é planejado para encorajar, capacitar e equipar o estudante para se tornar um educador confiante e reflexivo no campo da educação infantil. O aluno irá desenvolver um entendimento detalhado da primeira infância e dos fatores que afetam e influenciam as crianças e suas famílias. O curso dura dois anos e é desenvolvido em tempo integral. Os alunos devem ter experiência prévia em educação infantil. Formandos podem prosseguir estudos no nível de bacharelado numa universidade ou fazer cursos de especialização em gestão da educação infantil.
Creative Practice: Media Production (BA topup). Já vimos outros cursos no portfólioda instituição com esta característica: uma complementação de estudos universitários feitos antes na modalidade Foundation para obter o grau de bacharel. O curso dura um ano e requer dos estudantes formação em fundacional em na área de artes ou de mídia.
FdA Creative Digital Practice (Games Development). Este é outro curso da categoriaFoundation in Arts. Está voltado para a formação de profissionais capazes de desenvolver jogos digitais. Tem duração de dois anos e acontece em tempo integral. Ele é um dos cursos do tipo Foundation que pode servir de porta de entrada para o curso descrito no item anterior, uma complementação (BA topup) para se obter grau de bacharelado.
FdSc Dental Technology. Outro curso da categoria Foundation in Science. Segue adescrição encontrada no catálogo de cursos da instituição:
Sujeito a validação pela Open University, este excitante curso novo no college oferece uma abordagem prática com foco em Tecnologias Odontológicas; ele facilita a aquisição de desenvolvimento em profundidade de habilidades especiais, e ao mesmo tempo oferece um entendimento amplo e contextual da profissão. Num percurso de estudos de dois anos, o estudante terá como foco habilidades básicas e práticas para o sucesso profissional (como anatomia básica em odontologia), assim como técnicas necessárias para o trabalho na área.
A descrição do curso e a relação de conteúdos curriculares indica formação de protéticos, uma profissão que no Brasil ainda é objeto de formação no nível de ensino médio.
Selecionamos um número representativo de cursos superiores para apreender a diversidade de tal nível de ensino no college de Sheffield. Em alguns casos os programas desenvolvidos assemelham-se aos nossos cursos superiores de tecnologia. Mas, no Reino Unido, a formação superior relacionada com tecnologia pode ser feita de várias formas. No que segue, tentaremos apresentar uma classificação dos tipos de cursos superiores oferecidos na instituição de Sheffield:
Aprendizagem de nível 4 ou 5. Nos levantamentos realizados encontramos nocollege alguns cursos superiores que são desenvolvidos por meio de atividades num posto de trabalho, com aulas no college apenas um dia por semana. A concepção, para nós, é surpreendente, pois no Reino Unido é possível associar trabalho com educação profissional na universidade. Dificilmente poderemos reproduzir algo parecido no Brasil, mas a experiência britânica merece atenção .
Cursos Fundacionais. Utilizamos aqui uma tradução talvez inadequada paraFoudation, uma proposta de aprofundamento de estudos numa determinada área profissional. Tais cursos, vinculados às artes (Arts) ou às ciências (Science), com formação terminal garantida, quase sempre asseguram também possibilidade de continuidade da formação na direção de um bacharelado. Os cursos fundacionais são os que mais se aproximam de nossos cursos de formação de tecnólogos.
Cursos credenciados por associações profissionais. No reino Unido,organizações (ONG’s) autorizadas pelo estado, podem controlar acesso de profissionais ao mercado de trabalho e propor modos de formação que julgarem mais adequados para os profissionais de uma dada área. As propostas formadoras de tais organizações abrangem todos os níveis ocupacionais e educacionais. Nos exemplos que examinamos aqui, as organizações credenciaram o college para desenvolver alguns dos cursos por elas concebidos para o nível superior. Um dos exemplos que escolhemos foi um curso superior de contabilidade credenciado pela ATT, associação britânica de técnicos em contabilidade. Trata-se de um curso de curta duração (um ano), destinado a técnicos que queiram aprofundar estudos em nível universitário. Há vários outros cursos credenciados por ONG’s, quase sempre em programas de curta duração.
Cursos que conferem certificado de ensino superior. Tais cursos sãoidentificados pela sigla HNC (Higher National Certificate). São de curta duração (geralmente um ano) e costumam estar associados ao trabalho.
Cursos que conferem diploma de ensino superior. Programas de ensinosuperior com duração de dois anos podem conferir diploma de HND (Higher National Diploma), um documento que se refere a percurso educacional com mais créditos que o de cursos que conferem certificados.
Cursos que complementam estudo fundacionais. Uma das modalidades deensino superior leva o nome de Foundation (em artes ou em ciências) e costuma ser um programa voltado para capacitação tecnológica semelhante ao nosso tecnólogo. A complementação, de um ano, confere aos tecnólogos o título de bacharéis. Eles se assemelham à continuidade de estudos numa universidade convencional.
Os cursos superiores oferecidos pelo college, exceto os que funcionam como complementação dos fundacionais, são exclusivamente tecnológicos e de curta duração (um ou dois anos). Não há no Sheffield College programações equivalentes às nossas licenciaturas, bacharelados e programas de pós-graduação.
Cursos superiores no Miramar College
No Miramar College, à semelhança do que ocorre no ensino médio e superior dos Estados Unidos, a educação se organiza num sistema de créditos que dá ao aluno possibilidade de construir seus percursos de estudo com bastante flexibilidade. Na instituição americana não há cursos nitidamente voltados para uma ocupação ou profissão como acontece no Sheffield College ou no Seneca College. As ofertas educacionais são organizadas em programas, um conjunto assemelhado a áreas de estudo ou ocupacionais, ou eixos tecnológicos, artísticos, ou científicos. Cada programa comporta grande diversidade de conteúdos ou disciplinas chamados de courses. Para manter certa fidelidade ao modo do college organizar suas propostas de ensino, vamos utilizar uma tradução literal para programs (programas) e courses (cursos).
No college de Miramar é oferecida uma variedade de programas cujos títulos podem corresponder a atividades de trabalho ou a áreas de saber com acento acadêmico. No primeiro caso, por exemplo, há programa para Contabilidade, Administração da Justiça, Tecnologia de Aviação, Tecnologia Diesel. No segundo caso, por exemplo, há programas para História, Biologia, Sociologia, Música
Como a organização do ensino no college americano é muito diferente do que vimos no colleges inglês e canadense, convém, para deixar mais claro o assunto, examinar um dos programas oferecidos pelo Miramar College. Elegemos para tanto o programa Automotive Technology.
Em Automotive Technology é possível escolher seis caminhos em termos de obtenção de certificados:
- Certificate of Perfomance em Advanced Emission Specialist, num percurso de estudo com 5 ou 8 unidades.
- Certificate of Achievement em Automotive Chassis (16 unidades); Automotive Electrical (16 unidades); Automotive Engine PMerformance (20 unidades); Automotive Transmissions (20 unidades).
- Associate of Science Degree: Automotive Technology.(40 unidades do core curriculum + 20 unidades eletivas).
Apenas o último percurso, Associate of Science Degree: Automotive Technology, é de nível superior. Os dois primeiros são percursos de estudos que levam a uma capacitação pós-secundária, mas não universitária.
O Miramar College oferece cinco documentos comprobatórios de estudos: Associate Degree in Arts (A.A. Degree), Associate Degree in Science (A.S. Degree). Associate Degree for Transfer, Certificate of Achievement, Certificate of Performance. Com base nas informações da instituição americana (MIRAMAR COLLEGE, 2017), oferecemos aqui definição sintética de cada uma dessas certificações:
Associate Degree in Arts (A.A. Degree). Recebe titulação com esse rótulo aluno que passa por um percurso de estudos num programa de artes (compreendendo tanto artes em sentido restrito como estudos nas áreas de humanas), perfazendo pelo menos 60 unidades. O título corresponde a uma formação terminal de nível superior que dura em média dois anos. A formação pode ser apenas acadêmica ou pode ser uma formação tecnológica. O título pode ser comparado com nosso diploma de tecnólogo.
Associate Degree in Science (A.S. Degree). Titulação com as mesmas características que a anterior. O que a diferencia são os conteúdos relacionados com as áreas de ciências (física, química, biologia).
Associate Degree for Transfer. Parte do ensino do college está voltado para a formação acadêmica e corresponde aos dois primeiros anos de estudos numa universidade convencional. O título recebido permite que o aluno continue estudos numa das universidades que mantêm laços de colaboração com o college. Este Associate Degree não é de caráter profissionalizante.
Certificate of Achievement. Esse certificado corresponde a um percurso de estudos que tem por finalidade capacitação profissional na área abrangida pelo programa. Para obter o certificado, o aluno deve cumprir a programação definida pelo college para o Certificate específico. No caso, o conjunto dos cursos não pode ser menor que nove unidades. No geral os certificates of achievement exigem cerca de 15 unidades, podendo alcançar até 20 em alguns casos. Para obter essa certificação, o aluno deverá estudar pelo menos um semestre (em tempo integral). A formação correspondente a um Certificate of Achievement pode ser equiparada a uma formação no nível de técnico ou de auxiliar técnico, lembrando sempre que tal ensino nos Estados Unidos é pós-secundário, e assim a comparação aqui sugerida é apenas um indicação para se entender a natureza do ensino oferecido.
Certificate of Performance. O percurso de estudos para a obtenção dessa certificação exige passagem por pelo menos seis unidades. Em média, os certificates of performance exigem oito unidades. As finalidades de tal tipo de estudo são ocupacionais abrangendo iniciação profissional, especialização em algum tópico ou progressão no trabalho por meio da aprendizagem de novas técnicas.
Como há possibilidade de aproveitamento de estudos, considerando créditos obtidos em formação técnica para estudos universitários posteriores, incluímos aqui os dois últimos tipos de certificação. Eles não são de nível superior, mas estão integrados a um percurso formativo que pode continuar em nível mais elevado.
Historicamente, os community colleges cumprem dupla função, preparam jovens e adultos para o trabalho, preparam estudantes para ingresso em cursos universitários oferecendo uma iniciação de ensino superior que poderá ser complementada em universidades tradicionais. Aparentemente, os cursos (unidades de conteúdo) oferecidos por Miramar são mais numerosos no campo da preparação para a universidade. Porém, é difícil verificar essa aparente tendência porque em programas voltados para a capacitação profissional muitas das matérias eletivas que o aluno pode escolher são de educação geral.
Como nos community colleges os cursos não são estanques, há bastante possibilidade de integração entre níveis de ensino e até de áreas ocupacionais ou de saber. O sistema de créditos permite ou facilita transições entre os diferentes níveis de ensino. Assim, aluno que esteja em busca de um certificate of performance poderá estar inscrito também em curso que é conteúdo curricular em certificate of achievement ou associate degree. Os diferentes percursos permitem que os alunos possam fazer escolhas que melhor lhes sirva, assim como permite que a escola ofereça para alunos, que não alcançaram ainda níveis satisfatórios de desempenho acadêmico, oportunidade educacional adequada ás suas qualificações, incluindo possibilidades de usarem o que o college oferece para compensarem déficits de sua formação no ensino básico. Isso acontece com muita frequência em community colleges, principalmente na aprendizagem do inglês (ROSE, 2015).
O balanço geral das ofertas de educação do Miramar College, comparado com o que oferece o Sheffield College e o Seneca College, mostra que a instituição americana tem um perfil bastante mais restrito no campo da verticalização, considerando o que ele realiza em termos de ensino superior.
Ensino superior tecnológico: instituições internacionais X Brasil
Nas narrativas sobre instituições internacionais indicamos diversas vezes possíveis comparações com o que ocorre no Brasil. Em nosso país a definição do ensino superior tecnológico não tem variações significativas. Apesar da diversidade de títulos de cursos, a formação de tecnólogos acontece dentro de um mesmo modelo. Nas instituições internacionais, sobretudo na britânicas e na canadense, há variação expressiva dos cursos oferecidos, indicando certa congruência com a pirâmide ocupacional. Vimos, nas instituições internacionais, diversidade de duração e de titulação inexistente no Brasil. Essa constatação sugere considerações que serão desenvolvidas quando abordarmos sugestões e indicações para políticas de educação profissional e tecnológica na parte final deste estudo.
A Nova Aprendizagem
Ao estudarmos as estruturas de programação de instituições internacionais, descobrimos que houve em vários países um revival do aprender no trabalho e pelo trabalho que é preciso considerar aqui, embora os planos iniciais deste estudo não incluíssem tal modalidade de ensino. Como a Aprendizagem no Brasil não se integra ao sistema de ensino escolar, não percebemos inicialmente a importância que essa forma particular do aprender pode ter em concepções da verticalização do ensino. Mas, as experiências que vêm acontecendo em outros países nos levaram a integrar a Aprendizagem como objeto importante no desenvolvimento de um sistema de educação profissional e tecnológica capaz de integrar trabalho a todos os níveis de ensino. Para tanto, aprofundamos estudos sobre experiências de outros países, incluímos observações de programas de Aprendizagem em todas as instituições visitadas que desenvolvem essa modalidade de educação, e buscamos na literatura indicações de como o trabalho é uma oportunidade de aprender que a escola não pode substituir. Por isso, na medida em que as investigações foram ocorrendo, incluímos os programas de Aprendizagem como objeto importante de observação para este estudo. No que segue, vamos apresentar uma síntese do que elaboramos sobre o aprender no e pelo trabalho em programas de Aprendizagem.
Saberes do Fazer e Aprendizagem
Em educação profissional é comum o bordão “aprender fazendo”. É comum também o entendimento de que as instituições de EPT devem ter ambientes (oficinas, ateliês, laboratórios) que reproduzam ou emulem as condições materiais dos locais onde o trabalho que é alvo de ensino ocorre. Mas, as instituições escolares não conseguem emular as relações que se estabelecem entre os atores sociais no trabalho do dia a dia e que são um componente fundamental na elaboração dos saberes próprios de uma dada ocupação. Essas relações e o modo pelo qual elas são tecidas no dia a dia não transitam das situações de trabalho para modos de representação abstratos que caracterizam a maneira pela qual o saber é codificado para transmissão em ambientes escolares.
As formas tradicionais do aprender a trabalhar ganharam contornos definitivos no instituto de Aprendizagem estabelecido pelas corporações de ofícios (RUGIU, 1993), caracterizando uma educação completamente diferente da educação escolar (MJELDE, 1987). Essa tradição foi incorporada à organização de instituições organizadas no século XIX para educar desvalidos da sorte e garantir a reposição de quadros de trabalhadores em funções que requeriam capacitação profissional demorada (CUNHA, 1994). E de certa forma, ela ainda foi muito determinante nas escolas de aprendizes e artífices criadas em 1909 (CORDÃO e MORAES, 2017; MANFREDI, 2002). Com o tempo, a escolarização crescente da formação profissional evidenciou as contradições entre as tradições da educação que se fazia nas corporações de ofício e a educação que se fazia em escolas criadas para as elites (MJELDE, 1987). E a tendência foi sempre a de favorecer a última como modelo, considerando a primeira com uma educação limitada (VILLALTA, 1997). Por outro lado, o aprender fazendo, típico da Aprendizagem, acabou sendo adotado pela Escola Nova como um princípio pedagógico importante (ADAMSON, 2007). Além disso, marcas de certo romantismo valorizaram o trabalho manual (RUGIU, 1993) e fizeram com que as escolas, particularmente nos Estados Unidos, tivessem oficinas, não para capacitar os alunos em algum ofício, mas para dar a eles a oportunidade de desenvolverem atividades em que o saber ganhava concretude por meio da realização de obras (CRAWFORD, 2009).
No percurso acima delineado, cresceu a convicção de que a preparação para o trabalho deveria ser uma atividade escolar. Com isso, a Aprendizagem foi ou abandonada ou passou a ser vista como uma forma de capacitação profissional para ocupações básicas, pouco exigentes em termos da educação escolar dos alunos. Mas, a tensão entre as tradições do ensino em corporações de ofício e o ensino escolar não desapareceu. No caso da Noruega, por exemplo, reformas educacionais chegaram a extinguir a Aprendizagem no país para retoma-la posteriormente, em grande parte porque os alunos não aceitaram a excessiva escolarização da educação profissional (MJELDE, 2010)
Apesar das pedagogias progressistas insistirem sobre o aprender fazendo, o reconhecimento de que a Aprendizagem é a forma mais completa de elaboração de saberes em comunidades de prática (prática social) acabou acontecendo não em estudos de educadores, mas em trabalhos de cientistas sociais. Tal reconhecimento aparece sobretudo nas investigações de Jean Lave e Etienne Wenger (WENGER, 1998; LAVE e WENGER, 1991) sobre construção social do conhecimento. Convergem para tal interpretação estudos como o de Sennett e de Crawford. O primeiro (SENNETt, 2008), ao analisar o saber artesanal, destaca as relações de mestre/aprendiz para que se efetive o aprender de técnicas e tecnologias em atividades produtivas. Num dos capítulos de sua obra aqui indicada, Sennett destaca que a mediação de obras com a presença dos mestres em todas as fases do processo técnico da fabricação de instrumentos (caso da produção dos violinos e violoncelos Stradivarius) indica a existência de um saber tácito cuja comunicação só pode ser efetivada em intercâmbios entre mestres e aprendizes em sucessivas produções de obras. No mesmo estudo, o autor ressalta que o processo comunicativo de mestres para indicar características de uma obra não é necessariamente literal ou didático, mas costuma ocorrer por meio de metáforas cujo entendimento exige compartilhamento do significado da obra em execução. O segundo autor (CRAWFORD, 2015) examina os saberes presentes na produção de um instrumento que requer trabalho colaborativo e conhecimento compartilhado dos trabalhadores, a construção de órgãos de tubo. Produzir tais instrumentos é uma arte exigente que requer muitos anos de aprendizagem dos profissionais. E mesmo trabalhadores com anos de estudos e de preparação no ramo da produção de órgãos de tubo comportam-se como aprendizes na relação com o mestre que conduz o processo. Mas, o saber compartilhado no caso não existe apenas na produção imediata de instrumentos encomendados por alguma instituição, ele também é um conhecimento com raízes históricas reconhecidas pelos trabalhadores. Essa vinculação com saberes de trabalhadores em outras épocas e lugares é assim descrita por Crawford:
Essa área de produção [órgãos de tubo] requer dos trabalhadores longa aculturação na história e aspectos refinados da arte própria do ofício. Os trabalhadores são capazes de traçar a linhagem de quem ensinou quem nas redes superpostas de Aprendizagem entre oficinas que fazem trabalho similar através do mundo. Nessa fraternidade que inclui pessoas vivas e pessoas que já desapareceram há muito tempo, o espírito de emulação e rivalidade é intenso; os trabalhadores procuram superar seus pares fabricando o melhor órgão possível. Dessa maneira, o trabalho é histórica e socialmente situado, e parece convidar cada um dos praticantes a experienciar seu próprio desenvolvimento como artesão. (p. 209)
A fabricação de órgãos de tubo é uma arte à qual se agregou no mundo moderno ciência e tecnologia de ponta no campo da engenharia de materiais e de acústica. Isso, porém, não mudou a forma de elaborar conhecimentos cooperativamente sob a liderança de um mestre. Embora a fabricação de órgãos de tubo seja uma atividade rara, Crawford a escolheu para estudo porque a mesma deixa muito claras as relações que se estabelecem no desenvolvimento do saber do trabalho na elaboração de obras. Ela deixa muito claras as características da Aprendizagem. Num trecho que aparece logo após o já citado, o autor destaca alguns pontos que é preciso considerar em educação e que ganham maior clareza quando se examinam casos exemplares de Aprendizagem. Convém dar a palavra a Crawford mais uma vez:
Nos Estados Unidos (mas não na Alemanha, por exemplo) a ideia de Aprendizagem é criticada por ser a de uma educação muito estreita. Fala-se que a economia demanda trabalhadores que sejam flexíveis. O ideal parece ser o de que eles não se preocupem com habilidades ou conhecimentos particulares; o que se quer é um saber genérico, do tipo daquele que é desejável na elite para ingresso na universidade. Isso se adequa bem a nosso ideal de um eu desimpedido, e com a exortação de Kant para nos vermos sob o rótulo de “ser racional”. Nos dizem que a economia está num estado de fluxo radical; fala-se em “ruptura” como se ela fosse a medida de criação de valores assim no século XXI. Nessa direção, dizem os críticos de uma aprender mais comprometido com o específico, a educação deve formar trabalhadores do mesmo material que caracteriza o indeterminável e sujeito a rupturas. Quanto menos situado, melhor. (p.209-210)
A análise de Crawford sinaliza que o entendimento de que a preparação para o trabalho deva ser generalista e não comprometida com certo repertório de habilidades (definidoras de um saber específico no campo do trabalho) desfavorece os trabalhadores. Estes não aprenderão numa comunidade de prática e irão elaborar um saber destituído de significado. Essa dissociação entre obras e saber, às vezes designada como habilidades gerais, resulta em prejuízo para o trabalhador. Propostas feitas por empresas nessa direção podem esconder a intenção de contar com uma mão de obra cujo acesso ao saber próprio do trabalho dependerá inteiramente de política de recursos humanos que não favorece a capacitação integral dos trabalhadores. Caso nessa direção foi registrado, por exemplo, quando uma rede de salões de beleza propôs a uma instituição de formação profissional redução radical do ensino de técnicas e maior ênfase em habilidades gerais (BARATO, 2013)
Ao complementar as considerações registradas na citação anterior, o autor mostra que mergulhos em habilidades e saberes específicos, característicos da Aprendizagem são necessários em aprenderes significativos. E isso não é marca exclusiva das Aprendizagens tradicionais. Na formação de cientistas este mesmo processo é necessário (GAMBLE, 2006). Em um estudo sobre fazeres de cientistas num laboratório de pesquisas (KAPELININ e NARDI, 2006) encontraram situações parecidas com as que Crawford descreve em seu estudo sobre o trabalho de construção de órgãos de tubo.
O que Kaptelinin e Nardi verificaram ao acompanhar o trabalho de um grupo de cientistas mostra envolvimento com obras num enredamento apaixonante. Esse mesmo enredamento foi revelado por um chefe de confeitaria a falar do trabalho que se desenvolve em seu setor numa entrevista realizada para estudo sobre EPT (BARATO, 2015). É interessante notar que em conclusões sobre suas observações científicas, os autores utilizam o termo paixão ao narrar como um cientista do grupo acompanhado descrevia seus argumentos para a escolha de certas obra:
O profundo sentimento para ajudar a humanidade, evidente no trabalho deste cientista revela patentemente natureza social pelas “necessidades de desejos” apontada por Leontief ao definir atividade. Na teoria da atividade, a paixão não é um estado psicológico individualista; ela é uma relação de emoção dirigida a uma atividade e seus objetos. (p. 168)
É preciso explicar referência a uma pesquisa que utiliza a moldura da teoria da atividade para examinar o que faziam os cientistas num laboratório que investigava micro-organismos mais interessantes para desenvolvimento de tecnologias farmacêuticas. No ambiente de trabalho descrito há uma associação necessária entre valores (justificadores de escolhas) e as atividades dos cientistas. Necessariamente o conhecimento está relacionado com a ação e com obras cujo significado é compartilhado por uma comunidade de prática. Fazer e saber não estão dissociados no caso, mas são faces de uma mesma prática social.
No trecho citado, o aspecto mais relevante é a constatação de que a emoção não é um sentimento individual, mas um modo de dar significado às escolhas que dimensionam o saber do trabalho, um aspecto que é intrínseco à atividade e a seu objeto. Essa é uma dimensão que só pode ser desenvolvida na ação. Ou, mais simplesmente: é uma dimensão que decorre do engajamento dos profissionais no trabalho. Esses saber não pode ser convertido em proposições para ensino por meio da escrita ou da oralidade. Em outras palavras, não é possível codifica-lo para que ele se converta em saber escolar.
Aprender no e pelo trabalho, aprender em comunidades de prática com outros trabalhadores, é uma das características da Aprendizagem. Tal aprender é marcado por um engajamento com a produção de obras significativas para os praticantes de uma arte[30]. Como já se mencionou anteriormente, esse aspecto é ressaltado em diversos estudos que abordam o trabalho de artífices e artesãos (SENNETT, 2008; CRAWFORD, 2015).
Em estudo anterior, fizemos registro de uma situação na qual o saber significativo dependia da mediação de obras, não de um discurso sistematicamente elaborado no campo da didática (BARATO, 2017). Num curso de cabeleireiro, a professora orientou os alunos para uma atividade de enrolamento de cabelo. Em grupo, os estudantes foram para bancadas no salão e, em manequins ou em modelos vivos, realizaram o enrolamento de cabelos. Mas, nas observações realizadas, ficou impressão de que a docente não explicava suficientemente o que devia ser feito, pois seu discurso não era bem articulado (além de revelar muitas incorreções gramaticais). Os registros de observação indicavam provável fracasso no ensino da técnica proposta. Mas duas ocorrências, percebidas no final da observação, mostraram que a professora desenvolvia um trabalho pedagógico muito eficiente. Isso ficou evidenciado de duas maneiras: 1. pelas reiteradas avaliações formativas que a docente realizava junto aos grupos durante o desenvolvimento da técnica, 2. pelo significado do saber em construção revelado no final da aula, quando a docente realizou um penteado muito elaborado numa cabeça de manequim cujo cabelo fora enrolado por alunos.
Embora o caso do enrolamento de cabelo tenha sido observado num curso de cabeleireiro no interior de uma escola, a atuação da docente não era a de uma professora, mas o de uma mestra de ofício, apresentando saberes da profissão num salão de beleza, não numa sala de aula. E a aprendizagem acontecida não decorreu de uma abordagem didática convencional, mas de um engajamento da docente e dos alunos na elaboração de uma obra.
Convém voltar a indicações feitas por cientistas sociais sobre o aprender em comunidades de prática. Após analisar diversas caraterísticas do aprender pela ação e com parceiros, Wenger (1998) faz um comentário em que ressalta a importância da Aprendizagem como forma de capacitação profissional:
Há um ponto sutil subjacente à discussão em andamento. Do ponto de vista dessa perspectiva, os processos educacionais baseados em real participação [como acontece na Aprendizagem] são efetivos para promover aprendizagem não só porque são ideias pedagógicas melhores, mas também porque fundamentalmente são “epistemologicamente corretos”, por assim dizer. Há uma correspondência entre a natureza da competência e o processo pelo qual a mesma é adquirida, compartilhada e desdobrada. (p. 101-102)
Uma dimensão importante da capacitação profissional é de caráter ontológico. Não se aprende apenas o trabalho, a profissão. Aprende-se a ser trabalhador. Ou seja, pelo trabalho, o profissional constrói uma identidade. Convém recorrer de novo a Wenger(1998):
Há uma profunda conexão entre identidade e prática. O desenvolvimento da prática requer a formação de uma comunidade cujos membros se engajam mutuamente uns com os outros e assim se reconhecem como participantes. Como consequência, a prática desencadeia a negociação de modos de ser uma pessoa em tal contexto. Essa negociação pode ser silenciosa; os participantes podem não falar diretamente sobre o assunto. Mas, abordando ou não abordando o assunto diretamente, eles se relacionam com ele, por meio do engajamento na ação uns com os outros. Inevitavelmente, nossas práticas dizem respeito ao profundo assunto de como ser um ser humano. Nesse sentido, a formação de comunidades de prática é também a negociação de identidades. (p. 149)
As referências teóricas que utilizamos até aqui mostram que há dimensões do aprender que exigem necessariamente engajamento numa comunidade de prática. Essa talvez seja a característica mais importante da Aprendizagem. Recentemente, em muitos países a Aprendizagem foi reformada para articular o saber no e pelo trabalho com a educação. Na próxima seção vamos examinar esse movimento a partir da experiência canadense.
O modelo da Aprendizagem profissional inspirou orientações inovadoras em educação. Esse é o caso do princípio do aprender fazendo promovido por Dewey (ADAMSON, 2007). Mais recentemente, a pesquisadora Barbara Rogoff (1990) utilizou o modelo para propor caminhos de desenvolvimento cognitivo na educação fundamental. Algumas das considerações de Rogoff podem ser registradas aqui para inspirar estudos sobre organização de cursos que utilizem a Aprendizagem no trabalho como centro do desenvolvimento de saberes profissionais. A autora ressalta que o saber se constrói em contextos significativos. E nada é mais significativo que aprender a trabalhar trabalhando. O foco do aprender é a ação. E ao abordar a ação, Rogoff aponta alguns pontos que merecem destaque:
- Em vez de estudar a aquisição de uma capacidade ou ideia pela pessoa, o foco está nas mudanças ativas envolvidas no desdobramento do evento ou atividade da qual as pessoas participam. Eventos ou atividades são inerentemente dinâmicos, em vez de consistirem em condições estáticas com o tempo sendo acrescentado como um elemento separado. Mudança ou desenvolvimento, em vez de características estáticas, é tido como básico. Entender processos se torna essencial.
- Eventos e atividades são organizados de acordo com metas. Por exemplo, lembrar serve a função de recuperar algo desejado, planejar serve a função de ser capaz de conseguir algo desejado. Apenas quando são entendidos é que os propósitos dos participantes num evento fazem sentido.
- Significado e propósito são centrais para definir todos os aspectos de eventos e atividades e não podem ser separados ou derivados de uma soma de características do individual e características do contexto.
- Processos mentais como lembrar, ou planejar, ou calcular, ou narrar uma história ocorrem a serviço de se conseguir algo, e não podem ser dissecados independentemente da meta a ser conseguida e das ações práticas e interpessoais em uso.
- Os processos cognitivos servem funções de guiar ação e inter-relação inteligente e proposital. Especificidades das circunstâncias de um evento ou atividade são essenciais para entender como as pessoas agem na busca de suas metas. O pensar não pode ser separado em seu significado das ações, das circunstâncias, da meta.
- As metas, ações, circunstâncias e pensamento humano são funções tanto da herança biológica quanto cultural, com os indivíduos lidando com problemas (definidos cultural e biologicamente) de maneira ativa e proposital de acordo com os meios (construídos cultural e biologicamente).
- A variabilidade do particular histórico e das presentes circunstâncias, ao lado de variações estruturais nos recursos e barreiras biológicas e culturais, produz variações inerentes nos eventos humanos e atividades. (p. 29-30)
A longa citação que acabamos de fazer justifica-se por ela ser uma síntese de princípios que justificam o aprender fazendo. Em vez de um ensino que promove abstrações estáticas, esses princípios sugerem aprendizagem situada. E aprendizagem situada é a forma de aprender característica das relações mestre/aprendiz.
O caso do Canadá
No Reino Unido (TREVISAN, 2001), na Noruega (MJELDE, 2015) e em outros países houve profundas reformas nos modos de organizar a Aprendizagem. Em parte, essas reformas ocorreram porque acreditava-se que formas mais eficientes de Aprendizagem pudessem melhorar a capacitação profissional da mão de obra necessária às respectivas economias nacionais. Esse é o tema documento canadense elaborado nos período de 2004/2005 (SHARPE e GIBSON, 2005).
O estudo em questão aborda a Aprendizagem tanto do ponto de vista econômico como educacional. Do ponto de vista econômico ele examina a necessidade da Aprendizagem como uma forma eficiente de repor mão de obra qualificada em setores importantes da economia do país. Do ponto de vista educacional, os autores apontam que a Aprendizagem é o caminho mais eficiente para aproximar educação do trabalho.
A Aprendizagem no país estava voltada para ofícios da economia tradicional, sobretudo para o setor secundário. Poucas eram as ofertas de Aprendizagem para novos setores como, por exemplo, a área de tecnologia da informação. Poucas também eram as tentativas de formar aprendizes nos setores de comércio e serviços[31]. Em parte isso era explicado por modos tradicionais de ver a Aprendizagem, muito voltados para antigos ofícios e profissões.
No Canadá a Aprendizagem é uma educação pós-secundária, pois toda a formação profissional no país acontece depois da conclusão do ensino básico obrigatório. O estudo em questão considera que o ensino pós-secundário e universitário tradicionais concorrem com a formação profissional desenvolvida por meio de programas de Aprendizagem, pois um e outro são formas de preparar pessoas para o trabalho. Para tanto, os autores examinam alguns números disponíveis.
As comparações foram feitas com números de matrículas em universidades e colleges. No ano de 2002 houve 234,5 mil matrículas em Aprendizagem, 12,13% da força de trabalho na faixa de 15 a 44 anos. Matriculas nas universidades na mesma época (ano de 2001) foram de 886,8 mil estudantes, Os dados disponíveis para os colleges (ano de 1998) eram de 403,5 mil. No universo do ensino posterior ao ensino médio, a Aprendizagem representava apenas 12,6%.
Um dos motivos pelos quais a matrícula em Aprendizagem é menor do que a necessária para a economia é assim explicada pelos autores:
A percepção negativa dos ofícios é muitas vezes citada como motivo para baixas matrículas em aprendizagem. Muitos estudos ressaltam que tanto pais com estudantes vêem a aprendizagem como inferior a estudos universitários, porque acreditam que os ofícios são carreiras de segunda classe, com baixos salários, emprego instável e pouca possibilidade de avanço na carreira. O sitema de educação secundária também tem um viés acadêmico, de tal maneira que os estudantes são preparados e encorajados a seguir estudos universitários em vez de ingressarem em programas de aprendizagem. Consequentemente, os empregadores muitas vezes lamentam a pobre qualidade dos candidatos a aprendizagem, o que se traduz numa desvalorização do trabalho, com o consequente baixo investimento em capacitação profisional.(p. 9)
A Aprendizagem desempenha o mesmo papel que a coop-education, educação alternada, muito popular no país (as linhas gerais do modelo coop-education inserem-se nas tradições do aprender no trabalho que caracteriza a Aprendizagem).
Vale aqui citar literalmente as considerações que o texto em análise oferece sobre educação alternada:
As abordagens de educação alternada pressupõem que o contexto no qual conhecimentos e habilidades são aplicados é crítico para sua aquisição. O princípio da alternância enfatiza a noção do “aprender fazendo”, mas em conjunção com e infomada por um entendimento teórico do problema que se apresenta. A educação alternada combina habilidades práticas com a aquisição de conhecimento teórico formalment mais organizado (Schuetze and Sweet, 2003: 5). (p. 16)
Na sequência, os autores explicam as vantagens da educação alternada:
A educação alternada vem sendo considerada como um forma superior de aprendizagem com respeito a três aspectos. Primeiro, ela é considerada como uma alternativa educacional compensatória para estudadnte que não foram academicamente motivados ou não são intelectualmente talentosos, mas que podem se benificiar com a relevância ou praticalidade da educação alternada. Segundo, ela é defendida como um meio para para familiarizar estudantes de sucesso com o mundo do trabalho, tanto por contextualizar a aprendizagem como também por desenvolver habilidades que são aprendidas pelo trabalho. Esse é o objetivo fundamental dos programas de educação cooperativa no nível universitário e na capacitação profissional em cursos pós-secundários. Finalmente, argumenta-se que a educação alternada é simplesmente o meio mais efetivo de capacitação profisisonal em alguns campos, particularmente aqueles que requerem ‘conhecmento tácito’ “ no qual o saber fazer tem mais espaço que o saber formal, não porque o artesão pode atuar sem saber formal mas porque ofícios como os de padeiro ou de ferreiro não podem ser aprendidos somente a partir de livros” (Merle, 1994). A Aprendizagem de ofícios é um claro exemplo desse caso de educação alternada, mas isso inclui também professores, médicos e advogados que desenvolvem boa parte de sua capacitação profissional em ambientes de treinamento por meio de tutorias. (p. 20)
O trecho citado vale tanto para Aprendizagem como para coop-education. Os destaques ficam para alguns argumentos que merecem atenção:
- A educação alternada é a mais adequada para estudantes que não apreciam o ensino escolar. Esses estudantes, que já passaram pela escola obrigatória, preferem aprender fazendo, se possível em ambientes produtivos.
- A educação alternada oferece aos estudantes oportunidade de refletir sobre as tecnologias da profissão que estão aprendendo a partir de práticas em empresas e organizações onde poderão mais tarde se engajarem como trabalhadores. Nos termos de projetos canadenses sobre educação e trabalho, ela é um elemento que facilita a transição escola>trabalho.
- A educação alternada pode resolver um problema epistemológico que não é resolvido por meio de abordagens escolares (via conhecimentos declarativos constituídos principalmente por recursos à oralidade e à escrita). Parte significativa do saber do trabalho é tácito só pode ser aprendido por meio de atividades desenvolvidas por trabalhadores, em eventos que possibilitam relações mestre/aprendiz e compartilhamento do conhecimento entre companheiros por meio da ação.
Esses três motivos estão presentes na Aprendizagem. Mas nem sempre são reconhecidos em discussões de caráter pedagógico[32].
Em explicações sobre o sistema de Aprendizagem, os autores caracterizam-no como uma forma de capacitação profissional, não de assistencialismo ou mecanismo para garantir que os jovens tenham mais facilidade para conseguir o primeiro emprego. No Canadá a grande maioria dos aprendizes não são jovens que acabam de deixar a escola, mas adultos que já têm diversas experiências profissionais. E no caso da transição escola > trabalho, os autores examinam como fazer com que jovens e suas famílias se interessem por capacitação profissional via Aprendizagem. Eles sugerem que interesse pela reforma da Aprendizagem no Canadá se deve a dois motivos já mencionados anteriormente. Como esses motivos podem iluminar alguns dos entendimentos sobre Aprendizagem no Brasil, resolvemos reitera-los.
O primeiro motivo é o de que a Aprendizagem pode facilitar a transição da escola para o trabalho, criando fortes laços entre trabalho e educação. Essa perspectiva vê a Aprendizagem como um meio para melhorar o bem estar dos jovens mais pobres, os que encontram mais dificuldade para conseguir emprego. O segundo motivo enfatiza uma política necessária para repor mão de obra bem qualificada, pois rareiam os trabalhadores bem qualificados. O mesmo motivo ( o de capacitação por razões econômicas) sugere que é preciso formar uma mão de obra capaz que domine habilidades requeridas pelas novas tecnologias. É preciso reparar que para os autores o aspecto mais importante é o da transição da escola para o trabalho, não o de assistência a jovens mais pobres. Embora a pobreza seja um aspecto que precisa ser considerado, pois no Canadá, assim como em muitos países, o desemprego sempre é muito maior entre os jovens pobres que nas demais camadas da população.
Ao localizar a questão social na transição escola/trabalho, o documento em análise apresenta uma perspectiva que não é muito comum no Brasil. Os motivos sociais apresentados aqui para incentivar a Aprendizagem acentuam a assistência imediata a jovens das camadas mais pobres, mas não consideram suficientemente a transição da escola para o trabalho. Quando isso acontece é provável que as dificuldades apresentadas pelos jovens mais pobres não se resolva pela oportunidade da Aprendizagem. Isso não significa que o que se faz no Canadá resolva a questão. O desafio lá também é significativo. Desemprego juvenil e dificuldades para ingresso no mercado de trabalho sugeriram necessidade de se pensar em mecanismo que facilitassem a transição escola > trabalho. E a Aprendizagem foi considerada como um bom mecanismo para tanto[33].
Os autores situam os caminhos do movimento escola > trabalho, pensando sobretudo nos alunos que terminam o ensino básico ou o deixam antes do fim e que não pensam em ir para a universidade. Eles não podem ou não querem continuar estudos acadêmicos. Isso, porém, não significa que não estejam interessados em oportunidades educacionais que possam prepara-los para exercer profissões capazes de lhes garantir sustento e carreira. Nesse sentido, os autores apresentam a alternativa da Aprendizagem, desde que desenvolvida em programas que garantam qualificação profissional consistente, como um caminho efetivo de continuação da educação para jovens que não irão para as universidade e nem se interessam por estudos acadêmicos. Essa visão da Aprendizagem é a da equivalência, ou seja, a de que uma formação via Aprendizagem é um caminho educacional tão bom como o proporcionado pelos colleges e pelas universidades, mas de modo bastante distinto que aquele marcado por uma educação mais escolarizada[34].
Voltamos agora a um ponto que é tratado em várias partes do texto canadense. Uma crítica que se faz a programas de Aprendizagem, na arena internacional, é a de que eles estão descolados da nova economia. Estão voltados para velhas ocupações e não olham para as ocupações emergentes.
Os autores levantam algumas questões que, apesar de endereçadas à situação canadense podem ser úteis em análises sobre a Aprendizagem no Brasil. Na sequência, vamos destacar tais questões e comentá-las.
- Que fatores afetam a demanda dos empregadores por aprendizes?
A pergunta supõe atitude de empregadores que acreditam na Aprendizagem como uma forma importante de capacitação profissional. Esses empregadores não eram muitos no Canadá. Eles também não são muitos no Brasil, de acordo com depoimentos de educadores responsáveis por programas de Aprendizagem. De qualquer forma, é preciso considerar essa questão tendo em vista como empresas veem a Aprendizagem, levando em conta que a mesma pode ser uma alternativa importante em termos de capacitação de novos trabalhadores nas organizações.
- Que fatores levam os estudantes a optarem por um programa de aprendizagem?
Neste estudo investigamos o que leva os jovens a optarem pela aprendizagem. O painel de respostas mostra muita variedade de motivos. Capacitação profissional não é o principal deles.
- Qual a principal limitação para o registro de aprendizes?
Essa também é uma pergunta para empresas. No momento não temos informação sobre possíveis respostas para ela.
- O que explica o número pequeno de aprendizes se comparado com seus equivalentes em educação pós-secundária?
A pergunta, inicialmente, não parece ser adequada para o Brasil. Mas, ela pode ser adaptada. Cresce o número de jovens que procuram cursos técnicos subsequentes. Esses mesmos jovens poderiam ser aprendizes. Talvez a natureza do certificado seja uma barreira no caso. Talvez a dificuldade para oferecer aprendizagens que conferem certificado ou diploma de técnico seja outra. E aqui não se trata de diploma de ensino médio, pois candidatos ao subsequente já concluíram a educação básica.
- Dadas as limitações existentes, qual o papel mais apropriado para o sistema de Aprendizagem no interior da educação pós-secundária, tanto no school-to work com na perspectiva de déficit de habilidades?
Por enquanto o conteúdo desta questão não entra no radar da educação profissional no Brasil. Mas, é preciso começar a considera-lo.
- Que tipo de reformas pode concretizar este papel?
Essa é uma questão importante para recomendações sobre o que se deve fazer no Brasil.
Aprendizagem no Québec
No Canadá há bastante autonomia nas províncias que integram a federação do país. Por isso, antes de continuar com as notas sobre o documento elaborado por Sharpe e Gibson, resolvemos inserir neste ponto algumas informações sobre a província do Québec. Essas informações além de utilizarem referências do texto em análise, estão também baseadas num artigo sobre a Aprendizagem na província de fala francesa (BALLEUX, 2000).
O Québec herda da França seu sistema de aprendizagem, reproduzindo na colônia as relações entre mestre e aprendiz. Ao mesmo tempo, embora de duração efêmera, foram criadas escolas de formação profissional no começo do século XVII em Québec e Montreal.
Contratos formais de Aprendizagem praticamente desaparecem no século XIX. Mas, na informalidade, as relações de mestre e aprendiz reaparecem. Essa situação de relação mestre/aprendiz também existiu no Brasil (e possivelmente ainda exista em ofícios tradicionais) (BARATO, 2016). Essa relação mestre/aprendiz é retratada por Crawford no campo da mecânica de automóveis, numa narrativa em que o autor conta como aprendeu mecânica em sua adolescência (CRAWFORD, 2009). Assim, o que aconteceu na província é um evento bastante comum no campo da capacitação para o trabalho. A Aprendizagem desaparece formalmente, mas emerge de modo informal, pois é preciso preparar mão de obra necessária em setores importantes da economia.
O autor do artigo relata que escolas de formação profissional dignas do nome, e capazes de substituir a capacitação que se fazia por meio de mecanismos de Aprendizagem no e pelo trabalho, só apareceram na província em 1907. Cabe reparar que essa data está bastante próxima da criação das Escolas de Artesãos e Artífices no Brasil em 1909 (CORDÃO e MORAES, 2017) e da revitalização da Escuela Nacional de Artes y Oficios del Uruguay (MUSEO FIGARI, 2015)). Também na Noruega assiste-se o mesmo movimento (MJELDE, 2016).
Formalmente, a Aprendizagem é reorganizada (ou organizada para atender a demandas da economia industrial) apenas em 1934. Um pouco antes houvera também reformulação da educação profissional em escolas. A educação profissional, de certa forma, é uma educação marginal até a década de 1930 quando isso começa a mudar.
Escolarização total da formação profissional e abandono da Aprendizagem, lembrando bastante o que aconteceu na Noruega segundo Liv Mjelde (2016). O autor do artigo (BALLEUX, 2000) revela:
Com a reforma escolar, originária dos trabalhos da comissão Parent (1961-1966), o Québec escolheu orientar a formação de sua mão de obra pela fórmula “tudo na escola”. Foi assim, com o desejo de abrir a formação a todos, que as áreas de aprendizagem foram quase todas abandonadas. No entanto – irredutíveis em alguns setores da atividade econômica, como o da construção, ou sob versões às vezes bastante informais – elas continuam seu caminho de forma reduzida.
Trinta anos depois, na metade dos anos de 1990, com a valorização da capacitação no e pelo trabalho em todo mundo, a Aprendizagem é retomada na província num movimento de revival que também acompanha reformas que estavam ocorrendo em outras províncias do país e em outros países do mundo.
A partir dos anos de 1990, a Aprendizagem na construção civil exige que o candidato tenha diploma profissional na área. Cabe reparar que essa solução também foi experimentada na Noruega (MJELDE, 2016). O aprendiz, no caso, deixa de ter um programa que articula trabalho e escola, e ingressa num programa de Aprendizagem pós-curso preparatório, sem qualquer articulação de simultaneidade entre trabalho e escola.
Além do formato para a construção civil, diploma seguido de Aprendizagem, o autor aponta outros formatos de Aprendizagem. Um segundo formato é estruturado nos moldes clássicos de Aprendizagem numa relação entre um companheiro designado que vai acompanhar o aprendiz durante o período de capacitação, com um pequeno período de frequência em uma instituição escolar, e com certificação decorrente de exame de um conjunto de competências que definem o básico da ocupação. Outro formato se assemelha ao co-op education, a educação alternada muito utilizada no Canadá
Com as reformas, a Aprendizagem passa a ser uma alternativa de formação equivalente à formação em colleges. Diz o autor:
No regime de Aprendizagem, a Aprendizagem deve ser entendida como uma formação real alternada entre o ambiente de trabalho e o ambiente escolar. Um contrato liga uma empresa e um aprendiz num compromisso recíproco de formação, enquanto que, além disso, um aprendiz se inscreve numa formação profissional de nível secundário. Esse regime reservado aos jovens deve ser visto também como uma via alternativa à formação escolar que conduz, ainda assim, a um Diploma de Estudos Profissionais ou a um Atestado de Especialização Profissional, emitidos pelo Ministério de Educação do Québec (SQDM, 1996). (p. 10)
Vale ressaltar que a Aprendizagem no caso é uma “alternativa à formação escolar”. Ou seja, ao fazer o programa de Aprendizagem, o aluno realiza estudos pós-secundários reconhecidos pelo ministério da educação da província.
Balleux informa que o aprendiz é avaliado duplamente, na escola pelo professor responsável, na empresa pelo profissional que o acompanha. Essa avaliação não é aleatória, mas guiada por instrumentos elaborados pelo ministério da educação.
Voltando a Sharpe e Gibson
Sharpe e Gibson, em várias partes do texto ressaltam que a Aprendizagem não é apenas uma forma de capacitação profissional que pode aproveitar necessidades que as empresas têm de capacitar novos quadros. Ou seja, ela não é apenas forma conveniente de atender a necessidades econômicas. Ela é também uma abordagem educacional que deveria merecer mais atenção dos educadores. Segue um dos trechos em que tal ponto é ressaltado:
Em análises sobre alternância trabalho/escola argumenta-se que a educação alternada tem muito valor “como uma experiência de capacitação profissional estruturada” não só por causa do desenvolvimento de habilidades mas também porque ela socilaiza os particiantes e lhes confere uma identidade profissional. Os pesquisadores da área vem argumentando que a perspectiva do capital humano ignora o contexto social no qual os indivíduos decidiram investir em sua capacitação (Schuetze and Sweet, 2003; Ashton, 1999). A educação alternada não apenas promove capacitação mas promove também relações sociais e uma identidade profisional que encoraja as pessoas a continuarem esforços para mais aprender o ofício. Por outros lado, quando a capacitação é oferecida num contexto social que não favorece a criação de uma identidade profissional e de relações sociais (como acontece, por exemplo, em ambientes escolares), os estudantes possivelmente não optarão por investir em mais capacitação profissional. (p. 20)
O trecho acima guarda algumas relações com comunidades de prática na direção sugerida por Lave e Wenger (1991). Ele comenta tanto a Aprendizagem como a coop-education, ressaltando aspectos para os quais não há possibilidade de desenvolvimento apenas em ambientes escolares.
Os autores, logo a seguir, são mais explícitos quanto às vantagens didáticas da Aprendizagem entendida em sua forma tradicional, herdada das corporações de ofício:
Do ponto de vista educacional, a Aprendizagem não é apenas uma instituição que fornece treinamento para ocupações específicas, mas ela é também um instituição que oferece uma forma específica de educação que é, ao mesmo tempo, mais efetiva no desenvolvimento de habilidades e mais acessível para estudantes que não tem inclinações acadêmicas. Além disso, sua associação com o mundo do trabalho favorece o desenvolvimento de soft skills que dificilmente são aprendidadas em salas de aula, mas são requeridas pela ‘economia do conhecimento’. Finalmente, a experiência no local de trabalho tanto contextualiza o aprender como dá aos participantes uma ideia muito concreta do tipo de habilidade que se requer, mas também socializa os participantes com a identidade que os encoraja a investir em capacitação profissional. (p. 20)
Com a maior oferta de cursos superiores, o horizonte da formação profissional dá às pessoas a esperança de que poderão trabalhar em profissões muito valorizadas socialmente. Isso, em parte explica porque os jovens não procuram em grande número a Aprendizagem no país. Ao considerar as opções da juventude, os autores notam que há clara escolha por educação geral e pelos benefícios que esta pode trazer em termos de ida para o ensino superior. Ao mesmo tempo, decresce o interesse por educação profissional, sobretudo aquela que substitui a preparação para as universidades por cursos pós-secundários profissionalizantes (Aprendizagem inclusa).
O sistema educacional do país está voltado para a universidade[35]. Estudantes que concluem o ensino básico e chegam à universidade são considerados casos de sucesso[36]. A mudança de paradigmas nesse campo não é fácil. Ela exigirá uma reforma que valorize a Aprendizagem. Mas, exigirá também reformas profundas na educação para que o trabalho em ocupações manuais ou básicas não seja visto como destino de fracassados do sistema escolar.
Em considerações sobre a relação entre sistema escolar, trabalho e Aprendizagem há que se considerar também o que nota Balleux (2000). Ele aponta que há dificuldades de articulação entre a Aprendizagem e a educação escolar. Nota-se, segundo ele, muita resistência dos educadores quanto à ideia de que no trabalho as pessoas possam aprender certos conteúdos que a escola entende que devam ser tratados de maneira sistemática. Essa é uma questão importante quando se discute a capacitação no trabalho e pelo trabalho. O princípio genérico é bem aceito, mas possibilidades concretas de sua execução não costumam ser implementadas[37]. O modelo escolar prevalece.
Além de questões vinculadas às concepções do sistema escolar, os autores apontam questões que criam dificuldades para desenvolvimento da Aprendizagem do ponto de vista empresarial. Há, no país, resistência de muitas empresas aos programas de Aprendizagem porque elas acreditam que o investimento em capacitação profissional de novos empregados não lhes trará retorno, pois os profissionais que formarem poderão ser contratados por concorrentes que nada investiram em sua formação.
Em que setores desenvolver a aprendizagem? Esta é uma pergunta interessante. A Aprendizagem quando praticada de acordo com as tradições herdadas das corporações de ofício fica restrita (no caso canadense) às ocupações tradicionais (artesanais). Há grande dificuldade para utilizar a ideia de aprendizagem na nova economia e para as muitas ocupações surgidas em tempos mais recentes. E, para essas ocupações novas, o velho modelo de aprendizagem pode não ser adequado. Ao mesmo tempo, ainda em análise da situação canadense, parece que a possibilidade de capacitar trabalhadores das novas ocupações por meio de Aprendizagem tem muitas vantagens.
A abertura da Aprendizagem para além de uma compreensão vinculada a ocupações (ou a modos tradicionais de compreender as ocupações) é um dos pontos importantes em reformas recentes organizadas por diversos países. O texto destaca a reforma acontecida na Austrália que favoreceu uma Aprendizagem articulada com o sistema de ensino em todos os níveis.
Os autores introduzem o termo laddering para programas de Aprendizagem. Esse termo é retomado mais à frente em recomendações para reformas no sistema de Aprendizagem do Canadá. Ele pode ser traduzido como uma proposta de Aprendizagem escalonada, ou Aprendizagem em níveis.
Destacamos a observação dos autores de que a Aprendizagem é um modo de aprender com benefícios intrínsecos. Podemos fazer uma ponte entre tal observação e as discussões sobre Aprendizagem no Brasil. Discute-se muito como efetivar a Aprendizagem. Quase nada se diz com relação às vantagens pedagógicas de associar trabalho e educação em formatos de Aprendizagem, recuperando a pedagogia do trabalho que foi desenvolvida com tanto sucesso nas corporações de ofício.
Os autores assinalam que é preciso enfatizar o aprender no trabalho, em lugar do aprender na escola. Essa proposta de ênfase sugere várias leituras. Destacamos algumas delas a seguir:
- O ser trabalhador desenvolvido pela ação e pela integração a uma comunidade de prática é muito mais determinante que tentativas de formar o cidadão na escola, pois tal formação cidadã é apenas discursiva. Isso não elimina necessidade de abordar questões de cidadania no universo escolar. O que se ressalta, no caso, é que a formação da identidade decorre de práticas (práticas sociais), não de discursos articulados e de reflexões sobre o tema. E discursos e reflexões no âmbito escolar precisam ter a prática social concreta dos aprendizes como referência necessária.
- Pode-se aprender uma ocupação na escola, mas para tanto é preciso que as instituições educacionais tenham oficinas e laboratórios que aproximem o mais possível o aprender de suas formas em atividades no trabalho. Mas, parte do significado do trabalho não é apreendido pelos mecanismos de que a educação escolar dispõe para organizar propostas curriculares (isso aparece claramente nos mecanismos de aprendizagem relacionados com saberes tácitos do trabalho).
- Em diversas partes do texto, os autores apontam que os community colleges concorrem com a Aprendizagem no Canadá. De certa forma, pode-se dizer que os cursos técnicos concorrem com a Aprendizagem no Brasil. E da mesma forma que no Canadá, a educação profissional feita nas escolas tem mais prestígio social que a educação profissional que acontece por meio da Aprendizagem.
Há aspectos mais gerais sobre educação, trabalho e Aprendizagem que merecem ser relembrados aqui. Já os abordamos anteriormente, mas eles precisam ser reiterados. A Aprendizagem mereceu em tempos recentes destaque em estudos sobre elaboração social do saber (LAVE e WENGER, 1991). Esses autores, tentando mostrar como o saber é elaborado socialmente em comunidades de prática (prática social), foram buscar na Aprendizagem exemplos que iluminam os modos como o conhecimento é elaborado, compartilhado e distribuído na sociedade. Wenger (1998), particularmente, estabelece uma moldura referencial para entendimento de como aprendemos que poderia ser estudada quando se fala em propostas educacionais para a Aprendizagem. É curioso, por exemplo, ver afirmações de educadores que justificam a escolarização da Aprendizagem e, ao mesmo tempo, prescrevem abordagens como a e da pedagogia de projetos, ignorando que tal pedagogia foi proposta originariamente por Dewey (ADAMSON, 2007) a partir de inspirações baseadas em referências de como se elabora o saber no e pelo trabalho.
Outra ponte que se pode fazer entre Canadá e Brasil, a partir de leitura do documento é a de que a Aprendizagem no Brasil não concorre com o ensino técnico como em outros países. As ocupações sujeitas a Aprendizagem são capcitaçõe inferiores à habiliatação profissional desenvolvida em cursos técnicos. Ocupações de nível médio não são sujeitas à Aprendizagem. A Aprendizagem é uma educação marginal. Para os concluintes confere-se um certificado sem valor para continuidade de estudos.
O documento faz referências a várias reformas nos sistemas de Aprendizagem em diversos países. Como já assinalamos, tais reformas aconteceram por volta dos anos de 1990. Entre os países anglo-saxônicos, a reforma mais abrangente aconteceu na Austrália. Já apontamos algumas consequências de tal reforma que articula Aprendizagem com o sistema de educação.
Os autores destacam em seu texto a Aprendizagem na Alemanha. E nesse caso não se trata de características de uma reforma recente. O modelo alemão é exemplar e inspira reformas em vários países. O documento canadense destaca os seguintes dados sobre a Aprendizagem em terras germânicas:
- 1,6 milhões de aprendizes registrados, equivalendo a 4,7% da força de trabalho na faixa de 15 a 54 anos. (dados de 2002)
- Dos jovens de 18 anos, 46% dos homens e 36% das mulheres eram aprendizes (dados de 1997).
- Duração da Aprendizagem: de três a quatro anos. (dados de 2001)
Na Alemanha, geralmente os jovens ingressam na Aprendizagem aos 18 anos, um ano depois de concluírem o ensino médio. Jovens que não conseguem ingresso em programas de Aprendizagem são incentivados a fazer cursos de pré-aprendizagem em escolas de educação profissional.
Para finalizar nossos registros sobre o documento canadense a respeito da Aprendizagem, convém ressaltar os aspectos mais expressivos das propostas feitas pelos autores. Nos pontos que seguem, vamos retomar aspectos que merecem ser reiterados:
- A Aprendizagem é educação profissional pós-secundária. Isso não é propriamente uma sugestão dos autores, mas uma constatação. O tema, porém, é retomado várias vezes no documento porque apesar de seu nível de ensino pós-médio, a Aprendizagem no país é considerada um ensino de segunda classe. O que se quer é que a Aprendizagem seja vista como alternativa de formação, mais vantajosa em alguns casos, principalmente naqueles em que o saber tácito do trabalho é relevante.
- A ideia de laddered apprenticeship, Aprendizagem em níveis, também aparece com destaque em várias partes do documento. Ela é, talvez, o aspecto mais importante a ser considerado em países em que a Aprendizagem é pouco valorizada e/ou é desenvolvida como educação não integrada ao sistema educacional. Essa ideia não favorece apenas integração da Aprendizagem ao sistema de ensino. Ela também abre espaço para que os programas de Aprendizagem abranjam ocupações de todos os níveis da pirâmide ocupacional
- A Aprendizagem não é apenas uma conveniência para capacitar a mão de obra necessária à economia do país. Ela é também uma educação peculiar que precisa ser mais estudada, pois para muitos saberes, aprender fazendo em comunidades de prática é o melhor caminho para capacitar profissionais. Em outras palavras, a Aprendizagem é herdeira de uma tradição educacional que precisa ser mais valorizada, entendida, desenvolvida, estudada.
Aprendizagem em instituições de EPT
Neste capítulo apresentamos exemplos de programas de Aprendizagem que vêm sendo realizados em outros países, assim como análises que poderão nos ajudar na formulação de políticas de verticalização que incluam a Aprendizagem integrada ao sistema de ensino, e com possiblidade de ser realizada em vários níveis.
Aprendizagem no Reino Unido
Interesse por aprofundamento da Aprendizagem como alternativa de capacitação para o trabalho surgiu a partir de análise que fizemos das ofertas de educação profissional e tecnológica no Sheffield College da Inglaterra. Por isso convém examinar como se estrutura a Aprendizagem em terras britânicas, ilustrando o que acontece no país com exemplos do que acontece na instituição do Norte da Inglaterra.
Em 2018, o Reino Unido tinha cerca de 900.000 aprendizes (THE SHEFFIELD COLLEGE, 2018c). O número contrasta com as cifras reveladas por Trevisan (2001) sobre o que estava acontecendo nos anos críticos do sistema de capacitação profissional no Reino Unido:
O número real de aprendizes em fase de treinamento no setor produtivo caiu de 155 mil em 1979 para 63,7 mil em 1987. Esse número declinou ainda mais no início dos anos de 1990, voltando à faixa dos 60 mil aprendizes em treinamento apenas em 1995. (p. 167)
Para que possamos estabelecer comparações entre Aprendizagem no Brasil e no Reino Unido, convém confrontar o número lá obtido em matrículas no ano de 2018 (cerca de 900 mil) com o número de aprendizes admitidos no Brasil em 2017, 386.791.
Nas descrições das Aprendizagens coordenadas pelo Sheffield College, os programas são sempre definidos como cursos, embora a situação seja bastante diferente das formas convencionais de capacitação profissional por meio de ensino escolar. Outra particularidade que convém destacar é a de que aos concluintes de um programa de Aprendizagem é conferido certificado ou diploma com o mesmo valor que documentos similares obtidos por meio de cursos convencionais.
A Aprendizagem no Reino Unido pode ser realizada em qualquer nível ocupacional, de acordo com a seguinte classificação:
- Aprendizagens Intermediárias (Nível 2). Neste nível o aluno desenvolve as habilidades necessárias à carreira escolhida e se prepara para uma Aprendizagem Avançada.
- Aprendizagens Avançadas (Nível 3). Para ingressar neste nível de Aprendizagem o aluno idealmente deve ter completado o nível 2 da Aprendizagem Intermediária. Este nível é equivalente a qualificações do tipo A na educação geral, e à de nível 3 em cursos convencionais de educação profissional.
- Aprendizagens Superiores (Níveis 4/5). Essas Aprendizagens são equivalentes a cursos superiores. Mais que equivalentes, elas são cursos superiores.
- Aprendizagens Pós-superiores (Níveis 6/7). Esses programas são desenvolvidos por empregadores, universidades e organizações profissionais atuando em parceria. Elas oferecem aos estudantes a oportunidade de alcançar um bacharelado completo ou um mestrado em regime de Aprendizagem. (SHEFFIELD COLLEGE, 2018c, p. 12)
Para maior compreensão de como a Aprendizagem acontece no país, vamos examinar algumas situações que acontecem no Sheffield College. Há quase seis dezenas de diferentes cursos de Aprendizagem na instituição, abrangendo todas as áreas ocupacionais para as quais o college organiza oportunidades de capacitação profissional
Na área de hospitalidade e alimentação há uma Aprendizagem, Catering & Hospitality Apprenticeship Level 2, que merece registro aqui. Como em outros programas de Aprendizagem, os alunos devem procurar trabalho antes de chegar ao college. A formação dependerá dos postos de trabalho em que estiverem ativos durante o programa. No caso, os aprendizes poderão estar na cozinha, na sala, no atendimento ou no bar. É a destinação ocupacional que determinará o que aprenderão. No college, o dia semanal de estudos será dedicado a aspectos gerais do trabalho em hotelaria e em alimentação. Eventualmente, ainda no college, os aprendizes poderão desenvolver alguma habilidade específica nos ambientes da escola (cozinha, restaurante, área de atendimento). Neste, como em outros programas de Aprendizagem, nota-se grande flexibilidade para garantir que os alunos aprendam no e pelo trabalho[38].
Na área de construção civil, o college oferece, entre outras, Aprendizagem com o seguinte título Construction Management Apprenticeship Level 4. Ela é um dos exemplos de Aprendizagem em nível universitário. O programa prepara o aluno para administração de obras, desenvolvendo diversas habilidades de gestão na construção civil e no gerenciamento de pessoas, de orçamentos, de planos de obras, de execução de contratos etc. Pode prepara-lo também como gestor de projetos, desenvolvendo habilidades para acompanhar e avaliar andamento de obras, assim como de articular contatos com fornecedores. Outra possibilidade tem relação com engenharia, abrangendo atividades de coordenação do trabalho no canteiro de obras.
O Sheffield College tem uma área chamada de Child Care que corresponde grosso modo à nossa área de Educação Infantil. Nela há um programa de Aprendizagem profissional interessante: Childcare Apprenticehip Level 3. No programa de curso há a informação de que a oportunidade está organizada para school leavers (egressos recentes do ensino obrigatório) ou pessoas com alguma experiência em educação infantil. Essa caracterização nos leva a supor que os candidatos ou candidatas a tal programa de Aprendizagem são jovens com idade dos 16 aos 19 nos. O curso, com pelo menos um ano de duração, acontece num aprender em creches ou escolas infantis. Os concluintes recebem o certificado de auxiliares de educação infantil. Os alunos que por ela passam recebem uma formação técnica pós-secundária e ganham créditos para continuar estudos universitários (que podem inclusive acontecer na modalidade de Aprendizagem) na área de educação.
Os cursos de Aprendizagem do Sheffield College abriram portas para considerações que não foram pensadas na concepção deste estudo. As definições de verticalização da educação profissional e tecnológica consideram estruturas de ensino referidas ao ensino técnico e tecnológico, aceitando a possibilidade de incluir cursos básicos (FIC) nas considerações de como organizar oportunidade educacionais nas instituições de EPT. E esse foi o ponto de partida considerado neste estudo. Porém, ao estudar a composição dos cursos oferecidos pelo college britânico, começamos a compreender que a verticalização deve ser muito mais abrangente, considerando uma diversidade de capacitação profissional que não se resume aos três níveis considerados inicialmente. Além de referências da estrutura convencional de ensino, é preciso considerar outras possibilidades de formação para o trabalho. Sheffield apresenta uma diversidade que dialoga com níveis ocupacionais e com interesses da clientela.
No posto de trabalho o aluno aprende fazendo. Mas, o aspecto mais importante de tal aprender não é a prática, entendida como exercício de uma habilidade. O aspecto mais importante de tal aprender é a associação entre o fazer e a obra, dando significado à ação.
Aprendizagem em diferentes níveis
Relatamos atrás que a Aprendizagem em Sheffield acontece em diferentes níveis. Tais níveis, além do ensino técnico, abrangem também o ensino superior. No ensino técnico, a maior parte das Aprendizagens são de nível 2 e 3. Aprendizagens de nível 1 são raras. Há, portanto, certa congruência entre o que se faz em atividades convencionais (escolares) de ensino e a Aprendizagem. Cumpre relembrar que cada nível de Aprendizagem confere certificado de conclusão equivalente ao nível de ensino correspondente. Para usar nossas categorias de classificação, atribui-se certificado de qualificação para Aprendizagens de nível 1, certificado de auxiliar para a de nível 2, e certificado de técnico para a de nível 3. Essa equivalência da Aprendizagem com o ensino convencional não é praticada no Brasil.
Para realizar programas de Aprendizagem em diferentes níveis é preciso considerar questões de caráter pedagógico sobre o aprender no e pelo trabalho. Sabe-se que atividades de bastante complexidade continuam a ser aprendidas em situações de trabalho com pouca ou nenhuma vinculação com ensino escolar. Em programas de Aprendizagem é preciso assegurar-se de que as empresas colocarão aprendizes em postos de trabalho adequados aos saberes profissionais que deverão ser desenvolvidos. É preciso também contar com procedimentos de acompanhamento educacional para garantir contínua avaliação formativa dos aprendizes. Essas providências requerem mudanças profundas nos modos pelos quais a Aprendizagem é hoje realizada no Brasil.
O que Sheffield sugere é a necessidade de se construir uma pedagogia que responda de maneira explícita ao aprender no e pelo trabalho. Essa providência exigirá reconhecimento de saberes desenvolvidos por meio da ação. Há aqui lugar para um amplo programa de reformas na organização da Aprendizagem no Brasil.
Finalmente convém reiterar que algumas Aprendizagens realizadas no college do Norte da Inglaterra são universitárias, equivalentes aos níveis 4 e 5.
Retomando aspectos conceituais e exemplos do Sheffield College
Em quase todas as áreas ocupacionais para as quais o Sheffield College organiza cursos de educação profissional e tecnológica há um ou mais programas de Aprendizagem. Essa Aprendizagem é uma herdeira direta dos estatutos formativos das antigas corporações de ofícios nas quais a preparação para uma profissão acontecia em relações entre mestre e aprendiz mediadas pela produção de obras em oficinas. A relação mestre/aprendiz mereceu destaque nas ciências sociais a partir de estudos de Jean Lave e Etienne Wenger (1998), pois esses autores, ao acentuarem que a aprendizagem é um evento social resultante de encontros em comunidades de prática, utilizaram referências sobre a relação mestre/aprendiz para mostrar como acontece a construção social do conhecimento. Do ponto de vista metodológico, a relação mestre/aprendiz parece ser o modo mais frequente em processos de capacitação profissional, mesmo quando formalmente os planos de curso asseguram que o ensino é conduzido de acordo com uma pedagogia das competências (GAMBLE, 2006). Por essas razões, a modalidade de ensino que utiliza o aprender fazendo em ambientes reais de trabalho, organizada nos moldes clássicos de Aprendizagem e oferecida para várias ocupações em Sheffield, merece destaque neste estudo.
Para que possamos estabelecer comparações entre Aprendizagem no Brasil e no Reino Unido, convém confrontar o número lá obtido em matrículas no ano de 2018 (cerca de 900 mil) com o número de aprendizes admitidos no Brasil em 2017, 386.791, segundo informação do Ministério do Trabalho (BRASIL, 2017). O número brasileiro revela um crescimento recente bastante expressivo. No mesmo Boletim do Ministério do Trabalho, a cifra para aprendizes em 2005 era de apenas 57.231. A modalidade no Brasil vem crescendo por causa de ação do Ministério Público que cobra insistentemente das empresas cumprimento da Lei de Aprendizagem, mas ainda fica muito longe das cifras do Reino Unido. Além de diferenças estatísticas, há entre os dois países diferenças pedagógicas marcantes.
A Aprendizagem no Reino Unido é encarada mais como uma alternativa de capacitação profissional. No Brasil, a Aprendizagem é encarada mais como uma medida legal com finalidades sociais para favorecer ingresso de adolescentes e jovens das camadas mais pobres da população no mercado de trabalho. Em documento sobre essa modalidade de educação profissional, lê-se:
O Conselho Nacional do Ministério Público editou, em 2011, a Resolução nº 76, que dispõe sobre a implantação do Programa Adolescente Aprendiz no âmbito do Ministério Público brasileiro.
O propósito do ato normativo é estimular e difundir a adoção de programas de aprendizagem em todas as unidades do Ministério Público, contribuindo para o processo e profissionalização dos adolescentes e jovens entre 14 e 24 anos, especialmente aqueles que se originam de famílias com renda per capita inferior a dois salários mínimos e/ou egressos do sistema socioeducativo, criando-lhes oportunidade de inserção social e profissional com fomento à autonomia e respeitada a sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. (p. 9)
Visão da Aprendizagem como uma alternativa pedagógica em termos de educação profissional e tecnológica não é destacada no caso brasileiro. Poucos são os programas de Aprendizagem que garantem, como no caso do Reino Unido, formação com equivalência a cursos desenvolvidos em instituições escolares. E quando isso acontece, as definições escolares da formação predominam sobre o aprender no e pelo trabalho:
A instituição ofertante de cursos em nível médio de ensino poderá realizar a inscrição de um programa no CNAP (cujo curso deverá estar previamente regularizado perante o órgão competente do sistema de ensino), fornecendo as informações complementares que caracterizam um contrato de trabalho de Aprendizagem Profissional para efeitos de reconhecimento do cumprimento das cotas previstas em Lei. (BRASIL, 2018b)
Na citação anterior, Aprendizagem em nível médio é apenas uma forma legal para conciliar a situação do estudante com a possibilidade do mesmo ser contratado como aprendiz. O que se ressalta no caso é um modo de resolver situação trabalhista, não a de desenvolver programa de aprendizagem de nível mais elevado que o básico. Entendemos que a situação sugere necessidade de aprofundar estudos sobre a especificidade pedagógica da Aprendizagem profissional, considerando inclusive situações do aprender que podem ocorrer em nível médio e superior. A experiência do Sheffield College oferece algumas direções interessantes nesta direção.
Nas descrições das Aprendizagens coordenadas pelo college, os programas são sempre definidos como cursos, embora a situação seja bastante diferente das formas convencionais de capacitação profissional por meio de ensino escolar. Outra particularidade que convém destacar é a de que aos concluintes de um programa de Aprendizagem é conferido certificado ou diploma com o mesmo valor que documentos similares obtidos por meio de cursos convencionais.
Voltando aos programas de Sheffield
Há quase seis dezenas de diferentes cursos de Aprendizagem no college, abrangendo todas as áreas ocupacionais para as quais a instituição organiza oportunidades de capacitação profissional. Nas linhas que seguem vamos relacionar e comentar brevemente algumas das opções oferecidas.
Em Automotive/Motor Vehicle são oferecidos os cursos de aprendizagem de nível 2 para Funilaria e Pintura (Motor Vehicle Body & Paint). Na mesma área, o estudante pode avançar para o nível 3 de Aprendizagem em Funilaria e Pintura.
Na área de Negócios e Administração (Business Services & Enterprise) há também várias oportunidades para Aprendizagem no trabalho como: Accounting & Accountancy Apprenticeship Level 2, Assistent Accountant Apprenticeship Level 3, Business Apprenticeship Level 2 e 3. Legal Services Apprenticeship Level 3 ( a leitura do programa sugere estudo que deve formar um profissional parecido com o nosso oficial de justiça, quando a aprendizagem acontece em órgãos públicos).
Há diversos casos em que o mesmo curso pode acontecer de maneira escolar convencional ou por meio de Aprendizagem profissional. Um desses casos é o Construction & Built Envirenment (Civil Engineering) Level 3. O programa é destinado a trabalhadores que pretendem progredir em suas profissões (não está destinado a school leavers). É desenvolvido em dois anos, com aulas dois dias por semana no college (tempo integral) e supõe um dia de estudo individual. O mesmo curso é oferecido para adultos trabalhadores no período noturno.
O diploma BTEC level 3 em Construção Civil e Engenharia é um curso prático relacionado com o trabalho, aceito pelas instituições da área de construção civil como uma qualificação técnica nacionalmente reconhecida, anterior a um HNC (Higher National Certificate – ensino superior). Ele também é aceito como alternativa a um A level (equivalente a um 2A level).
Este curso, bastante amplo em seu escopo, está disponível para noviços e para trabalhadores já empregados, irá ajudar o aluno a desenvolver habilidades e conhecimentos requeridos por uma carreira na construção civil. Porém, ele não é um curso voltado para posto específico de trabalho.
E há a versão do Construction and Built Environment para Aprendizagem profissional (Apprenticeship) Level 3. Aos alunos que por ele passam fica assegurado reconhecimento de muito prestígio, um diploma BTEC (Business and Technology Education Council).
Ao examinar a Aprendizagem no Sheffield College descobrimos aspectos que não costumam ser considerados em planos de educação profissional e t tecnológica no Brasil. Nossos cursos de Aprendizagem são organizados para atender a formalidades legais e costumam ter uma marca de caráter assistencialista. Falta-lhes tratamento pedagógico que sublinhe o aprender fazendo no posto de trabalho. No geral, as abordagens pedagógicas em programas de aprendizagem privilegiam atividades escolares nas instituições de ensino. O trabalho cotidiano do aprendiz não merece muita atenção. Por esse motivo, neste estudo, os cursos de Aprendizagem promovidos pelas instituições de EPT acabaram merecendo análise especial. A Aprendizagem precisa ganhar mais destaque em concepções de verticalização do ensino.
Complemento: Aprendizagem nos Estados Unidos
No plano internacional examinamos até aqui a Aprendizagem no Canadá e no Reino Unido. Como uma das instituições de EPT que escolhemos para analisar em profundidade a programação que oferece foi o Miramar College de San Diego, resolvemos verificar casos de desenvolvimento da Aprendizagem nos Estados Unidos para comentar o quadro que desenhamos para Canadá e Reino Unido.
Para completar o quadro sobre Aprendizagem e educação continuada em San Diego, resolvamos verificar como a modalidade que associa trabalho e educação integra programações dos community colleges. Constatamos que no Miramar College não há programas de Aprendizagem. Resolvemos então investigar se os outros colleges da cidade seguem a mesma direção. Constatamos que um dos colleges, o City College, tem programas de Aprendizagem que merecem registro.
Em seu portal institucional (SAN DIEGO CITY COLLEGE, 2018), o City College define Aprendizagem como uma combinação de atuação no trabalho com formação acadêmica. A instituição esclarece que os programas de Aprendizagem são definidos e aprovados por um órgão estadual, O Department of Apprendiceship Standards (DAS) que determina que habilidades e conhecimentos são necessários no desenvolvimento de um ofício ou ocupação. O college, no caso, é apenas uma Local Education Agency, oferecendo a formação acadêmica para aprendizes de instituições e empresas que com ele mantêm acordo de colaboração.
Há duas formas de associação do college com as instituições que contratam aprendizes: Aprendizagens em programas com créditos, Aprendizagens em programas sem créditos. No primeiro caso, os cursos feitos pelos aprendizes são unidades que se integram à estrutura curricular que dá direito à continuidade de estudos e a reconhecimento de conteúdos já cursados nos programas pelo quais o aluno passar. Esses programas são pós-secundários. No segundo caso, os programas são terminais e não se integram com a estrutura de ensino organizada com base em créditos (aparentemente essa alternativa é semelhante à Aprendizagem que se faz no Brasi).
Convém examinar alguns exemplos de programas de Aprendizagem desenvolvidos pelo college com entidades parceiras. Uma dessas entidades é The San Diego Transit System. Há um programa de Aprendizagem no campo da formação de mecânicos de ônibus com quatro anos de duração. Os alunos precisam ser previamente contratados como aprendizes pelo San Diego Transit. No college eles irão participar de programas definidos de acordo com as praxes acadêmicas da instituição. Esses programas não diferem dos programas que são oferecidos para alunos que não chegam ao college como aprendizes.
Aprendizes do San Diego Transit System, em seus quatro anos de Aprendizagem, poderão obter um Certificate of Achievement e um Associate Degree in Science. O primeiro é um título correspondente a programa de capacitação profissional pós-secundária, e o segundo é um título de nível superior equivalente ao nosso curso superior de tecnologia.
A solução encontrada pelo City College para desenvolver Aprendizagem beneficia os alunos com possibilidade de obtenção de títulos equivalentes aos de programas escolares convencionais. Mas ela não parece valorizar aprender no e pelo trabalho. Os programas das duas titulações que o aprendiz pode obter no caso do San Diego Transit System são acadêmicos e exigem longo tempo de estudo em salas de aula e laboratórios do college. Esse modo de encaminhar a Aprendizagem é bem diferente daquele que encontramos no Sheffield College. Na instituição britânica a Aprendizagem não tem o acento acadêmico que verificamos no college de San Diego. O tempo de permanência de aprendizes no college britânico é curto, apenas ¼ do total das atividades do aprendiz.
Aprendizagem no Brasil
Apresentamos aqui síntese dos registros de observação em programas de Aprendizagem que realizamos em instituições brasileiras. As narrativas que seguem procuram indicar caraterísticas da Aprendizagem no Brasil e sugerem comparações com o quadro internacional que desenhamos a partir de análises da Aprendizagem no Reino Unido, Canadá e Estados Unidos.
Aprendizes no setor de hospedagem
Uma turma observada faz um programa de Aprendizagem no campo das ocupações hoteleiras. São vinte jovens contratados por hotéis da região. A idade do grupo varia de 16 a 22 anos. Poucos aprendizes ainda estão cursando o ensino médio. Cinco deles são universitários, dois dos quais cursam engenharia (de produção e civil). Como acontece em programas de Aprendizagem, os alunos estão empregados em ocupações básicas nas empresas hoteleiras (no caso, funções relacionadas com administração hoteleira e recepção; não há no grupo aprendizes que atuam em sala como auxiliares de garçom ou na cozinha como auxiliares de cozinha). Nos seus relatos, os estudantes dizem que rodiziam nos setores de administração dos hotéis, exercendo atividades no almoxarifado, no setor de reservas, no controle administrativo etc. Todas as funções exercidas não requerem escolarização superior ao ensino fundamental (esses aprendizes atuam basicamente como auxiliares de administração, realizando tarefas rotineiras). Mas, como se constatou, todos os vinte aprendizes têm escolarização muito superior à esperada para as funções que exercem.
No encontro com o grupo, foi proposta uma questão sobre o que se aprende no trabalho. As respostas dos aprendizes foram, de certo modo, surpreendentes. Eles comentaram que estão aprendendo muito pouco em suas atividades nas empresas. Disseram que aprendem muito mais na instituição que desenvolve a parte de educação formal do programa. Disseram que há um responsável pelo seu desenvolvimento na empresa, mas que esse profissional preenche apenas um papel exigido para cumprir aspectos legais. Não se pode generalizar o que disseram esses aprendizes. Mas, suas manifestações indicam um problema que acontece em vários programas de Aprendizagem: não há plano efetivo de desenvolvimento dos aprendizes nas empresas. Essa tendência contraria a expectativa de que os programas de aprendizagem são um meio muito efetivo para capacitar trabalhadores (TREVISAN, 2001; SHARPE e GIBSON, 2005). Tais depoimentos contrariam, por exemplo, achados da pesquisadora norueguesa Liv Mjelde que constatou que a maioria dos aprendizes que ela entrevistou prefere as atividades de trabalho às atividades escolares (MJELDE, 2015).
Nos relatos, os aprendizes disseram que há muitas mudanças no quadro de tutores que deveriam acompanha-los nas empresas. Disseram ainda que os representantes da empresa que vêm à instituição de ensino para reuniões de acompanhamento não são os empregados responsáveis pelos aprendizes; são funcionários administrativos do setor de recursos humanos. Constata-se assim ausência de relações de mestria no desenvolvimento dos aprendizes em seu trabalho nas empresas.
Trevisan (2001) repara que a retomada da aprendizagem no Reino Unido foi um movimento significativo para melhorar a capacitação de trabalhadores no país. Constatação semelhante é feita por Sharpe e Gibson (2005) em seus estudos sobre aprendizagem no Canadá. Os citados autores reafirmam a convicção de que aprender trabalhando é um caminho muito efetivo de capacitação de trabalhadores. Tal convicção supõe que o engajamento no trabalho favorece ingresso numa comunidade de prática na qual os noviços aprenderão com os outros trabalhadores e possivelmente serão orientados por um mestre na arte do ofício no qual se engajaram. Nesse sentido os programas de Aprendizagem são uma alternativa para a formação profissional pós-secundária em instituições de ensino. Os citados Sharpe e Gibson, por exemplo, observam que programas de Aprendizagem podem formar quadros para o trabalho de maneira mais efetiva que community colleges e universidades. Segundo esses autores, a Aprendizagem capacita as pessoas de maneira mais autêntica que as instituições escolares.
As observações junto a essa turma de aprendizes indicam uma necessidade que já foi constatada junto a outros grupos de estudantes matriculados em programas semelhantes: é preciso desenvolver no Brasil uma pedagogia que considere o aprender no e pelo trabalho. No momento, a Aprendizagem tem sido vista muito mais como um mecanismo de inclusão, não como uma oportunidade de capacitação profissional. Neste caso específico, ficou muito evidente que não há planejamento sistemático da Aprendizagem nas empresas às quais os alunos estão vinculados. Outro aspecto evidenciado foi o de que o conteúdo das ocupação que estão exercendo não exige desenvolvimento de habilidades complexas. A função é burocrática, constituída por tarefas que exigem apenas seguir certos procedimentos administrativos que demandam aplicação de rotinas. Talvez a situação fosse diferente se os aprendizes estivessem engajados no trabalho da cozinha ou se, no campo administrativo, recebessem responsabilidades superiores às de auxiliares administrativos. A turma toda tem formação escolar elevada, mas está engajada numa Aprendizagem pouco exigente em termos de conhecimentos e habilidades mais elevados.
As observações efetivadas junto a essa turma de aprendizes em empresas hoteleiras reptem certos padrões observado em outros grupos de aprendizes no Setor Terciário. Tais observações sugerem as análises apresentadas a seguir.
Concepções de Aprendizagem e Aprendizagem no Brasil
Os cursos de Aprendizagem estão voltados para ocupações básicas que em termos de ensino são pré-secundárias. Mesmo que a questão do nível de ensino em programas de Aprendizagem não apareça com muita clareza em planos de curso e em orientações sobre essa modalidade de capacitação profissional, ela surge assim que se acompanha qualquer programa de preparação de aprendizes. Do ponto de vista da articulação entre educação e trabalho, dois aspectos precisam ser considerados: 1. o nível de escolaridade dos alunos, 2. a tendência de elevação de escolaridade exigível para ocupações por motivos de valorização do trabalho correspondente.
Consideremos o nível de escolaridade dos alunos. Com a elevação da idade mínima para ingresso em programas de Aprendizagem (de 12 para 14 anos) e com a extensão do término da Aprendizagem para os 24 anos, dificilmente serão encontrados alunos nos programas que não tenham concluído o ensino fundamental. Assim, os aprendizes estarão cursando pelo menos o primeiro ano do ensino médio.
Há uma tendência de elevação dos níveis de escolaridade na formação profissional na medida em que a respectiva ocupação ganha certo prestígio social. Um caso típico é o do fisioterapeuta (MARQUES e SANCHES, 1994). Inicialmente, para se capacitar para essa profissão, era necessário apenas passar por um curso livre e conseguir aprovação em exame promovido pelos órgãos de fiscalização de saúde do Estado de São Paulo. Posteriormente, as exigências de formação percorreram três fases: curso técnico de nível médio, curso superior de curta duração, curso superior de quatro anos de duração. Considerando a orientação de que a Aprendizagem só pode ocorrer em ocupações básicas, o fisioterapia poderia terá sido objeto de Aprendizagem quando apareceu no cenário das profissões da área de saúde. Hoje é uma profissão que exige formação universitária no nível de bacharelado.
Há argumentos relativos a necessidades de aprofundamento tecnológico e científico das profissões que justificam a elevação de nível na preparação dos profissionais. Tais argumentos são válidos, mas tecnologia e ciência não são os únicos motivos que estão na raiz de movimentos para converter cursos básicos em técnicos e cursos técnicos em cursos superiores. Até os anos de 1970, por exemplo, a formação de podólogos acontecia num curso básico (livre) de qualificação profissional. Hoje a profissão exige preparação em curso técnico de nível médio. Além de razões de apreensão de conteúdos científicos por parte dos alunos, as associações profissionais da área exigiram elevação do nível de escolaridade dos podólogos pensando em prestígio social da ocupação. Com a elevação de nível da formação do podólogo, a ocupação hoje no Brasil não pode integrar programas de Aprendizagem. Vale observar que podólogos podem ser capacitados via Aprendizagem no Reino Unido Unido, por exemplo (https://www.scpod.org/about-us/press-office/press-releases/degree-apprenticeship-standard-for-podiatry-approved/).
O fenômeno da elevação da escolaridade na formação profissional não está restrito a ocupações na base da pirâmide ocupacional. Ela acontece também em cursos de formação universitária. Um dos exemplos mais citados disso é o dos cursos de direito nos Estados Unidos (WRESCH, 1996). No começo do século XIX a formação de advogados no país acontecia em cursos de curta duração, voltados especificamente para o sistema legal. Mas, em 1824, a Universidade de Maryland resolveu elevar o tempo de formação de advogados para quatro anos e foi acompanhada por muitas outras instituições de ensino superior. Em 1829, a Universidade de Harvard voltou à velha prática de cursos de curta duração. E esses cursos eram maioria no país, sendo oferecidos inclusive à noite. William Wresch (1996) observa que tais cursos eram acessíveis para as camadas mais pobres da população, para as mulheres e para os negros. Direito não era uma profissão elitizada. Isso começou a mudar em 1870, quando Harvard elevou as exigências de ingresso no curso, caminhando inclusive para uma formação em nível de pós-graduação. A elitização do direito começara antes em universidades que exigiam pelo menos quatro anos e estudo e não ofereciam o curso em período noturno. A medida, segundo Wresch, deixava de fora todos aqueles que para se capacitarem como advogados precisavam apenas de estudar a literatura legal disponível e passar por um período de Aprendizagem. Essa observação do autor indica que advogados, um deles, o presidente Lincoln, tinham como principal forma de capacitação profissional a Aprendizagem com um advogado mais experiente. Tudo isso mudou na medida em que a formação de advogados tornou-se mais acadêmica, num movimento que, segundo Wresch, afastou definitivamente as pessoas mais pobres da profissão.
Wresch exemplifica a elitização de outras profissões por meio de exigências acadêmicas. Convém relatar mais um dos casos históricos que ele relaciona em seu livro. O autor comenta o surgimento da École Polytechnique na França. A instituição foi criada durante a Revolução Francesa com o propósito de democratizar a formação de engenheiros. Mas, depois de 1816, a escola mudou muito e passou a exigir de seus candidatos conhecimentos (matemática abstrata, saberes literários, grego e latim) que estavam ao alcance apenas das elites.
Há mais casos de elevação da escolaridade, assim como de requisitos de entrada em cursos muito valorizados, que poderiam ser considerados aqui. Porém, para os fins pretendidos bastam os casos atrás apontados. O que mais importa para o que se investiga no presente estudo, e mais particularmente na análise dos programas de Aprendizagem, é deixar registrado que a elevação de nível em cursos de capacitação para o trabalho acontece como resultado de tramas sociais que não podem ser reduzidas a argumentos de que é preciso enriquecer a formação dos trabalhadores com mais conhecimento científico e tecnológico. Esse argumento muitas vezes serve para encobrir propósitos corporativistas e elitização desnecessária da educação para o trabalho.
O mesmo movimento de elevação de requisitos de escolaridade aconteceu com profissões que antes poderiam estar sujeitas a Aprendizagem, mas que hoje passaram a ser consideradas como ocupações que exigem mais tempo de escola que o do ensino fundamental.
É difícil analisar programas de Aprendizagem no Brasil de hoje, considerando as ocupações que integram listas de possibilidades de Aprendizagem. Há pelo menos dois problemas com tais listas. 1. Elas incluem ocupações que se referem a trabalho que não demanda qualquer qualificação e podem ser aprendidas em treinamentos rápidos ou exercidas após explicações básicas sobre o que fazer, 2. muitas delas são ocupações sem qualquer prestígio social. Os pais não as querem para seus filhos. Os jovens não as querem como destino ocupacional. Elas são aceitas apenas como oportunidade de emprego no âmbito de uma legislação que favorece ingresso de jovens no mercado de trabalho em condições especiais (registro em carteira, garantia de que poderá continuar estudos, garantia de que será liberado para participar do programa em instituições autorizada a fazer Aprendizagem).
Numa publicação sobre Aprendizagem para o setor terciário (SENAC SP, sd), estão relacionadas ocupações que constam da CBO (Classificação Brasileira das Ocupações) e, para o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) exigem formação profissional sistemática . Relacionamos tais ocupações a seguir, pois a lista sugere que direções existem hoje no país com relação à Aprendizagem:
- Assistente Administrativo
- Assistente de Logística
- Assistente de pessoal
- Atendente de Lanchonete
- Auxiliar de Cozinha
- Auxiliar de Limpeza
- Auxiliar de Manutenção Predial
- Camareiro em Meios de Hospedagem
- Cobrador Interno
- Empacotador
- Estoquista
- Frentista
- Lavador de Automóveis
- Operador de Caixa
- Operador de Telemarketing
- Organizador de Eventos
- Programador de Computador
- Recepcionista em Geral
- Repositor de Mercadorias
- Vendedor
- Zelador (p. 5)
É uma lista de ocupações bastante desiguais. Mas elas têm um traço comum, nenhuma dessas ocupações exige formação profissional em nível médio. Cabe perguntar em alguns casos se a ocupação listada demanda formação profissional sistemática. Como nosso interesse neste estudo é analisar as ofertas educacionais considerando principalmente aspectos de ordem pedagógica, não vamos aprofundar considerações vinculados aos aspectos ocupacionais. Mas, é preciso deixar registradas aqui algumas observações sobre pontos que chamam nossa atenção na leitura da lista citada.
Ela não inclui ocupações importantes em algumas áreas e que certamente poderiam integrar programas de Aprendizagem, mesmo no restritivo quadro atual de profissões sujeitas a Aprendizagem. Na área de hotelaria e restauração, por exemplo, estão relacionados o atendente de lanchonete, o auxiliar de cozinha e o camareiro em meios de hospedagem. Ficam de fora no caso o cozinheiro e o confeiteiro. Aparentemente profissões mais abrangentes, ou que não se caracterizem como funções auxiliares, deixam de ser consideradas para os programas de Aprendizagem. Cozinheiros e confeiteiros continuam a ser formados em cursos básicos de qualificação profissional. Cabe perguntar porque não integram a lista. Uma das hipóteses que levantamos e que precisa de comprovação é a de que profissões como a de cozinheiro e confeiteiro implicam em salários mais elevados que os pagos a auxiliares de cozinha. Assim, por alguma prudência trabalhista, evita-se considera-las em programas de Aprendizagem.
A ausência de ocupações mais exigentes em termos de formação sistemática na lista acima contrasta, por exemplo, com a lista de ocupações sujeitas à Aprendizagem no Québec, Canadá. Num artigo sobre Aprendizagem na província canadense ( BALLEUX, 2000), nenhuma das ocupações listadas leva título de assistente ou auxiliar, mas são definidas com o nome cheio de uma profissão. Por exemplo: pintor, eletricista, operador de grua, serralheiro, encanador, ferramenteiro. Ou então a Aprendizagem é definida por atividade de um setor. Exemplo: pâtisserie, produção de lácteos etc. Neste último caso, a orientação adotada já indica um direcionamento que se observa nas reformas dos sistemas de Aprendizagem dos anos de 1990 para cá. A Aprendizagem deixa de ficar restrita apenas a ocupações e é estruturada tendo em vista um setor de atividade. Isso flexibiliza modos de definir programas de Aprendizagem e, ao mesmo tempo, enriquece as possibilidades formativas dos trabalhadores.
As questões trabalhistas e interesses das empresas certamente influenciam lista como a apresentada. Por outro lado, o MTE procura ampliar a lista de ocupações sujeitas à Aprendizagem para aumentar a oferta de vagas para aprendizes, dadas as cotas que as empresas devem respeitar (de 5 a 15% de vagas para aprendizes consideradas as ocupações que demandam formação profissional sistemática) (ROBORTELLA, 2012). Isso, possivelmente influiu na inclusão do lavador de automóveis na lista acima.
Para melhor apreciar a questão da formação profissional sistemática, convém olhar como o documento do SENAC SP aqui citado descreve as competências do lavador de automóvel:
- Lavar automóveis considerando suas características de lavagem.
- Identificar os tipos de danos em automóveis.
- Aplicar técnicas de lavagem, higienização e acabamento, conforme finalidade e forma de aplicação.
- Higienizar o automóvel conforme características e técnicas específicas.
- Realizar acabamento conforme características e técnicas específicas.
- Aplicar procedimentos relativos ao recebimento e devolução de automóveis: vistoria, formulários (checklist), fluxo de trabalho (distribuição de atividades e tempo de lavagem).
- Reconhecer equipamentos destinados à higienização de automóveis: tipos (aspirador e pulverizador), finalidade e procedimentos de operação.
- Utilizar equipamentos e aplicar procedimentos de segurança no trabalho: EPI e EPC, extintor de gás carbônico; noções de prevenção a incêndios e primeiros socorros.
- Noções de estoque: recebimento e armazenamento; técnicas de controle de estoque PVPS – conceito e aplicabilidade; inventário. (p. 41)
Esta relação descreve habilidades que, na maior parte dos casos, já são componentes do repertório de saber fazer de qualquer cidadão. Imaginar um programa formativo que a empresa deveria desenvolver por meses seguidos para capacitar um lavador de automóveis é problemático. Apesar da linguagem empregada na descrição das competências requeridas, presume-se que a capacitação no caso não exigiria mais que uma semana de treinamento. Poderíamos discutir em detalhes cada uma das competências relacionadas, mas isso nos parece desnecessário. O que importa aqui é introduzir uma das questões de caráter ocupacional que fazem parte da reclamação das empresas quanto à definição de cotas considerando ocupações que demandam qualificação profissional sistemática em seus quadros de funcionários. À título de ilustração citamos comentários de um advogado (ROBORTELLA, 2012):
Nos termos do artigo 428 da CLT, “o empregador se compromete a assegurar” ao aprendiz “formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação”. Algumas atividades são obviamente incompatíveis com a aprendizagem, tais como o corte da cana, a carga e descarga de caminhões, a limpeza de calçadas e outras, eis que não exigem formação profissional sistemática e metódica. Entretanto, agentes da fiscalização, adotando uma visão excessivamente ampliativa e baseados em normas regulamentares expedidas pela autoridade do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, exigem que a base de cálculo da cota de aprendizes seja feita tomando como padrão unicamente a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO.
Além da questão posta por Robortella, a da excessiva extensão do número de ocupações básicas que podem ser objeto de Aprendizagem, a lei brasileira impede, na prática, que ocupações que poderiam integrar programas de Aprendizagem sejam consideradas. Recorremos mais uma vez a Robortella (2012) para situar tal questão:
Portanto, funções que dispensam formação profissional não devem ser consideradas para fixação da cota de aprendizes. A atividade deve necessariamente permitir a conciliação do trabalho com o ensino ministrado nos serviços nacionais de aprendizagem e nas demais instituições autorizadas. Outras atividades também são excluídas da cota, tais como as que exigem “habilitação profissional de nível técnico ou superior, ou, ainda, os cargos de direção, de gerência ou de confiança” (artigo 10, § 1o, do Decreto 5598/05).
Importa aqui considerar a última parte o texto de Robortella. Ele esclarece que o Decreto 5598/05 exclui ocupações que exigem habilitação profissional em nível técnico ou superior. Essa orientação da lei resulta nas seguintes consequências:
- A Aprendizagem fica circunscrita ao nível fundamental de ensino.
- Não é possível no Brasil praticar uma Aprendizagem escalonada em níveis como se faz, por exemplo, no Reino Unido.
- Há tendência em incluir nas listas de ocupações sujeitas a Aprendizagem trabalhos semiqualificados.
- A situação de escolaridade dos Aprendizes, considerando universalização do ensino fundamental e elevação da idade mínima dos aprendizes, assim como da extensão do período de Aprendizagem para os vinte e quatro anos, não é levada em conta.
O quadro até aqui delineado foi necessário para que possamos avaliar os resultados de observações efetivadas em turmas de aprendizes no setor terciário. Alguns aspectos das observações já foram citados em trecho anteriores quando consideremos referências internacionais ou decorrências das normas que regem a Aprendizagem no Brasil. A partir deste ponto, vamos centrar nossa atenção nas práticas de Aprendizagem encontradas.
Aprendizes no campo da administração e vendas
Uma turma de aprendizes observada era um grupo formado por jovens cuja idade variava de 16 a 22 anos. Variava também a escolaridade da turma, do primeiro ano do ensino médio ao ensino médio completo e já concluído. Nas empresas os alunos estavam engajados em trabalhos de caráter administrativo. No curso, nenhuma competência específica era trabalhada em termos de ensino na instituição de formação profissional. A turma tem um único professor que a acompanha em sala de aula até o final do programa. Esse professor é um generalista capaz de abordar temas gerais de administração, mas não domina procedimentos específicos dos fazeres dos aprendizes nas empresas. As unidades curriculares são as definidas num documento orientativo da instituição:
- Desenvolvimento Pessoal: 120 horas.
- Mundo do Trabalho: 180 horas.
- Participação Social: 144 horas
- Projeto de Aprendizagem -Plano de desenvolvimento Pessoal e Profissional: 36 horas.
Estes eram os temas que orientavam as atividades nos encontros dos aprendizes em salas de aula. A Prática Profissional (específica) era de 1.080 horas, considerando o engajamento do aprendiz no trabalho cotidiano da empresa que o contratara.
O que pudemos apurar foi que o enfoque educacional utilizado é o de promover atividades que favoreçam desenvolvimento da cidadania e protagonismo juvenil. A capacitação profissional específica não merece destaque no caso. A preocupação maior é a de atender a necessidades de desenvolvimento desses jovens que estão empregados como aprendizes. A proposta educacional está voltada, portanto, para as pessoas. E mais que isso, para pessoas que vivem sua condição de jovens. A capacitação para o trabalho é delegada inteiramente para a empresa. De certa forma, a opção do programa caminha na direção do desenvolvimento de habilidades básicas.
Na sessão acompanhada, o tema central foi o da questão do emprego/desemprego juvenil. Essa é uma questão vivida por todos aqueles jovens aprendizes. No momento eles tinham um contrato de trabalho, mas nenhuma segurança quanto ao futuro. Boa parte da aula foi preenchida pela projeção de uma reportagem sobre as relações dos jovens com o trabalho. A matéria, bastante extensa, abordava as dificuldades enfrentadas pela juventude em conseguir trabalho de qualidade nas suas primeiras tentativas de busca de emprego, abordava também possíveis caminhos de capacitação profissional, Aprendizagem inclusa.
Após a projeção do vídeo, o grupo começou a discutir o assunto. No início, não surgiu nada que pudesse chamar atenção para um observador externo interessado em verificar como os próprios jovens veem sua situação de aprendizes. Mas, na continuidade da sessão apareceu um evento crítico que merece registro.
Os alunos começaram a falar sobre sua condição de aprendizes, levantando dúvidas sobre o futuro. Revelaram desejos de conseguir contrato definitivo, após a Aprendizagem, na empresa em que trabalhavam como aprendizes. Comentaram que ainda não têm uma capacitação profissional que sinalizasse possibilidades de carreira. E nesses comentários, relacionando sua condição (precária) de aprendizes com expectativas do futuro imediato, duas alunas contaram histórias bastante parecidas. Elas tinham sido convidadas para trabalhar em redes de salões de beleza. A uma delas foi oferecida a oportunidade de aprender técnicas do oficio de cabeleireira e iniciar uma carreira na área. A outra, foi oferecido um emprego que poderia ser definido como o de recepcionista do salão. Esse papel de recepção articularia recepção das clientes com relações públicas e vendas. Ambas as alunas ainda não tinham se decidido. As ofertas significavam deixar a Aprendizagem pela metade e perder um a garantia de um contrato de trabalho seguro.
Os comentários do professor às histórias contadas pelas alunas situaram como a o trabalho é visto pelo docente. Em síntese, ele disse o que segue:
As alunas deveriam considerar bem o tipo de oferta que receberam. O trabalho na área de salão de beleza não favorece a construção de uma carreira profissional. A situação de Aprendizagem, embora limitante naquele momento, talvez fosse mais favorável, além de segura. O professor disse que a Aprendizagem não era um fim, mas um meio para que os alunos perseguissem ideais mais ambiciosos (continuidade dos estudos, cursar uma faculdade). E, de modo sutil, ele caracterizou o trabalho em salões e beleza como um destino indesejável para pessoas que têm (como todos aqueles alunos) bastante escolaridade. Propôs às alunas que refletissem bem sobre as ofertas. E revelou que o trabalho em salões de beleza talvez não fosse um caminho desejável. O docente apressou-se a informar que sua avaliação do trabalho em salões de beleza não era preconceituoso. Mas, essa manifestação contrariava tudo o que ele dissera até então.
Nos comentários sobre oportunidades que duas alunas disseram que lhes foram oferecidas por redes de salões de beleza aparecem indicações que mostram como se vê a Aprendizagem no casos acompanhado. Do ponto de vista ocupacional não importa muito o que os alunos estão fazendo. Importa a oportunidade que têm de um tempo com contrato de trabalho e oportunidade para refletir sobre que caminhos prosseguir em termos de trabalho e estudo. Essa reflexão não inclui percursos em que predominam os trabalhos manuais. Por esse motivo, a sugestão do professor às alunas desencoraja a decisão de optar por trabalhos em salões de beleza.
Vale aqui relembrar que o trabalho antes visto como inferior pode ganhar importância social e ascender na escala acadêmica. Parece que essa possibilidade ainda é muito distante com relação a salões de beleza. É interessante notar que ocupações próprias de salões de beleza, como cabeleireiro e manicure, não apareçam na relação de ocupações sujeitas a aprendizagem na lista relativa ao setor terciário que apresentamos aqui.
Os comentários do professor sugerem um entendimento do programa Aprendizagem que está centrado na figura dos jovens que conseguem o contrato especial de trabalho que lhes dará oportunidade de uma educação para um futuro melhor. A ocupação sujeita à Aprendizagem é apenas um conveniência legal para melhorar oportunidades para aqueles jovens.
Na situação observada, Aprendizagem não é uma alternativa de capacitação profissional. Uma das decorrências disso é a desvalorização do aprender no e pelo trabalho. De certa forma, a condução da Aprendizagem em tal direção contraria o que vem acontecendo em vários países desenvolvidos que reformaram e revalorizaram a Aprendizagem.
Para elaborar melhor o quadro da Aprendizagem que vimos em instituição que trabalha com educação profissional voltada para o setor terciário é preciso examinar o registro de outras observações efetivadas.
Aprendizes ensinando aprendizes na escola
Outra situação observada aconteceu num evento que reuniu três diferentes turmas de Aprendizagem. Os gestores da organização profissional contatada sugeriram que seria interessante observar caso em que uma turma de Aprendizagem preparara comunicação para outras duas turmas, numa situação em que os alunos exercitariam competências comunicativas sobre temas de interesses para jovens no mundo de hoje.
O evento envolveu mais de cinquenta jovens matriculados em diferentes programas de Aprendizagem na instituição. A turma encarregada da apresentação era constituída por quinze alunos que, além de coordenarem as atividades, prepararam o ambiente para receber as duas turmas que participariam do evento. O tema desenvolvido foi o suicídio juvenil.
Na turma que preparou a comunicação sobre o tema escolhido, seis alunos assumiram a coordenação dos trabalhos. Ele iniciaram as atividades propondo um exercício em que os participantes deveriam produzir um desenho retratando algo que representasse o que sentiam com relação ao que consideravam importante em suas vidas. O exercício buscava partir de modos de expressão que pudessem superar a barreira de discursos que acabam encobrindo o que as pessoas de fato pensam sobre assuntos que comprometem valores. A coordenação de uma atividade como aquela exigiu estudo cuidadoso sobre modos humanos de se comunicar e expressar sentimentos, crenças, valores pessoais.
Os participantes tiveram cerca de vinte minutos para produzirem seus desenhos e receberam inicialmente a informação de que não se buscava um desenho esteticamente bem feito. Importava produzir algo expressivo. Na continuidade da sessão, cada participante mostrou seu desenho e falou sobre os motivos que o levaram a escolher a imagem que havia produzido.
O exercício com desenho funcionou como umaa atividade para envolver todos os participantes numa reflexão sobre valores pessoais e enfrentamento das dificuldades encontradas por cada um na vida cotidiana. O professor não interferiu na condução dos trabalhos.
Nas observações efetivadas constatou-se que os alunos que coordenavam a atividade mostravam maturidade para abordar temas sensíveis sobre comunicações que retratavam sentimentos de jovens e adolescentes que enfrentam muitos problemas em seu dia a dia na busca de condições que possam lhes garantir um encaminhamento profissional satisfatório e uma vida feliz.
Nas comunicações dos participantes a partir do desenho que haviam feito predominaram comentários sobre depressão. Esses comentários poucas vezes se referiam a histórias pessoais, mas apresentavam casos que os jovens haviam visto nos meios de comunicação ou narravam histórias de conhecidos próximos. As técnicas de condução dos trabalhos eram informadas por abordagens didáticas cuidadosas com o objetivo de evitar que os participantes entrassem em processos catárticos ao relatar sofrimentos pessoais ou de pessoas próximas. Mesmo assim, em dois casos, os relatos foram mais envolventes. Num, uma jovem de dezessete anos contou que já passara por um período de depressão, relatou sintomas da doença, historiou como superou a fase mais crítica da doença. Noutro, uma jovem de dezoito anos relatou as dificuldades que sua mãe ainda enfrenta por causa da depressão. Neste último caso, a filha ressaltou, com base em suas experiências pessoais, como pessoas próximas podem ajudar pacientes com depressão.
Os jovens que estavam no evento, tanto os coordenadores como os participantes, estudam ou estudaram em escolas públicas. Têm uma escolaridade que varia do primeiro ano do ensino médio ao término deste. E a distribuição etária variava de um limite mínimo de 15 anos ao limite máximo de vinte anos. Os alunos têm em média dezessete anos e cursam o terceiro ano do ensino médio. Nas empresas estão empregados em funções das áreas de administração e vendas. Pelos relatos feitos notou-se que a maioria dos estudantes era de vendas, empregados em lojas do varejo, mas com variações quando à natureza dos negócios de suas empresas.
Na sessão acompanhada não emergiu um evento crítico que pudesse ser destacado para análise em termos do processo de investigação empregado por este estudo. A situação inteira poderia ser considerada como crítica, pois aqueles jovens e adolescentes estavam envolvidos em uma atividade muito sensível em termos psicológicos. Mas, essa circunstância não guardava relação direta com o interesse de entender como o ensino na instituição de formação profissional indicava caminhos que pudessem mostrar como a Aprendizagem pode ser utilizada como forma de capacitação profissional. O modelo de programa de Aprendizagem adotado pela instituição privilegia abordagens que têm como centro o desenvolvimento pessoal dos jovens contratados como aprendizes. Supõe-se que a capacitação profissional específica vá ocorrer no trabalho cotidiano na empresa. Mas, não fica evidente como tal capacitação ocorre. A instituição entende seu papel educacional como uma missão voltada para o que chama de formação da cidadania. Essa missão confunde-se com papéis que deveriam estar sendo assumido pelas escolas de ensino médio em que os aprendizes estudaram ou estudam.
Aprendizagem em vendas
Outro acompanhamento que merece relato sucinto aqui foi o de uma aula para aprendizes da área de vendas. Em entrevista no dia anterior à aula, o professor disse que não atua como um docente que ensina técnicas. Ele é o único docente da turma e a acompanha durante todo o período de Aprendizagem, incluindo a supervisão nas empresas, compreendendo em média uma visita bimensal para examinar a situação de cada aprendiz. Na instituição de formação profissional o que se aborda são conteúdos voltados para habilidades gerais ou para temáticas de interesse para a juventude. Mais uma vez, colhemos a informação de que naquela instituição o foco mais importante do trabalho com aprendizes era a formação da cidadania[39].
Na sessão observada, o tema central foi uma apresentação sobre estilos de venda. O ponto de partida para a reflexão dos alunos foi um filme de longa metragem que narra a história de um vendedor de porta em porta cuja ocupação estava desaparecendo. O personagem é confrontado com novas estratégias de venda que utilizam tecnologias da informação para chegarem à casa dos clientes. Cessam, no caso, os contatos pessoais. O drama do protagonista mostra ao mesmo tempo um personagem que ama sua profissão e que usa os contatos pessoais como forma de fidelizar seus clientes.
Após o filme, os alunos foram convidados a sintetizar, em grupos, a mensagem do filme. Para tanto, desenharam em quadros branco figuras, esquemas e/ou resumos do que entenderam que era relevante no filme. A partir de tal exercício, o professor organizou uma roda de conversa na qual os alunos espontaneamente expressavam suas opiniões sobre técnicas de venda, fidelização dos clientes, atuação dos vendedores, fazendo pontes entre seu trabalho nas empresas e a história do filme. A sessão foi uma mostra característica daquilo que o professor nos apresentou como trabalho “não técnico” de formação profissional. Ou seja, de abordagens voltadas para habilidades gerais que podem ser consideradas como saberes comuns a um arco bastante amplo de ocupações no setor terciário.
Os acompanhamentos realizados em diversas turmas de aprendizes numa instituição de formação profissional em comércio e serviços sinaliza algumas questões sobre limites do modelo de Aprendizagem que vem sendo praticado no país. Do ponto de vista legal a solução encontrada para oferecer programas de Aprendizagem voltados para um arco de ocupações é uma estratégia que acaba resultando em cursos que acolhem os jovens e lhes dão um reforço de educação em temas que não são ou não foram contemplados no ensino médio. Essa estratégia, porém, é criticada no campo do direito:
Algumas instituições, atentas ao problema suscitado pela CBO e em resposta à demanda do mercado, passaram a elaborar programas generalistas, ou seja, sem qualquer conexão com a atividade executada pelos aprendizes, o que é indesejável e contrário ao próprio interesse destes e da sociedade. (ROBORTELLA, 2012)
O reparo legal expresso por Robortella critica a solução encontrada para um modelo baseado em definições ocupacionais que ignoraram as dinâmicas que fizeram com que muitas profissões saíssem do radar da Aprendizagem porque foram elevadas a habilitações técnicas. Ela também não considera o fenômeno de evitação de listar certas ocupações entre as sujeitas a Aprendizagem porque na hierarquia ocupacional certas profissões, se consideradas para Aprendizagem, poderiam acarretar algum problema em termos trabalhistas
Os casos aqui estudados mostram um modelo de Aprendizagem que foi estruturado em época (década de 1940) na qual a escolaridade dos trabalhadores era muito baixa. Na ocasião definições ocupacionais como as fornecidas pela CBO e referenciadas por estruturas de formação profissional voltadas para capacitar trabalhadores no nível do ensino fundamental eram suficientes e adequadas para definir programas de Aprendizagem. Com a elevação geral da escolaridade da população e com a passagem de muitas profissões do nível de qualificação para o de habilitação profissional a Aprendizagem no Brasil acabou incluindo entre as formações possíveis ocupações com conteúdos de saber muito reduzidos.
Nas turmas acompanhadas, problemas e incongruências entre escolaridade e programa de Aprendizagem ficaram muito evidentes. Os alunos fazem ou já fizeram o ensino médio. Alguns alunos já estão na universidade. E esses alunos estão matriculados num curso cuja referência é o de uma educação fundamental. Inclusão de lavador de automóveis em lista de ocupações sujeitas a Aprendizagem é o caso mais sintomático de tal contradição. Mesmo na década de 1940 essa ocupação poderia ser contestada como profissão que demandaria qualificação profissional sistemática. Ao que tudo indica, ela foi incluída na referida lista pelos motivos denunciados por Robortella, o de ampliar o número de trabalhadores nos cálculos de cotas obrigatórias de aprendizes nas empresas. Essas questões todas tendem a se agudizar caso não aconteça uma reforma no sistema de Aprendizagem no Brasil. Ocupações com riqueza ocupacional que poderia resultar num programa de Aprendizagem interessante deixam de ser consideradas porque migraram para o ensino técnico de nível médio ou até mesmo para o ensino superior.
O que verificamos no setor terciário não ocorre no setor secundário. Em Aprendizagens no campo do trabalho industrial, as limitações das normas atuais provoca problemas de natureza diferente que os constatados em comércio e serviços.
Projeto para feira de ciências
A atividade é interessante. Os alunos estão concluindo a construção de brinquedos de parques infantis em escalas reduzidas. Há rodas gigantes, pistas de corrida, barcos gangorras etc. Todos esses brinquedos terão movimento acionado por pequenos motores. O projeto é de aplicação no campo da eletrônica ( o curso é de Aprendizagem em Eletrônica Industrial). O projeto iniciado há três meses, está em fase de finalização e será mostrado numa feira de tecnologia e ciência aplicadas. O que se observa é uma atividade que poderia estar acontecendo em ensino de ciência no ensino médio. Aparentemente o que se faz no caso fica muito distante do que Aprendizes deveriam estar fazendo para aprenderem a ocupação que é objeto de sua formação para o trabalho. Como explicar isso?
Na escola onde aconteceu a observação acima registrada há um esforço muito elogiável para oferecer aos jovens Aprendizes oportunidades de educação que não teriam em outra parte. Em muitos casos não há possibilidade real de Aprendizagem no e pelo trabalho. Há jovens Aprendizes contratados por empresas que precisam preencher cotas de acordo com a legislação brasileira, ou que se matriculam no curso com a esperança de virem a ser contratados. Isso exige alguma explicação.
Em rápidas entrevistas, muitos alunos dizem que estão “contratados”, expressão utilizada para dizerem que há um empresa à qual estão vinculados e que lhe paga salário de Aprendiz. Mas, eles não trabalham, nem marcam ponto na empresa que os contratou (“embora possam tomar refeições na empresa”, informa um aluno). Alguns alunos já vêm contratos para a escola. Outros são contratados durante o curso. Outros ainda chegam ao final de sua formação sem conseguirem o desejado contrato de Aprendiz.
Na turma observada, a moda da idade dos alunos é de dezesseis anos. Há uns poucos de quinze ou de dezessete anos. A maioria cursa o segundo ano do ensino médio, todos em escolas públicas. Apenas um dos alunos está no primeiro ano do ensino médio. Dois estão no terceiro ano.
Em entrevistas, os alunos não revelam esperança de trabalhar ne indústria local na área de eletrônica. Coordenadores de atividades e docentes da escola explicam que os alunos são muito novos para serem contratados como operários especializados. As empresas, dizem eles, querem trabalhadores “prontos”. Este é um comentário também encontrado em análises feitas sobre Aprendizagem no Canadá (SHARPE e GIBSON, 2005) em que o mesmo termo aparece quando se fala em trabalhadores que as empresas desejam contratar (“trabalhadores prontos”). Os alunos do curso acompanhado manifestam um grande desejo de trabalhar de fato nas empresas às quais estão vinculados por contrato de Aprendizagem, mas que não frequentam por imposição das mesmas. Em tal situação não ocorre Aprendizagem no sentido em que essa forma de educação deve acontecer (educação no e pelo trabalho).
O caso aqui relatado apresenta alguns dados que merecem investigações que extrapolam os limites deste estudo. É relevante, no caso, a existência de Aprendizes que frequentam exclusivamente as instituições de educação profissional, sem comparecer ao trabalho nas empresas que os contrata. Não há de fato Aprendizagem no caso. Há apenas atendimento a um mandato legal de contratação de empregados que preencherão cotas legais de Aprendizagem que as empresas são obrigadas a cumprir. No curso observado, ficou bastante evidente que os alunos não aprenderão a ocupação que define o curso que fazem. Isso caracteriza um dos caminhos que a Aprendizagem vem seguindo no Brasil. Assim, além da Aprendizagem não se articular com a estrutura de ensino, vemos agora que há casos em que ela também não se articula com o trabalho.
Aprendizagem de artes gráficas
A oficina da instituição é bem antiga. Há um setor para composição manual com tipos móveis e impressoras operadas manualmente (tal setor reproduz basicamente antigas tipografias artesanais). Há também máquinas de impressão offset, mais modernas e parecidas com as que são utilizadas pela maioria das gráficas de médio porte. E a parte mais procurada da oficina é o setor de silk screen. Os alunos passam por todos os setores, começando pela tipografia. Professores do programa explicam que o trabalho tipográfico, caracteristicamente artesanal, é um modo bastante eficiente de iniciar os alunos em artes gráficas. Em entrevistas, os alunos manifestaram maior interesse por silk screen e muitos deles revelaram que pretendem trabalhar autonomamente fazendo impressões com tal tecnologia em camisetas e outros itens de vestuário.
Dos dezoito alunos presentes, quatorze estão contratados como aprendizes pela mesma empresa, uma fábrica de cadernos. Ela é a única empresa do ramo gráfico na cidade que tem número de empregados que a obriga a contratar aprendizes. E tal empresa não é propriamente um gráfica. Por isso, os aprendizes aprendem muito mais artes gráficas na instituição de ensino que na empresa. A coordenação pedagógica da escola informou que a instituição tentou algumas vezes enviar aprendizes para empresas que não têm obrigação legal de recebê-los. Essas empresas, pequenas e médias, se recusaram a colaborar[40]. A proposta, resolvidas possíveis barreiras legais, é interessante e praticada em outros países. Na análise feita neste estudo sobre programas do Sheffield College, por exemplo, apareceram diversos casos de programas de Aprendizagem que, certamente, acontecem em empresas ou organizações de pequeno porte. Os exemplos do Sheffield College caracterizam programas que enfatizam sobretudo uma modalidade de capacitação profissional nas quais parceria das empresas com a instituição escolar resultam numa modalidade de educação baseada no saber do trabalho. A tentativa de incluir empresas gráficas pequenas e médias no programa de Aprendizagem que acompanhamos indica um caminho interessante que talvez não possa ser percorrido imediatamente, mas sinaliza uma das possibilidades para possível reforma da legislação sobre Aprendizagem no Brasil.
Assim como na turma do setor hoteleiro, a maior parte dos alunos já concluiu o ensino médio. Apenas dois deles ainda cursam a segunda série deste grau de ensino. Há também aprendizes que estão na universidade (duas alunas cursam educação física). A média de idade desses aprendizes é de 19 anos, numa distribuição cujo limite inferior é dezessete, e o limite superior 22 anos. Isso explica em parte porque dezesseis alunos já terminaram o ensino médio. Outro dado interessante é o de que cinco desses aprendizes cursou na instituição, via modalidade concomitante, o curso técnico de administração. Outros alunos já fizeram ali algum curso de FIC. Por causa dessas situações procurou-se investigar porque os alunos buscaram o curso de Aprendizagem naquela escola. As respostas indicaram que eles escolheram uma oportunidade de fazer mais um curso que poderia melhorar suas chances de empregabilidade, não necessariamente no setor de artes gráficas. Eles ingressaram no programa de Aprendizagem por curiosidade, por interesses difusos, porque gostam de trabalho manual, porque não há outras opções imediatas. Eles querem continuar estudos enquanto não conseguem ingressar na universidade ou emprego bem remunerado. Alguns, como já ficou registrado, planejam organizar pequena empresa para impressão em silk screen (uma aluna, particularmente, disse que se dedica bastante ao estudo de técnicas de silk screen pois pretende articular o que aprendeu no curso técnico de administração com essa aplicação que está aprendendo no curso).
Nas entrevistas, nota-se que os alunos são bastante inseguros quanto ao seu futuro no campo do trabalho bem como no dos estudos. Seus desejos de ensino universitário, por exemplo, nada têm a ver com o que fazem agora. Nenhum aluno manifestou intenção de ingressar no mercado de trabalho como gráfico, nem em prosseguir estudos na área.
As informações colhidas junto a esse grupo de Aprendizes mostra um programa que funciona sobretudo como um curso interessante sem articulações consistentes com a capacitação de trabalhadores para o setor de artes gráficas. E este não é um caso isolado. O modo pelo qual os alunos veem o programa é semelhante ao que já verificamos em outros grupos. Não fica claramente caracterizada a função do programa como instrumento de capacitação profissional. Por outro lado, o que se desenvolve na escola é um curso que independe da vinculação dos alunos a uma empresa. Isso mostra que valoriza-se mais a formação sistemática no ambiente escolar que no ambiente de trabalho. Essa tendência é inteiramente diferente do que as verificadas em programas de Aprendizagem como os desenvolvidos no Reino Unido.
Aprendizagem em mecânica ou reforço em matemática?
Num curso de Aprendizagem de mecânica, verificou-se que muitos alunos não estavam contratados como aprendizes. E, mais que isso, alguns alunos entrevistados não se interessavam pelo trabalho, pois além de frequentarem o programa de Aprendizagem estavam no último ano do ensino médio e queriam se preparar bem para ingressar em universidades públicas. Um dos alunos entrevistados disse que ingressara no programa de Aprendizagem em mecânica porque este enfatiza bastante matemática. E essa é uma oportunidade para que ele aprenda mais a matéria tendo em vista seu desejo de ingressar na Escola Politécnica da USP (repetindo uma história familiar; o pai também foi aprendiz na mesma escola e hoje é um engenheiro formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo).
O programa de Aprendizagem está voltado para a Mecânica de Usinagem e dura 1.600 horas em sua parte escolar. São trinta alunos, dos quais apenas dez têm contrato de Aprendizagem. O requisito escolar de entrada é ter concluído o ensino fundamental. Como a procura é maior que a oferta, a unidade realiza um exame de seleção para formar suas turmas de Aprendizagem.
Outro aspecto que merece registro é a qualidade da oficina frequentada pelos aprendizes. Ela está organizada para oferecer aos alunos oportunidade de praticagem com tornos e fresas, tão bons ou melhore que os encontrados nas empresas do setor.
Ao contrário de muitos outros programas de Aprendizagem acompanhados, este tem em sua parte acadêmica um currículo equivalente ao que os alunos estariam estudando se estivem matriculados em curso técnico subsequente da área. E cabe reparar que na escola o curso técnico no campo de mecânica de usinagem tem a carga horária de 1.500 horas. Por isso é compreensível que um dos aprendizes entrevistado tenha dito que escolheu o programa porque deseja aprofundar-se no estudo da matemática.
As observações efetuadas ocorreram em oficinas. Nelas, os alunos trabalham individualmente ou em equipe, quase sempre estudando um desenho e tentando realizar os ajustes necessários para usinar as peças desenhadas. O trabalho assemelha-se ao que fariam em empresas da área. No final do programa, mesmo sem passar por uma empresa como aprendizes, os alunos serão capacitados como ajustadores. O curso pelo qual passaram é um programa bastante completo de qualificação profissional. E essa qualificação, embora não se reconheça formalmente, é uma formação de nível técnico do ponto de vista escolar.
O coordenador do programa, espontaneamente comenta um aspecto que merece registro. De acordo com ele, comportamento e desempenho dos alunos que estão trabalhando em empresas como aprendizes é diferente do comportamento e desempenho dos alunos que apenas frequentam o curso. Eles manifestam mais interesse em aprender e revelam maior segurança na realização de tarefas. O coordenador, porém, nada diz sobre a capacitação dos alunos no e pelo trabalho. O que ele ressalta são os efeitos positivos da experiência de trabalho dos alunos contratados na capacitação que acontece na escola.
Outra observação do coordenador é a de que as empresas não têm interesse pela Aprendizagem. Isso, segundo ele, explica o baixo número de alunos contratados na turma observada. As empresas contratam aprendizes apenas para cumprir a lei. No geral, não efetivam os alunos após o período de Aprendizagem.
Convém reiterar uma das conclusões que decorreram da observação da turma em foco: a aprendizagem sistematizada não é muito frequente nas empresas. Os alunos que nelas trabalham aprendem porque participam de uma comunidade de prática, mas parece que não há planejamento explícito do desenvolvimento dos aprendizes. Aparentemente as empresas não incluem a Aprendizagem em seus programas de desenvolvimento profissional. Por outro lado, são comuns nas mesmas empresas programas de desenvolvimento de trainees. Tais programas têm muitas semelhanças com a Aprendizagem clássica, tal qual praticada pelas corporações de ofício. Ao que tudo indica, as empresas não investem em capacitação sistemática de aprendizes porque estes ocupam postos de trabalho em funções básicas. Os investimentos em treinamento e desenvolvimento estão voltados para funções gerenciais, deixando de lado as ocupações da base da pirâmide ocupacional
Alguns registros de entrevistas com alunos do programa também são úteis para que entendamos como a Aprendizagem é vista por quem nela ingressa.
Um aprendiz de dezoito anos é aluno de primeiro ano numa universidade privada. Ele diz que não enfrenta, como a maioria de seus colegas de curso superior, dificuldades com matemática. Em parte isso acontece porque ele estuda, no programa de Aprendizagem, praticamente os mesmos conteúdos de matemática que está vendo no primeiro ano de engenharia. Ele exemplifica, dizendo que a matéria sobre vetores que estuda no momento no primeiro ano de engenharia já foi vista no curso de Aprendizagem.
Duas alunas, ambas de dezessete anos e que já concluíram o ensino médio, estão se preparando para ingressar na universidade. Uma delas quer fazer arquitetura. Outra ainda não se decidiu, mas diz que gostaria de articular seus estudos com o trabalho que possa conseguir depois de terminar o programa de Aprendizagem.
Outro aluno entrevistado tem uma história escolar interessante. Ele fez o curso técnico de mecânica em outra escola. Diz que aquela escola tinha oficinas e laboratórios muito modestos. Por isso terminou o curso sem desenvolver algumas habilidades importantes para ajustadores. Optou então por ingressar no programa de Aprendizagem nessa instituição que oferece oportunidades de praticagem em oficinas muito atualizadas. Essa revelação do aluno já formado num curso técnico confirma nossas conclusões de que o programa de Aprendizagem em foco tem nível de curso técnico. Mas, essa situação de fato não é reconhecida legalmente.
Em todas as entrevistas, procurou-se saber o que os aprendizes planejavam em termos de futuro. Todos eles desejam fazer curso superior. O que desejam, porém, não configura um itinerário formativo. Assim como aconteceu com seu ingresso no programa de Aprendizagem, os alunos veem o ingresso na universidade como uma questão de oportunidade. Pensam em fazer o curso em que conseguirem ingressar, deixando de lado carreiras mais desejáveis, mas para as quais entendem que não estão bem preparados.
Alguns aspectos dessa observação indicam um quadro que já foi delineado em parte nos parágrafos anteriores. Tal quadro tem como destaque os seguintes pontos
- Como têm programas e recursos definidos para vários programas de Aprendizagem, a instituição preenche todas as vagas disponíveis, mesmo que os aprendizes ainda não tenham conseguido contrato de emprego. Por essa razão, são encontrados nos programas muitos alunos que não trabalham e que talvez não encontrem trabalho até o final do curso.
- Como já destacamos várias vezes, embora a ocupação de ajustador mecânico possa ser considerada de nível básico, o programa desenvolvido assemelha-se a um curso técnico. E isso acontece não apenas por causa da escolaridade dos alunos, mas porque o conteúdo desenvolvido é de nível secundário.
- A moda da idade dos alunos no programa observada é de dezesseis anos. Por isso, grande desses aprendizes cursa o segundo ano do ensino médio. Para eles, o ponto de vista prático, o programa funciona como um curso técnico concomitante.
- Dos alunos de dezessete ou mais anos e que já concluíram o ensino médio muitos estão em universidades. Não há qualquer integração entre estudos superiores e a Aprendizagem. O caso de um aluno que aproveita estudos de matemática oferecidos pelo programa no curso de engenharia em que está matriculado parece ser fruto do acaso ou de escolha pessoal do aluno. O que queremos reparar aqui é a inexistência de propostas intencionais das organizações de ensino para articular Aprendizagem e ensino de nível superior.
- O tipo de Aprendizagem aqui acompanhado independe de contrato de trabalho, independe de vinculação dos alunos a uma empresa. Para muitos alunos a situação não é propriamente de Aprendizagem. Eles aproveitam uma oportunidade de fazerem um curso gratuito de boa qualidade. Entrevistados, não consideram possível carreira na profissão que estão aprendendo. Eventualmente podem exercê-la como uma ocupação de passagem enquanto fazem um curso superior e/ou aguardam oportunidade de emprego melhor remunerado.
- Se conseguirem contrato com uma empresa como aprendizes, alunos do programa passarão por um processo de capacitação profissional de mais de 3.000 horas. Essa é uma carga horária muito superior ao tempo de um curso técnico de nível médio. Ao fazermos essa consideração, estamos a supor que o tempo de trabalho na empresa será um período de capacitação profissional, embora saibamos que na maior parte dos casos os processos de capacitação profissional sistemática no trabalho não seja explicitamente organizado. Esse tempo é suficiente para uma capacitação profissional bastante completa.
- Como reparamos anteriormente, aprendizes e empresas não têm interesse bem estabelecido quanto à capacitação profissional via Aprendizagem. Essa é uma contradição que precisa ser mais investigada.
- Em alguns programas de Aprendizagem, a atuação das agências educacionais não caminha na direção de uma capacitação profissional claramente voltada para uma ocupação. A ênfase é colocada sobre a pessoa dos jovens e o programa aborda questões de caráter geral, com destaque para aspectos de caráter comportamental. Na instituição escolar não acontecem envolvimento dos alunos em atividades de oficinas e laboratórios. Todas as atividades são desenvolvidas em salas de aula. Esse não é o caso do programa aqui analisado. Ele claramente está voltado para uma ocupação e os aprendizes passam boa parte do tempo em oficinas e laboratórios.
- O ingresso no programa de Aprendizagem em foco acontece por vários motivos. Um deles baseia-se em tradição familiar. Muitos aprendizes buscam o programa por recomendação dos pais ou de outros parentes que também foram aprendizes. Há alunos que ingressam no curso porque os pais são operários e embora não tenham sido aprendizes querem que os filhos aprendam um ofício na área industrial. A maior parte dos participantes declara que estão no programa por causa do conteúdo, dizendo que o programa complementa sua educação.
Aprendizagem em eletro-eletrônica
Outra turma de Aprendizagem, Eletricistas de Manutenção Eletro-eletrônica, na mesma escola tem características similares à anterior. São trinta alunos. A maioria deles tem dezessete anos, idade mínima para ingresso no programa, uma vez que para exercer a profissão é preciso ter pelo menos dezoito anos.
Segundo os alunos, o programa oferece ensino de ótima qualidade no campo da eletro-eletrônica e atrai alunos matriculados em cursos técnicos e até mesmo em cursos universitários das Fatecs (Faculdades de Tecnologia do Centro Paula Sousa). Esses alunos de cursos técnicos e superiores ingressam nesse programa de Aprendizagem porque a instituição tem mais recursos tecnológicos para experimentos e praticagens que as escolas em que estudam no nível médio ou superior.
Os laboratórios são caracteristicamente locais para comprovação empírica de princípios científicos. Ao contrário das oficinas de mecânica em que atuam os alunos do programa anterior, os ambientes são pedagógicos e não emulam os ambientes de trabalho próprios da profissão (canteiros de obras, residências em construção, prédios, instalações industriais, etc.). Os alunos atuam em ambiente preparado especificamente para atividades de ensino. Essa solução é muito favorável para a aprendizagem de conceitos e princípios científicos, mas dista bastante dos locais de trabalho. Perguntado sobre a diferença entre os ambientes em que os alunos realizam tarefas nos dois programas, o docente declara que as atividades de laboratório preparam os alunos para as situações de trabalho a partir do conhecimento de princípios científicos que podem ser aplicados. Ele revela expectativa de que o saber mais genérico desenvolvido em laboratório possa ser transferido para situações concretas de trabalho.
Nas entrevistas com os alunos, predomina a informação de que eles desejam continuar estudos no nível universitário e que acham que o curso os ajudará a se prepararem melhor para exames de ingresso no ensino superior.
O programa, dada a sofisticação dos laboratórios, indica altos investimentos na formação de operários especializados. Mas, os aprendizes provavelmente não ingressarão no mercado de trabalho nas funções para as quais estão sendo preparados[41]. Como já reparamos, os alunos veem a Aprendizagem como uma oportunidade de estudos, não como preparação para uma profissão definitiva. Eles continuam a sonhar com estudos universitários.
Em entrevistas com educadores da área de educação profissional, a ida para a universidade sempre aparece como o destino mais desejável para alunos que estão cursando o ensino técnico. Os mesmos educadores, ao abordarem itinerários formativos, veem qualificação profissional e habilitação técnica apenas como fase numa educação que, para ser completa, necessariamente deve incluir a formação universitária. Esse modo de ver a relação entre educação e trabalho explica em parte o que acontece com a Aprendizagem. Esta, voltada para ocupações básicas, não é vista como uma forma de capacitação profissional para uma carreira que pode dispensar ida para a universidade.
Todas as observações reunidas sobre a Aprendizagem no Brasil mostram algumas tendências cujo conteúdo convém reiterar no fechamento desta seção:
- Os aprendizes, com dezesseis ou dezessete anos, estão matriculados pelo menos no segundo ano do ensino médio. Há um número bastante expressivo de aprendizes que já concluíram o ensino básico. E muitos aprendizes já estão matriculados em universidades. Esse perfil escolar dos aprendizes é muito diferente do perfil dos aprendizes dos anos de 1940 e 1950, nos anos iniciais da Lei de Aprendizagem. Com a universalização do ensino fundamental e avanço significativo das matrículas no ensino médio, os alunos de Aprendizagem nos dias de hoje poderiam cursar programas de Aprendizagem de nível secundário. Mas isso acaba sendo obstaculizado porque as ocupações sujeitas à Aprendizagem são todas básicas. Mas, mesmo para ocupações básicas, os Programas de Aprendizagem deveriam mudar muito (e muitos deles já mudaram) tendo em vista a elevação da escolaridade dos alunos.
- Há em outros países planos de Aprendizagem voltados claramente para capacitação de trabalhadores necessários ao desenvolvimento econômico e à reposição de quadros qualificados que deverão se aposentar. Essa é uma tendência que não se verifica no Brasil. Aqui, mesmo com a elevação do limite superior da Aprendizagem para vinte e quatro anos, o programa é visto sobretudo como mecanismo para incluir jovens no mercado de trabalho, pouco enfatizando a capacitação profissional.
- Do observado no item anterior decorre a constatação de que a capacitação no e pelo trabalho ainda é apenas um desejo no campo da educação profissional e tecnológica. Na Aprendizagem, raras são as empresas que desenvolvem planos sistemáticos de adolescentes e jovens nelas empregados por força de lei. Os aprendizes são repostos assim que um grupo termina seu período de trabalho. Raramente os aprendizes são efetivados depois de seu período de formação.
- Tendências observadas em outros países indicam que a procura por formações em profissões tradicionais que não requerem estudos universitários vem crescendo. E em tais países, parte dessas formações acontece via Aprendizagem. Mas, diferentemente do que acontece no Brasil, os programas de Aprendizagem em muitos países são pós-secundários. Cabe reparar, como se observou no item 1, que entre nós boa parte dos aprendizes já concluiu o ensino médio. E por essa razão seria mais consequente que muitos de nossos programas de Aprendizagem também fossem pós-secundários.
- A conclusão do item anterior sugere necessidade de mudar modos de ver a Aprendizagem no Brasil. Ela, como acontece hoje, não poderá ficar restrita apenas a ocupações básicas. Outros níveis da pirâmide ocupacional também deveriam ser considerados em formações que articulam o aprender no trabalho com o aprender em instituições educacionais.
- Abordagens que considerem a Aprendizagem como uma alternativa interessante de capacitação profissional mudariam o leque tradicional do que se considera adequado em termos da distribuição de níveis de cursos na verticalização do ensino em educação profissional e tecnológica.
Considerando as práticas de Aprendizagem observadas, concluímos que não há uma proposta pedagógica sólida para o aprender no e pelo trabalho. Apesar de lista de competências que os aprendizes devem desenvolver em seu trabalho nas empresas, não existe ainda uma pedagogia da Aprendizagem. Ainda predomina a ideia de que a formação mais consistente dos profissionais decorre de estudos escolares, não de atividades desenvolvidas em comunidades de prática. Este é um aspecto no qual é preciso avançar muito no país.
Em termos de nível educacional, a Aprendizagem que temos é equivalente a cursos de qualificação profissional. Os programas de Aprendizagem não se integram à estrutura de ensino. Ainda funciona como uma educação á margem do sistema. A partir dessa constatação e de informações sobre como se estruturam os programas de Aprendizagem em outros países, fica claro que é preciso adotar aqui a ideia de Aprendizagem escalonada. Com isso teríamos programas de Aprendizagem em diversos níveis. Talvez não possamos avançar tanto como o Reino Unido, onde é possível programas de Aprendizagem equivalentes a curso de pós-graduação. Mas, seria ideal de pudéssemos contar com um itinerário de Aprendizagem que incluísse a formação básica (a única hoje considerada), a formação de nível médio, e a formação de nível pós-secundário. Com um sistema assim seria possível incluir a Aprendizagem como oportunidade de formação que hoje só pode ser feita em programas exclusivamente escolares.
Tópicos especiais
Nos programas das instituições internacionais estudadas para estabelecer termos de comparação com o que se faz no Brasil em termos de educação profissional e tecnológica pareceram diversas propostas de educação que não conseguimos classificar de acordo com referências tradicionais. Por essa razão, elas foram reunidas aqui nesse capítulo que trata de tópicos especiais.
Hobby e Lazer numa instituição de educação profissional e tecnológica
Na leitura dos catálogos de cursos do Shefield College aparecem algumas vezes cursos que não têm como destino imediato o trabalho produtivo. São oportunidades educacionais classificadas com o rótulo Hobby & Leisure. A existência de cursos assim numa instituição de educação profissional e tecnológica é, até certo ponto, uma surpresa. Espera-se que instituições de tal natureza ofereçam cursos para capacitar pessoas para o trabalho ou para desenvolver conhecimentos tecnológicos e científicos vinculados ao trabalho. Por isso, cabe examinar ofertas com tal finalidade no college, pois elas acrescentam a possível portfólio de instituições de EPT uma forma de educação que associa trabalho e lazer. Seguem exemplos de tais cursos.
No área de hotelaria, o Shefield College, além de tradicionais cursos de capacitação profissional, oferece alguns programas para pessoas que gostam de produção alimentar, mas não pretendem necessariamente trabalhar em hotéis, restaurantes, confeitarias e padarias. Caking Decorating L1 é um dos cursos cuja categoria é definida como Hobby & Leisure. A formação oferecida pode ser de muita utilidade para profissionais, mas o programa tem como prioridade pessoas que querem aprender decoração de bolos por prazer, porque gostam desse tipo de arte. O curso é desenvolvido em aulas e práticas durante vinte e nove semanas, apenas nas segundas feiras e não exige qualquer pré-requisito. Curso com o mesmo nome e duração também é oferecido no nível L3 para pessoas que querem aprender técnicas avançadas.
Na área Creative & Digital, encontramos o Advanced Digital Photography. O programa com oito semanas de duração está voltado para pessoas que já conhecem fundamentos básicos de fotografia e querem desenvolver conhecimentos mais avançados. O programa inclui os conteúdos de uso avançado de câmaras, estudo avançado de iluminação, Adobe Photoshop, elaboração de portfólio, trabalho com projetos criativos breves. Mais uma vez, observa-se que o programa pode ser bastante aproveitável em termos profissionais, mas sua finalidade principal não é a de capacitação para o trabalho, é a de oferecer oportunidade de aprendizagem para quem fotografa por prazer. Por isso, não há pré-requisitos de ingresso. Na mesma área há um curso básico, Digital Photography. A finalidade do curso é descrita do seguinte modo no catálogo:
Muita gente possui uma câmara digital, mas será que sabe utilizá-la de acordo com todas as suas potencialidades? Nosso curso tem a finalidade de desmistificar o uso da câmara digital e permitir que o aluno produza imagens de qualidade das quais se orgulhará.
Essa introdução à fotografia digital pode até ser utilizada para fins profissionais, mas o que se pretende é oferecer oportunidade de aprendizagem para quem faz fotografia como hobby.
Em Design & Visual Arts há também cursos classificados como Hobby & Leisure. Um deles é o Fashion & Clothesmaking, um programa voltado para costura e noções gerais sobre moda. As aulas acontecem um dia por semana durante cerca de seis meses. Na mesma área, encontram-se também, na categoria Hobby & Leisure os cursos Pottery & Ceramics e Silversmithing & Metal Jewllery. O primeiro dura dezesseis semanas e é um curso noturno. O segundo também dura dezesseis semanas e não tem período determinado no catálogo. Ambos os cursos desenvolvem habilidades artesanais de produção de peças de cerâmica e de bijuteria. Não são profissionalizantes e, como acontece em todos os outros cursos voltados para atividades de lazer, não têm qualquer requisito de entrada, bastando interesse e entusiasmo para aprender.
A categoria Hobby & Leisure, utilizada pelo Sheffield College para designar alguns cursos organizados para atender a interesses de pessoas que querem apenas aprender sem necessariamente se capacitarem para o trabalho, sugere que a educação de trabalhadores não pode ficar reduzida a preparação para o trabalho e ou obtenção de certificados e diplomas de educação geral. Nos levantamentos feitos para o projeto de empregabilidade da Rodhia (CASALI , 1977), operários de fábricas revelaram interesse por cursos para aprender conteúdos que nada tinham a ver com seu trabalho, nem significavam continuidade de estudos escolares. Eles queriam simplesmente aprender conteúdos que lhes dessem certo prazer ou que lhes permitissem desenvolver um hobby. Desejos assim aparecem em falas de alunos de community colleges acompanhados por Mike Rose (2015). Segundo o educador americano, muitos alunos adultos querem apenas aprender algo de que gostam, sem necessariamente buscar educação que tenha finalidades utilitárias.
Cursos da categoria Hobby & Leisure do college de Sheffield sugerem timidamente uma alternativa de educação que deve ser mais explorada pelas instituições de educação profissional e tecnológica. Trabalhadores podem querer aprender a escrever poemas, a pintar, a cozinhar, a usar de modo mais seguro seus aparelhos digitais, a cultivar flores.
Educação continuada em San Diego: Curso para a família
No departamento de educação continuada em San Diego nem sempre os programas são estritamente profissionalizantes. Alguns deles podem cumprir dupla função, oferecer oportunidade de capacitação profissional, oferecer educação que pode ter utilidade para a vida cotidiana do trabalhador. Esse é o caso do programa Child Development 1 e 2. Convém reproduzir parte das informações encontradas no catálogo (SAN DIEGO CONTNUING EDUCATION, 2016) sobre esse programa:
Este programa fornece informações fundamentais de conhecimento profissional para pais, pais prospetivos e babás. Os cursos oferecidos oportunizam desenvolvimento pessoal e profissional, interação com outros pais e profissionais de desenvolvimento infantil, e experiências práticas de cuidados de crianças.
O certificado (certificate) oferece experiência educacional de qualidade que irá preparar os alunos para o nascimento de seus filhos e cuidados de paternidade/maternidade, irá fornecer conhecimento básico sobre desenvolvimento infantil, irá oferecer aos alunos oportunidade para se encaminharem para um Associate Degree [ um curso universitário] em desenvolvimento infantil ou para ingressarem no mercado de trabalho como cuidadores de crianças.
O programa é constituído pelos seguintes cursos[42]:
- Family Home Day Care Training.
- Family Relations.
- Newborn to 12 Months.
- 12/23 Months/Walking-Talking.
- Outdoor Classroom.
- Foster Parenting.
- Adoptive Parenting.
- Families Learning Together.
- Family Communication.
- Emerging Topics-Parent Ed. (p, 42)
A maior parte dos cursos é composta por tópicos de educação familiar que procuram repassar, para pais e responsáveis por crianças, conhecimentos sobre educação e cuidado infantil. Há aqui um paralelo com curso da área de economia doméstica oferecido pelo Sheffield College. A preocupação maior não é a de formar educadores profissionais, mas a de oferecer formação para a educação no lar. A proposta parece estranha como inciativa de ensino numa instituição de educação profissional. Ela é uma proposta de educação dos trabalhadores, mas não é necessariamente capacitação para o trabalho. Por outro lado, o catálogo ressalta que os conhecimentos desse programa são um primeiro passo para alunos que se interessem por curso superior de educação infantil, um Associate Degree desenvolvido pelo Miramar Community College. A existência de programa como esse sinaliza um caminho de responsabilidade social das instituições de educação profissional que convém explorar em propostas de verticalização do ensino
Programas especiais no Seneca College
No Seneca Colege há um categoria de cursos que merecem atenção. São os Special Interest Programs. Vamos exemplifica-los com o Interior Decorating for Personal Application. O programa é assim descrito:
Este assunto introduz os alunos no campo da psicologia das cores, esquemas de cor, planejamento de interiores, layouts, estilos de móveis, tecidos, tratamento do piso e da parede, e princípios de design, O programa é planejado exclusivamente para interesses pessoais, o curso não está organizado para fins profissionais.
O programa é constituído por um só curso, Interior Decorating.
Ao ler a descrição desse programa de Special Interest estabelecemos de imediato ligação entre ele e os cursos classificados como Hobby & Leisure do Sheffiel College. No Seneca College reconhece-se também que centros de educação profissional podem desenvolver cursos que veiculam técnicas de execução, em áreas para as quais a instituição oferece diversas oportunidades de formação, exclusivamente para atender a interesses de trabalhadores que pretendem aprender conteúdos de trabalho apenas por prazer pessoal. Essa possibilidade não é irrelevante e já registramos que antiga investigação da Rhodia junto a seus operários mostrou que os empregados da empresa, além de cursos relacionados com seu trabalho, desejavam aprender conteúdos que os ajudasse a se desenvolverem culturalmente.
Segue mais um exemplo classificado como Special Interest: Floral Design for Personal Application and Gardening. O programa oferece um grande número de cursos sobre arranjos florais para quem quer aprender por interesse pessoal, não por interesse profissional. Entre os cursos oferecidos, destacamos:
- Floral Decor.
- Floral Holiday Glamour.
- Fall Gardening.
- Decorating With Flowers.
- Flowers for Events.
Há outro tipo de programas, aqueles conveniados com organizações sociais para credenciar os formandos com algum título que pode ter desdobramentos profissionais ou que correspondam a certos desejos pessoais. Um desses programas é o Tea Sommelier Training, descrito da seguinte maneira no portal do college:
Em colaboração com o Tea and Herbal Association of Canada, o Seneca College está oferecendo treinamento para quem quer se tornar um Certified TAC TEA SOMMELIER, bem versado em todos os aspectos relacionados com o consumidor.
Os alunos aprendem história do chá, métodos de processamento, padrões de classificação e terminologia da área. Eles irão aplicar seu conhecimento de como associar chá com comidas, recomendando e desenvolvendo menus de chá para ambientes de varejo de alimentos. Eles irão experimentar uma grande variedade de chás a aprender a classificar a bebida, distinguindo chás de diversas partes do mundo.
Depois que concluírem o programa com bom aproveitamento os estudantes poderão fazer o teste da Tea and Herbal Association of Canada para receberem um Certified TAC TEA SOMMELIER professional.
O programa inclui os seguintes cursos:
- Introduction to Tea.
- Tea Regions of the World.
- Tea Sensory Development
- Tea Garden Management.
- Tea Preparation and Consumption.
- Menu Design and Food Pairing for Tea.
- The Business of Tea.
O programa não tem qualquer rótulo escolar. Ele é, de certa forma, um preparatório para interessados em obter a certificação de sommeliers da Tea and Herbal Association of Canada. A proposta lembra as associações com Ongs que são praticadas na oferta de certos cursos pelo Sheffield College. Mas, no college inglês cursos assim receberiam alguma classificação, provavelmente de nível 3 (pós-secundário avançado) ou até mesmo nível 4 (superior).
Outra área de programas sem classificação escolar é constituída por capacitações vinculadas a reconhecimento ou licenciamento para exercício de ocupação regulada por algum órgão de governo. Esse é o caso, por exemplo, do programa Security Guard Training, que tem apenas um curso, é descrito como segue:
Este curso segue as orientações do Ministério da Segurança para o Licenciamento de Guardas de Segurança em Ontário. Os alunos irão aprender sobre segurança e as habilidades fundamentais para executarem seu trabalho profissionalmente, efetivamente e de acordo com a lei. […] Depois de terminarem o curso os alunos serão elegíveis para se inscreverem no Ministério da Segurança para se tornarem guardas licenciados na província de Ontário.
Há outros programas como esse, preparando candidatos para trabalhos que exigem licenciamento de órgãos governamentais.
Associação entre trabalho e educação
Uma das modalidades de programas oferecidos pelo Sheffield College articula cursos e experiência de trabalho com processos de avaliação para obtenção de reconhecimentos de competência profissional nos termos do estabelecido pelo sistema de NVQs (National Vocation Qualifications). Essa é uma particularidade da estrutura do ensino profissional no Reino Unido que precisa ser explicada. Para tanto, entendemos que análise de um exemplo pode clarear o assunto.
Na área de Business Services & Enterprises, o college do Norte da Inglaterra oferece, entre outros, um programa que é chamado de Management L3 (Gestão de nível 3). O curso é visto como primeiro passo para quem pretende exercer no trabalho funções de supervisão ou gestão. A formação é credenciada e reconhecida pelo ILM (Institute of Leadership and Management). Além disso, o curso está estruturado para dar apoio aos alunos na obtenção de certificado de competência, no nível 3 dos NVQs, em management.
Na descrição geral do curso, o catálogo do college (SHEFFIELD COLLEGE, 2018c) explica:
O diploma de nível 3 do ILM em gestão (Qualificação Combinada) é ideal para pessoas em buscam de seu primeiro degrau em gestão e para aquelas que já têm alguma responsabilidade gerencial. Essa combinação de qualificação baseada em conhecimento e competência irá alicerçar e desenvolver novas habilidades e aperfeiçoar a carreira em gestão. A qualificação também faz parte de uma Aprendizagem (aprendizagem corporativa)23 de Management ILM 3. Os candidatos deverão se encarregar de um leque de tarefas de gestão num trabalho desejável. É uma qualificação baseada em competência, o que significa que os estudantes devem ter um emprego adequado para gerar evidência relevante para sua avaliação. O curso é flexível e começa em data disponível para os estudantes que podem começar o programa a qualquer momento.
Os arranjos do curso não são apenas uma formalidade que associa a educação a ocupações profissionais. Ao assegurar que a formação será articulada, o college organizou um sistema de tutoria muito interessante. Convém aqui reproduzir a descrição feita no catálogo de cursos do Sheffield College para este Management L3 (THE SHEFFIELD COLLEGE, 2018c):
Avaliação de competência. Isso ocorre por meio de reunião individual com umassessor – as reuniões duram aproximadamente uma hora, e podem ser marcadas para dias e períodos convenientes para ambas as partes. As reuniões são realizadas para fornecer assistência e apoio aos candidatos que estão organizando portfólios de evidências de domínio de competências, planejando o trabalho que será assumido e as avaliações que serão realizadas. Os candidatos agendam sessões adequadas para eles – normalmente a cada 3 ou 4 semanas. O assessor irá também realizar visitas para observar o candidato no local de trabalho e avalia-lo in loco, acrescentando informações às visitas tutoriais.
A descrição de apoio do college nas avaliações de competência no âmbito dos NVQs mostra uma abordagem interessante entre educação e trabalho. O curso aproxima a formação de práticas avaliativas no plano ocupacional. Em que pese possível crítica ao sistema de competência no Reino Unido, a medida aponta uma caminho educacional que deve ser olhado com atenção. Os alunos do curso buscam uma carreira no mundo do trabalho. E eles têm para tanto uma assistência individual que lhes ajuda a planejar sua formação. E essa assistência não é eventual. Ela acontece como uma prática constante durante todo o curso.
É bom relembrar que a avaliação de competências praticada no Reino Unido privilegia observações do candidato realizando tarefas em locais de trabalho. Além disso, os candidatos podem também apresentar evidências de domínio de saberes profissionais por meio de portfólios. E o college assiste os alunos em técnicas de organização de portfólios. Há aqui um ponto que pode ser considerado em termos de avaliação e reconhecimento de competências. O tratamento oferecido pelo Sheffiled College aponta para um trabalho educacional que não fica restrito a atividades de sala de aula. Os encontros sistemáticos e individuais com tutores são uma prática assemelhada aos encontros com orientadores em programas de pós-graduação. Mas, é preciso notar que, no caso do curso Management L3, os alunos são estudantes do que chamaríamos aqui de um curso técnico.
Outra particularidade do curso é sua condição de programa credenciado pelo ILM (Institute of Leadership and Management), uma organização que agrega profissionais no campo da gestão. Nesse, como em muitos outros casos, o college é credenciado para oferecer um programa cujo desenho original é proposto pelo instituto. Essa situação assinala uma grande diferença entre reconhecimentos de cursos no Reino Unido e no Brasil. Aqui o reconhecimento é sempre uma atribuição de órgãos públicos da educação. No Reino Unido, o reconhecimento pode ser delegado a organizações sociais que representam categorias profissionais ou áreas da economia.
Cabe uma última observação. Management L3 é um programa flexível. Dura em média dois anos, mas pode ser abreviado ou alongado dependendo da progressão do aluno nos estudos. A lista de conteúdos que os alunos devem estudar é bastante longa, com um núcleo obrigatório e duas unidades com ênfase diferentes no campo da administração. Depois de passar pelo núcleo comum, o aluno escolhe uma ou outra unidade.
Boa parte dos cursos oferecidos pelo Sheffield College destina-se a alunos egressos de estudos obrigatórios no ensino básico britânico. Este, porém, não é o caso do curso em análise. Um dos pré-requisitos para ingresso é estar trabalhando em gestão, mesmo que seja em função básica. Essa é outra característica que não encontramos em nossos cursos técnicos ou pós-secundários de nível médio.
Com as mesmas características descritas atrás, o college desenvolve um programa chamado Management L4. O nível de tal programa é universitário, dura dois anos e pode ser comparado ao nosso tecnólogo.
Em linha parecida, o college oferece um programa de Aprendizagem, sem exigir dos alunos pré-requisitos de experiência prévia em gestão. Para aprendizes o programa segue o padrão de aprendizagem corporativa que o college adota em outras áreas ocupacionais. E diferentemente dos programas anteriores, esse programa de não tem sessões de tutoria, nem está vinculado ao ILM. Na continuidade, a instituição oferece outro programa de Aprendizagem , Management Apprenticeship L4, universitário e com estrutura similar à aprendizagem corporativa imediatamente inferior.
Educação Cooperativa
O Seneca College pratica uma organização curricular muito interessante que é bastante comum em cursos superiores no Canadá. Trata-se da educação cooperativa. Um estudo sobre educação cooperativa no Canadá, realizado por uma instituição brasileira a partir de contatos com a Universidade de Waterloo (SENAC, 1998), há a seguinte informação sobre educação cooperativa:
Um dos tópicos do evento “Desenvolvimento de Recursos Humanos: O Modelo Canadense”, promovido pela OIT, de 14 a 22/09/98, foi Educação Cooperativa. Esta modalidade de organização do processo educacional foi exemplificada a partir da experiência da Universidade de Waterloo.
A ideia de educação cooperativa surgiu em 1906. Ela envolve basicamente um “currículo” que alterna fases acadêmicas com fases de trabalho, resultando numa formação mais sintonizada com as demandas profissionais. Na Universidade de Waterloo, o sistema de educação cooperativa funciona desde 1957. Hoje, cerca de 9000 estudantes daquela universidade são alunos de educação cooperativa. O sistema envolve basicamente um plano de estudos dividido em fases sucessivas de quatro meses cada, intercalando períodos acadêmicos com períodos de trabalho. Num curso de engenharia, por exemplo, Waterloo utiliza um quadro de estudos com seis períodos de trabalho e oito períodos acadêmicos. (p.1)
No Seneca College, boa parte dos programas de nível superior exige um período de trabalho intercalado entre semestres acadêmicos, com duração mínima de 420 horas. Tal prática é obrigatória em dezoito diferentes programas, entre os quais os bacharelados em comércio, bacharelados em tecnologia, bacharelado em educação infantil. A mesma prática é opcional em cinquenta e dois casos, entre os quais os programas de cosmetologia e de engenharia eletrônica.
A educação cooperativa existente no Canadá e praticada pelo Seneca College sugere caminhos interessantes de associação entre trabalho e educação. Ela não se confunde com estágio. O que propõe é um ou mais períodos de trabalho que se intercalem com períodos acadêmicos. A suposição por trás da proposta é a de que o aluno aprenderá. Convém aqui citar mais um trecho do documento de trabalho já mencionado no início desta seção (SENAC SP, 1998:
Em cursos que procuram capacitar pessoas para o trabalho, as vantagens da educação cooperativa são evidentes.
Entre outras coisas, o sistema:
- aproxima as empresas da instituição educacional;
- proporciona experiência profissional durante o curso;
- articula de modo concreto trabalho e aprendizagem;
- garante uma atualização constante dos conteúdos curriculares;
- sugere diversas possibilidades inovadoras de organização das situações de ensino-aprendizagem;
- dinamiza o processo educacional a partir das experiências de trabalho dos alunos;
- cria, nas empresas participantes, um clima de inovação nos setores que contam com trabalhadores-estudantes;
- traz para as empresas participantes informações atualizadas e imediatas, elaboradas por pesquisadores e especialistas;
- facilita a seleção de talentos nas empresas;
- forma jovens com experiência diversificada;
- facilita avaliação constante dos cursos oferecidos;
- desperta nos docentes o interesse por uma atualização constante. (p. 2-3)
Verificamos que no Sheffield College também há práticas interessantes para associar trabalho e educação. Na instituição britânica não existe o formato de educação cooperativa como o que se pratica no Canadá. Mas, em diversos cursos exige-se associação de trabalho e educação em tempos simultâneos, pois os alunos, para realizarem seus estudos, precisam estar trabalhando em ocupação relacionada com o curso, seja em tempo integral, seja em tempo parcial, seja em atividade voluntária.
A educação cooperativa observada no Seneca College e a associação entre trabalho e educação observada n Sheffield College mostram caminhos que podem dar maior concretude a uma educação que integre o trabalho em seu processo formador. As duas experiências sugerem caminhos que podem ser considerados em aperfeiçoamento da verticalização do ensino.
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[1] Mesmo nas novas profissões relacionadas com as ciências da computação, o uso da escolaridade e nível superior para garantir acesso a posições de poder na hierarquia ocupacional, na mesma direção que Noble indicou no caso da formação dos engenheiros mecânicos não está ausente, conforme observa Wresch (1996).
[2] Este relato está baseado em entrevista realizada no âmbito de um estudo realizado sobre resultados educacionais do PRONATEC (BARATO, 2017a). A instituição onde Chico fez o curso de jardinagem indicou o nome dele para entrevista, uma vez que o mesmo exemplifica percursos de estudo e vida de muitos trabalhadores adultos que tiveram de deixar a escola muito cedo. Retomamos aqui a entrevista com esse trabalhador porque a volta dele aos estudos é um objeto interessante para reflexões sobre inclusão/exclusão educacional. Além disso, Chico incorpora em sua história pessoal exemplos de como aprendizagens no trabalho podem ser transformadas em novas oportunidades de capacitação profissional, mesmo para uma ocupação sobre a qual o trabalhador jamais havia pensado antes.
[3] Este é um padrão que Don Lorenzo Milani observou na Itália dos anos de 1950 (MARTI, 1977). Filhos de camponeses e operários deixavam a escola muito cedo porque precisavam trabalhar. Se continuassem na escola fracassariam. E sua relação com o trabalho era a de uma iniciação precoce, determinada por necessidades econômicas de suas famílias. Seus pais aceitavam tal situação como natural, julgando que seus filhos não eram suficientemente inteligentes para continuar os estudos. Além disso, o cuidado com a terra e animais exigia mais braços, e as finanças das famílias exigiam reforço que poderia decorrer do engajamento das crianças no trabalho.
[4] Cabe no caso do Chico, durante todo o tempo em que ele esteve trabalhando em atividades ferroviárias, o conceito de trabalho abstrato nos termos descritos por Willis (1991) que será comentado oportunamente neste estudo. As atividades que ele desempenhava não exigiam qualificação nem escolarização. Eram serviços diversos, mas intercambiáveis, dependentes de uma cultura operária e de educação formal básica. Ou, em outas palavras, eram atividades que dispensavam educação profissional.
[5] A conclusão do ensino médio não indica necessariamente passagem por uma experiência educacional de muita riqueza cultural e de instrumentação para o exercício da cidadania. O certificado de conclusão do ensino médio é muito mais uma credencial a preencher em termos de requisitos em seleções para o emprego. A escolarização no caso funciona muito mais como fator para diminuir o número de possíveis candidatos que indicador de saberes necessários para o exercício da ocupação alvo.
[6] O limite superior da idade dessa população que se vê obrigada a abandonar os estudos precocemente varia bastante, dependendo de pressupostos adotados por projetos de estudo ou de intervenção para encaminhar medidas de apoio aos trabalhadores. O limite de trinta e nove anos foi adotado, por exemplo, pela Secretaria de Emprego e Trabalho no Estado de São Paulo no Programa de Qualificação Profissional desenvolvido em 2009/10.
[7] Na turma em que Chico fez o curso de jardineiro, apenas seis alunos chegaram até o final, outros dezesseis ficaram pelo caminho. Segundo o entrevistado, os alunos desistentes “não tinham paciência para cuidar de plantas” e deixavam de cumprir as tarefas que recebiam para no plantio, na poda, na recuperação de plantas etc.
[8] Há um pressuposto de que a estrutura e organização do ensino, determinada por tradições escolares, é o caminho a seguir em atividades de formação profissional. Isso resulta numa educação profissional escolarizada, muito distante de percursos de aprendizagem do trabalho (BARATO, 2017b). Analisar a estrutura do ensino não é o objeto deste estudo, mas a questão da escolarização da educação profissional é uma questão importante aqui porque é preciso considerar ofertas de capacitação profissional tendo sempre o cuidado de verificar como acontecem as relações de aprendizagem do trabalho, como o saber do trabalho sugere caminhos para o seu ensino.
[9] Moralismo e assistencialismo que marcam os inícios da formação profissional sistemática desvinculada das corporações de ofício parece serem caraterísticas que nascem de crenças das classes dirigentes sobre o sentido de uma educação voltada para o trabalho manual. Fica a pergunta de se essa era também a perspectiva de mestres de ofício e dos pais que encaminhavam seus filhos para aprendizagens em oficinas. Aparentemente a visão disciplinadora da formação profissional é um desejo das classes dirigentes que veem no trabalho um caminho para amoldar os trabalhadores a valores morais que não são necessariamente os seus. Há que se perguntar se o desejo disciplinador resulta da vontade de oferecer uma educação para a submissão. O instituto de aprendizagem nas corporações de ofício não tinha ênfase moralizante na mesma direção. Para mestres e aprendizes o trabalho era uma arte, não um modo de ocupar as pessoas para que estas não andassem pelos caminhos da transgressão. A proposta de uma educação domesticadora não nasce no meio das classes trabalhadoras, mas no mundo das elites que se pretendem esclarecidas. Esse é um aspecto que não aparece em críticas à educação profissional. E ao ignorar o uso ideológico da educação profissional, os críticos acabam deixando de lado os valores intrínsecos ao trabalho e a história da formação profissional antes que esta fosse assumida pelos sistemas educacionais escolares. […]
[10] O termo dignas talvez seja muito forte. Mas ele retrata como os elaboradores de políticas viam (e talvez ainda veem) o trabalho, sobretudo o manual.
[11] Os aspectos sociais que levam o sistema escolar a elevar o nível de formação de muitas ocupações não costumam ser considerados. As explicações sobre a elevação do nível de formação geralmente sugerem razões de ordem tecnológica e científica. Sugerem uma contínua complexificação do trabalho, mesmo quando o trabalho foi simplificado.
[12] Situações de incongruência entre formação escolar e emprego podem levar as categorias profissionais a tentarem assegurar seu ingresso no mercado de trabalho em função compatível com sua formação por meio de legislação que impõe barreiras ao ingresso na profissão para trabalhadores que não passaram pelo curso formalmente reconhecido como instância necessária de capacitação para aquele trabalho. Isso talvez venha a acontecer com a profissão de cozinheiro em sua associação com a formação em curso superior de gastronomia.
[13] Esse desdobramento está relacionado com a oferta de cursos livres para a população que não pode ou não dispões de meios para frequentar instituições tradicionais de EPT. Nessa direção, convém considerar estudo feito por Vitor Paro (1984) sobre o ensino livre no Estado de São Paulo.
[14] O dirigente de uma importante instituição de EPT chega a dizer que cursos para pessoas carentes não deveriam ter os mesmos recursos que os utilizados em cursos de maior prestígio. Segundo ele é preciso encontrar um modelo de educação para os mais carentes que não exija muitos investimentos.
[15] Essa observação sobre maquiladoras é resultado de acompanhamento do trabalho de operários em maquiladoras de Tijuana, na fronteira México/EUA, acontecido no Programa de Estudio y Desarollo Profesional , promovido pelo International Training Center da San Diego State University em 1995.
[16] Segundo Noble (1977) os institutos tecnológicos foram criados no EUA para oferecer formação universitária compatível com demandas imediatas do mercado. Tal demanda não era atendida pelas universidades tradicionais e estas se recusavam a criar cursos voltados para a capacitação profissional voltada para a indústria que vinha se desenvolvendo então no país. A solução foi a de criar institutos tecnológicos. O mais famoso deles, O MIT-Massachussets Institute of Technolgy mudou muito desde aquela época e é hoje uma instituição conhecida mais por sua excelência acadêmica do que pela preparação de engenheiros voltados para tarefas de execução.
[17] O estudo de Gamble, abordando a formação de marceneiros na África do Sul, examina proposta de uma pedagogia baseada em competências que, na verdade, era desenvolvida com base nas relações mestre/aprendiz. A pedagogia supostamente moderna ficava no papel e nos materiais didáticos que tentavam converter conhecimento (tácito) de processos em conhecimento proposicional (explícito e verbal). Em investigação anterior (BARATO, 2015) encontramos caso que também merece registro; documento orientador de um curso técnico de prótese dentária recomendava desenvolvimento de projetos como metodologia mais adequada para a aprendizagem de técnicas de trabalho. No curso, porém, continuava a persistir uma orientação voltada para obras em produções oficinais, em relações mestre/aprendiz.
[18] Vale relembrar aqui observação já registrada sobre a constatação feita por Noble (1977) de que as engenharias não enfatizavam saber técnico e tecnológico, mas capacidades gestoras. O documento do MEC sugere que ciência e tecnologia relacionadas com o trabalho são aspectos relevantes nas engenharias, Mas, o mesmo documento ignora o movimento histórico de utilizar o ensino superior na área tecnológica para formar elites que assumirão a gesto dos processos de trabalho, em vez de se engajarem diretamente na produção.
[19] Embora a referência possa ser repetitiva, convém registrar como Trevisan (2001) descreve os mesmos níveis. Level 1 – o trabalhador possui competência para desenvolver algumas atividades de rotina dentro do conjunto de atividades englobadas por aquela função. Level 2 – o trabalhador possui competência e conhecimento para exercer com “relativa autonomia” as atividades daquela função em uma variedade de contextos, e sua formação lhe permite trabalhar em grupo. Level 3 – o trabalhador possui competência para exercer um amplo conjunto de atividades referentes àquela função, mesmo as complexas e não-rotineiras, e sua formação lhe permite exercer com autonomia funções desprovidas de maior complexidade. Level 4 – o trabalhador possui competência para exercer todo tipo de atividade relativa àquela função, em diferentes contextos e um “substancial grau de responsabilidade e autonomia” para exercer posto que envolva alocação de recursos. Level 5 – o trabalhador possui competência prevista no nível 4 e formação para analisar, estabelecer “diagnóstico de situação”, bem como exercer funções de planejamento e avaliação de desempenho. (p. 203)
[21] Todos os textos exibidos excediam em muito o número máximo de linhas (oito) que é aconselhável projetar em cada tela de ppt. Essa era uma das razões pela qual os alunos não revelavam qualquer interesse em ler oque estava escrito. Na verdade, roteiros como o apresentado, são muito mais um guia de exposição para o docente que um recurso de comunicação para os alunos.
[22] Num curso de Técnico em Design de Interiores, observado em instituição catarinense, a projeção de conteúdos via ppt foi ainda mais dramática que essa observada num curso do PROEJA. A professora projetou segmentos integrais cópia de itens do plano de curso, apresentando definições detalhadas de todas as competências que as alunas deveriam aprender na unidade que começava naquele dia. Além da massa de texto apresentado ser muito grande (em média vinte linhas por tela), a linguagem técnica de planos de curso era completamente estranha e até inacessível para as estudantes. E tal exposição durou uma hora e meia, sem interrupções, sem perguntas.
[23] É interessante notar que as ofertas de PROEJA nos Institutos Federais costumam acontecer em cursos nos quais a associação entre capacitação para o trabalho e aprendizagem de ciência não é muito exigente. Nas instituições predominam cursos como os de cozinha, padaria, secretarido, eventos, logística, cuidados de saúde. Por outro lado, rareiam ofertas em que as ocupações exigem conhecimentos sólidos de física e química.
[24] Essa questão é retomada em análise que fazemos a partir de observações em cursos técnicos para adultos (PROEJA) que voltam à escola depois de a terem deixado há muito empo
[25] No mesmo projeto de estudos sobre o PRONATEC entrevistou-se um trabalhador (Chico) que também foi considerado caso de sucesso do programa. Esse trabalhador, ferroviário durante grande parte de sua existência, buscava trabalho depois de duas fases de desemprego. Foi orientado a fazer um curso do PRONATEC. Ofereceram-lhe vaga num curso de formação de jardineiros. Ele aceitou. Depois do curso foi contratado por empresa que prestava serviços em parques da prefeitura. Chico esteve como trabalhador terceirizado em tal empresa por um ano e meio. Depois disso, Chico foi contratado por ua empresa multinacional para cuidar dos jardins de um imenso entreposto comercial. No local ele coordena atividades de outros quatro jardineiros. Chico, ao mesmo tempo em que fazia o curso de jardineiro, concluía, via EJA, seu ensino médio. Além disso, depois de formado em jardinagem e recebido certificado de conclusão do ensino médio, ele fez, também pelo PRONATEC, curso técnico de segurança no trabalho. Diferentemente da camareira de Campinas, o jardineiro viveu toda sua vida numa grande cidade. Além disso, sempre participou de movimentos de sua igreja e de grupos político no bairro em que mora. Ele traz para a escola um saber que pode ser reelaborado na direção esperada pelos educadores.
[26] Ensino à distância para formar profissionais de cozinha é certamente uma solução que deveria ser mais discutida. Os alunos, no caso, não aprendem em ambientes profissionais e realizam tarefas de execução em suas cozinhas caseiras. A aluna entrevistada percebe tal limitação e por isso busca uma solução num curso técnico presencial. Esse achado merece registro.
[27] Apesar de semelhanças com a co-op education existente no Canadá, a exigência de engajamento prévio do aluno em ocupação característica daquilo que ele vai estudar apresenta uma alternativa de associação entre trabalho e educação que tem certa originalidade. No caso, a experiência cotidiana de trabalho é um elemento indispensável de aprendizagem. Os cursos são planejados levando em consideração tal circunstância.
[28] Necessariamente o termo engineer em inglês não designa profissional formado em curso superior. Às vezes, como é o caso aqui, o termo pode designa profissional que trabalha na área de engenharia, mas não necessariamente um engenheiro no sentido que o termo é utilizado em português.
[29] O termo Top Up designa continuidade de estudos para quem já possui algum título acadêmico de nível superior.
[31] Cabe reparar que neste estudo, acompanhamos programas de Aprendizagem do setor terciário da economia (comércio e serviços) e notamos que no mesmo há dificuldades para desenvolvimento de cursos orientados para capacitar os alunos para uma ocupação específica. É provável que o uso de modelos tradicionais para conduzir programas de Aprendizagem no setor terciário esteja na raiz do problema. Além disso, como veremos à frente, no caso brasileiro as ocupações sujeitas à Aprendizagem em comércio e serviços são muitas vezes de trabalho semiqualificado, o que implica em conteúdos técnicos e científicos muito limitados na capacitação de trabalhadores.
[32] Em diversos encontros que mantivemos com educadores sobre Aprendizagem, as vantagens de uma estrutura curricular que associa o aprender no trabalho com o aprender em ambientes escolares não emerge com a devida importância. E em atividades escolares para aprendizes, notamos insistência em apresentar a pedagogia de projetos, desconhecendo a experiência de fazeres no trabalho que os estudantes poderiam trazer para a arena escolar. Tudo se passa como se o trabalho dos aprendizes nas empresas não fosse uma oportunidade educacional importante. Isso talvez se explique pelos entendimentos sobre aprendizagem que privilegiam mais a questão de oferta de trabalho para jovens carentes que o modalidade de educação muito especial que é a de associar o saber do trabalho elaborado em comunidades de prática com o saber sistematizado em práticas desenvolvidas de acordo com as tradições escolares.
[33] As considerações dos canadenses despertam algumas considerações sobre nossa Aprendizagem. Primeira: nossa Aprendizagem capacita para uma ocupação que garanta ingresso numa carreira? Segunda: jovens com ensino básico completo ou quase completo encontram na Aprendizagem oportunidade para se capacitarem em ocupações intermediárias em vez de básicas? Cabe reparar que a educação profissional em Sheffield, por exemplo, privilegia capacitação profissional em níveis intermediários, não nos básicos, Aprendizagem incluída. Terceira: por que nossos programas de aprendizagem não incluem de maneira clara formações técnicas (as formações técnicas não estão em consonância com a CBO?)? Quarta: custaria muito para SENAI, SENAC e IFs ter aprendizagens equivalentes aos cursos técnicos? Quinta: as empresas desenvolvem programas de aprendizagem pensando em desenvolver trabalhadores para seus próprios quadros?
Essas questões serão retomadas quando examinarmos especificamente a Aprendizagem no Brasil
[34] Esse é um aspecto que não se discute no Brasil. Ao que parece, a Aprendizagem em nosso país não é vista como uma forma de educação alternativa, mas apenas como oportunidade para que jovens possam ter assegurado seu acesso ao mercado de trabalho por alguns anos.
[35] Esta constatação não descreve apenas uma característica canadense. Entre nós também o sistema educacional está voltado para o ensino superior.
[36] Nesta nota consideramos paralelo que pode ser feito entre o que se observa no Canadá e o que acontece no Brasil. Os estudantes que não chegam à universidade são vistos como fracassados e terão dificuldades para conseguir emprego (os que não fizeram cursos técnicos não têm habilidades que facilite seu ingresso em funções que exijam capacitação profissional, e os estudantes que fizeram bons cursos técnicos terão que se acomodar no mercado em ocupações muito inferiores àquelas para as quais foram preparados).
[37] Vale reparar que não temos uma pedagogia da Aprendizagem. Os documentos legais sobre ela preocupam-se com os cursos que serão desenvolvidos nas escolas, nada dizem sobre o processo educacional que acontece no e pelo trabalho. Este é um campo que merece mais investigação.
[38] Este é um modo de organizar a Aprendizagem que poderia ser utilizado para a área de hotelaria e restauração no Brasil, admitindo numa mesma turma de aprendizes alunos engajados em diferentes ocupações em hotéis e restaurantes, tendo na escola conteúdos comuns a toda a área e eventualmente algum conteúdo próprio do ofício para o qual estão se preparando.
[39] É interessante confrontar esse objetivo com o aprender a ser trabalhador (a dimensão ontológica da Aprendizagem numa comunidade de prática).
[40] Não houve oportunidade de investigar a possibilidade de aceitar aprendizes em empresas que não têm obrigação legal de fazê-lo. Do ponto de vista pedagógico, a medida poderia ser bem interessante, pois em gráficas menores a capacitação em moldes parecidos com os praticados pelas corporações de ofício pode ocorrer com maior participação dos aprendizes em produção de obras.
[41] Essa tendência vem conhecendo mudanças significativas nos Estados Unidos. Cresce no país procura por formações voltadas para capacitar operários especializados em ocupações que demandam conhecimentos sólidos dos trabalhadores e autonomia dos mesmos na realização de atividades próprias do ofício. Em matéria de março de 2018, a National Public Radio (a rede pública de rádio dos Estados Unidos), fez extensa reportagem sobre jovens que estão procurando centros de formação profissional voltados para capacitação de operários especializados em vez de irem para as universidades. A reportagem apresenta dois motivos para tal decisão: salário e satisfação pessoal. A questão já fora abordada por Matthew Crawford (2009) que em obra que mostra que o trabalho de mecânicos, além de trazer muita satisfação pessoal para o trabalhador, é muitas vezes mais desafiante que o trabalho supostamente intelectual dos profissionais de colarinho branco.
[42] Cabe reparar que o termo course, que traduzimos aqui por curso, tem nas concepções curriculares americanas e canadenses o mesmo sentido que atrabímos aqui a disciplinas ou matérias. Poderíamos ter traduzido course por disciplina, mas isso talvez não fosse adequado pois course tem o significado de algo que se aprende de modo independente e que acaba sendo aproveitado como crédito para continuidade de estudos ou aproveitamento de estudos em outras formações.