Educação profissional. Aprender por imitação?
Acho que a velha explicação de que aprendemos o fazer por imitação precisa ser reexaminada. Este é um tema que quero estudar mais. Por enquanto, produzo aqui um textão que mesmo que não seja lido por ninguém, é uma iniciativa que me ajuda a aprender e/ou a explicitar coisas que sei mas andam dormindo nalguma gaveta da minha memória.
Se tiver tempo e coragem, leia…
É comum dizer que no campo do trabalho manual, assim como em práticas esportivas, as pessoas aprendem por imitação. Diz-se que aprendizes observam o que o mestre ou perito faz e começam a imitá-lo. Esta é um visão que coloca as habilidades no campo motor e sugerem um aprender mecânico ou, se quiserem, uma aprendizagem por ensaio e erro. Se a gente considerar os recentes desenvolvimentos no campo das ciências cognitivas, essa história de aprendizagem por imitação é um baita equívoco.
A ideia de imitação sugere uma sucessão de atos de cópia até se chegar à reprodução de algo igualzinho ao original. A analogia para tanto é a de que, no campo das habilidades, funcionamos como máquinas xerox. A cópia perfeita ocorre assim que conseguimos regular bem a máquina.
Vou examinar aqui uma coisa bem simples, pintura de paredes. De acordo com a ideia de aprendizagem por imitação, o noviço observa o profissional experiente e o imita até se tornar um pintor de paredes competente. Se já tentou pintar paredes, você talvez concorde comigo de que a tal aprendizagem por imitação não explica o que de fato acontece. Sua copiagem de um mestre pintor na verdade não funciona . Você faz, aparentemente, o que ele faz: pega um rolo, mergulha-o numa lata de tinta, retira o rolo da lata, dá um batidinha na borda da lata, começa passar o rolo na parede. Tudo parece igual ao que o perito faz. Mas, os resultados são muito diferentes. Na parede pintada pelo profissional não há falhas. Na parede que você pintou a superfície pintada não é uniforme. Outra coisa, o mestre pinta como pouco esforço, seus gestos são fluentes. Você, pelo contrário, esforça-se muito e fica cansado logo. A “teoria da aprendizagem por imitação” dirá que você tem que praticar mais para corrigir gestos e chegar à perfeição.
Uma explicação que, como já disse, vê a aprendizagem de habilidades como um ajuste do mecanismo (do corpo) para reproduzir o comportamento imitado.Tento uma explicação diferente. Na verdade você não imita o que o mestre faz. Você parte de um modelo para construir sua própria aprendizagem. O pintor mergulha o rolo na lata de tinta; você também. Ele, porém, “sente” quando a quantidade de tinta no rolo é adequada, você não. No seu caso, haverá muita ou pouca tinta no rolo. Se você reparar bem, não é sempre que o pintor experiente dá aquela batidinha na borda da lata. Ele faz isto eventualmente. Você, por vias da dúvida, faz sempre. Você, como o pintor, passa o rolo sobre a superfície da parede, mas parece que a tinta não “pega”. No caso do seu mestre, a tinta pega e deixa a superfície pintada uniforme.
Na medida em que o aprendiz de pintor avança em suas tentativas de deixar sua parede igualzinha a do profissional acontecem algumas coisas que um observador externo não consegue ver. Tal observador vê os gestos e compara-os com os gestos do mestre. Escapa-lhe o que você, o aprendiz, vai elaborando a partir do modelo. Não há dúvida de que o modelo é importante, mas há outros elementos que entram na história. Nos próximos parágrafos, vou considerar alguns deles.
Um dos elementos a considerar é a ferramenta, no nosso caso o rolo. O uso de ferramentas estende suas capacidades corporais. A ferramenta, entre outras coisas, “resiste”. E essa resistência da ferramenta lhe ensina. No começo, a ferramenta é um corpo estranho. Para pintar bem é preciso que ela, o rolo, comece a fazer parte do seu corpo. Os ajustes que fazemos em seu uso resultam de interações que nos dão resposta sobre o objeto da ação, a pintura. Não há imitação que substitua a aprendizagem que resulta de repetidas respostas que nos dá a ferramenta. O mestre também aprendeu assim e continua a aprender, mesmo que tenha alcançado domínio “ótimo”do uso da ferramenta.
Há mais elementos a considerar. Um deles é a matéria prima, a tinta. Para pintar bem, você precisa “senti-la”, tanto no momento em que molha o rolo, como no momento em que ela aparece na superfície da parede. Assim como a ferramenta, a matéria prima “resiste”. [Faço uma nota para posterior confirmação. O que estou chamando aqui resistência dos objetos que uso na pintura guarda relação com o conceito de “affordance” desenvolvido por Gibson e por outros autores da psicologia ecológica. Preciso estudar mais tal referência]. Assim como a ferramenta, a tinta ensina.
Outro elemento a considerar é a superfície da parede. Ela também resiste no sentido em que estou utilizando esta palavra aqui. Essa resistência não é apenas física, ela é, ouso dizer, dialogal. A superfície conversa comigo em minhas tentativas de pintá-la. Aprendo com suas respostas.
Vale registrar a observação de minhas experiências prévias no mundo entram no jogo. Aprender a pintar irá variar de pessoa para pessoa, pois cada uma delas traz para a pintura uma experiência pessoal de mundo. Não vou elaborar muito isso aqui. Deixo apenas a lembrança de que experiência anterior precisa ser considerada.
O quadro ainda não está completo. Pintar é um atividade que aprendo e desenvolvo numa comunidade de prática. Companheiros de aprendizagem/trabalho apreciam o que faço, comentam, me dão dicas.O mesmo se passa com o mestre. A aprendiza de habilidades tem dimensões sociais que precisam ser consideradas. Aprender a pintar – assim como aprender qualquer outra habilidade – não é um ato individual desvinculado do sentido que a pintura tem para outros pintores e para as pessoas que dela se beneficiam.
Tento finalizar com uma síntese. Não se aprende habilidades por imitação. O que um mestre faz é um modelo que pode guiar a aprendizagem. Mas, o modelo não é “copiado”, ele desencadeia um processo no qual se aprende com outros ensinantes: a ferramenta, a tinta, a superfície da parede. Esses ensinantes não produzem efeitos imediatos; são precisas repetidas experiências com eles para aprender.
O que acabo de escrever é ainda uma análise inicial sobre aprendizagem de habilidades, considerando as sugestões recentes das ciências do conhecimento. É preciso ainda aprofundar a questão. Uma abordagem cognitivista de habilidade pode explicar, por exemplo, a inovação, pois o aprendiz não imita mestres, mas constrói seu próprio conhecimento. E, no processo de aprender, pode ter relacòes diferentes das do mestre com as “affordances”.