Archive for janeiro \17\+00:00 2022

Corpo e mente: par equivocado

janeiro 17, 2022

Os pares antitéticos mente/corpo, ou, na versão materialista, corpo/cérebro, fazem um mal danado para nosso entendimemto sobre o saber. Há várias obras que buscam mostrar que as coisas não se passam desta forma. Uma dessas obras é The World Beyond Your Head, de Matthew Crawford. Dela, trago o seguinte trecho em tradução ligeira:

>>> Pensamos através do corpo. A principal contribiçao desta escola de pesquisa psicológica (Embodied Cognition) é a de colocar a mente de volta no mundo, ao qual ela pertence, depois de séculos sendo presa em nossas cabeças. A fronteira de nossos processos cognitivos não pode ser definida pela superfície de nosso crânio, nem, de modo mais geral, de nosso corpo. Os processos cognitivos estão distribuídos pelo mundo em que agimos (p. 51)

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Imitação e aprendizagem do fazer

janeiro 15, 2022

Educação profissional. Aprender por imitação?

Acho que a velha explicação de que aprendemos o fazer por imitação precisa ser reexaminada. Este é um tema que quero estudar mais. Por enquanto, produzo aqui um textão que mesmo que não seja lido por ninguém, é uma iniciativa que me ajuda a aprender e/ou a explicitar coisas que sei mas andam dormindo nalguma gaveta da minha memória.

Se tiver tempo e coragem, leia…

É comum dizer que no campo do trabalho manual, assim como em práticas esportivas, as pessoas aprendem por imitação. Diz-se que aprendizes observam o que o mestre ou perito faz e começam a imitá-lo. Esta é um visão que coloca as habilidades no campo motor e sugerem um aprender mecânico ou, se quiserem, uma aprendizagem por ensaio e erro. Se a gente considerar os recentes desenvolvimentos no campo das ciências cognitivas, essa história de aprendizagem por imitação é um baita equívoco.

A ideia de imitação sugere uma sucessão de atos de cópia até se chegar à reprodução de algo igualzinho ao original. A analogia para tanto é a de que, no campo das habilidades, funcionamos como máquinas xerox. A cópia perfeita ocorre assim que conseguimos regular bem a máquina.

Vou examinar aqui uma coisa bem simples, pintura de paredes. De acordo com a ideia de aprendizagem por imitação, o noviço observa o profissional experiente e o imita até se tornar um pintor de paredes competente. Se já tentou pintar paredes, você talvez concorde comigo de que a tal aprendizagem por imitação não explica o que de fato acontece. Sua copiagem de um mestre pintor na verdade não funciona . Você faz, aparentemente, o que ele faz: pega um rolo, mergulha-o numa lata de tinta, retira o rolo da lata, dá um batidinha na borda da lata, começa passar o rolo na parede. Tudo parece igual ao que o perito faz. Mas, os resultados são muito diferentes. Na parede pintada pelo profissional não há falhas. Na parede que você pintou a superfície pintada não é uniforme. Outra coisa, o mestre pinta como pouco esforço, seus gestos são fluentes. Você, pelo contrário, esforça-se muito e fica cansado logo. A “teoria da aprendizagem por imitação” dirá que você tem que praticar mais para corrigir gestos e chegar à perfeição.

Uma explicação que, como já disse, vê a aprendizagem de habilidades como um ajuste do mecanismo (do corpo) para reproduzir o comportamento imitado.Tento uma explicação diferente. Na verdade você não imita o que o mestre faz. Você parte de um modelo para construir sua própria aprendizagem. O pintor mergulha o rolo na lata de tinta; você também. Ele, porém, “sente” quando a quantidade de tinta no rolo é adequada, você não. No seu caso, haverá muita ou pouca tinta no rolo. Se você reparar bem, não é sempre que o pintor experiente dá aquela batidinha na borda da lata. Ele faz isto eventualmente. Você, por vias da dúvida, faz sempre. Você, como o pintor, passa o rolo sobre a superfície da parede, mas parece que a tinta não “pega”. No caso do seu mestre, a tinta pega e deixa a superfície pintada uniforme.

Na medida em que o aprendiz de pintor avança em suas tentativas de deixar sua parede igualzinha a do profissional acontecem algumas coisas que um observador externo não consegue ver. Tal observador vê os gestos e compara-os com os gestos do mestre. Escapa-lhe o que você, o aprendiz, vai elaborando a partir do modelo. Não há dúvida de que o modelo é importante, mas há outros elementos que entram na história. Nos próximos parágrafos, vou considerar alguns deles.

Um dos elementos a considerar é a ferramenta, no nosso caso o rolo. O uso de ferramentas estende suas capacidades corporais. A ferramenta, entre outras coisas, “resiste”. E essa resistência da ferramenta lhe ensina. No começo, a ferramenta é um corpo estranho. Para pintar bem é preciso que ela, o rolo, comece a fazer parte do seu corpo. Os ajustes que fazemos em seu uso resultam de interações que nos dão resposta sobre o objeto da ação, a pintura. Não há imitação que substitua a aprendizagem que resulta de repetidas respostas que nos dá a ferramenta. O mestre também aprendeu assim e continua a aprender, mesmo que tenha alcançado domínio “ótimo”do uso da ferramenta.

Há mais elementos a considerar. Um deles é a matéria prima, a tinta. Para pintar bem, você precisa “senti-la”, tanto no momento em que molha o rolo, como no momento em que ela aparece na superfície da parede. Assim como a ferramenta, a matéria prima “resiste”. [Faço uma nota para posterior confirmação. O que estou chamando aqui resistência dos objetos que uso na pintura guarda relação com o conceito de “affordance” desenvolvido por Gibson e por outros autores da psicologia ecológica. Preciso estudar mais tal referência]. Assim como a ferramenta, a tinta ensina.

Outro elemento a considerar é a superfície da parede. Ela também resiste no sentido em que estou utilizando esta palavra aqui. Essa resistência não é apenas física, ela é, ouso dizer, dialogal. A superfície conversa comigo em minhas tentativas de pintá-la. Aprendo com suas respostas.

Vale registrar a observação de minhas experiências prévias no mundo entram no jogo. Aprender a pintar irá variar de pessoa para pessoa, pois cada uma delas traz para a pintura uma experiência pessoal de mundo. Não vou elaborar muito isso aqui. Deixo apenas a lembrança de que experiência anterior precisa ser considerada.

O quadro ainda não está completo. Pintar é um atividade que aprendo e desenvolvo numa comunidade de prática. Companheiros de aprendizagem/trabalho apreciam o que faço, comentam, me dão dicas.O mesmo se passa com o mestre. A aprendiza de habilidades tem dimensões sociais que precisam ser consideradas. Aprender a pintar – assim como aprender qualquer outra habilidade – não é um ato individual desvinculado do sentido que a pintura tem para outros pintores e para as pessoas que dela se beneficiam.

Tento finalizar com uma síntese. Não se aprende habilidades por imitação. O que um mestre faz é um modelo que pode guiar a aprendizagem. Mas, o modelo não é “copiado”, ele desencadeia um processo no qual se aprende com outros ensinantes: a ferramenta, a tinta, a superfície da parede. Esses ensinantes não produzem efeitos imediatos; são precisas repetidas experiências com eles para aprender.

O que acabo de escrever é ainda uma análise inicial sobre aprendizagem de habilidades, considerando as sugestões recentes das ciências do conhecimento. É preciso ainda aprofundar a questão. Uma abordagem cognitivista de habilidade pode explicar, por exemplo, a inovação, pois o aprendiz não imita mestres, mas constrói seu próprio conhecimento. E, no processo de aprender, pode ter relacòes diferentes das do mestre com as “affordances”.