Um dos lançamentos do meu Fazer Bem Feito aconteceu, anos atrás, no Conselho Nacional de Educação. Para o evento, preparei um roteiro, destacando alguns aspectos que poderiam chamar atenção para o conteúdo do livro. Tal roteiro ficou muito tempo entre meus guardados. Resolvi compartilhá-lo agora, pois acho que ele é uma bom ponto de partida para conversas sobre valores em educação profissional e tecnológica.
Fazer Bem Feito
Em vinte minutos não é possível oferecer um painel bastante completo do estudo que realizamos para a UNESCO, nem apontar todos os aspectos que merecem atenção no livro. Optei por apresentar alguns aspectos que podem provocar maior interesse e/ou um levantar de sobrancelhas de quem estuda e reflete sobre valores em educação.
Escolhi um caminho dividido em dois tempos. No primeiro tempo apresento dois casos exemplares. No segundo, apresento três direções que me parecem interessantes.
Antes de ir para os casos, uma observação. No estudo que fizemos, procuramos não ficar apenas na ÉTICA. Procuramos também examinar ESTÉTICA e AXIOLOGIA. Cumpre reconhecer, porém, que a tentação de ficar apenas no campo da ética é muito grande.
Estrutura geral:
Dois casos:
A moça que amava o uniforme da escola.
O menino que acariciava madeira
Três direções:
Espaços de aprendizagem são essenciais no desenvolvimento de valores.
A aprendizagem, de conceitos, competências, valores é um empreendimento coletivo, por isso é de fundamental importância a comunidade de prática para que os alunos se façam trabalhadores.
O fazer das instituições profissionais sugerem que o desenvolvimento moral dos alunos é orientado pela ética do cuidado.
Casos
Caso 1: A moça que amava o uniforme da escola.
Curso de salgadeiro. Senai do Porto, Cuiabá. Escolhi a turma que tinha cinco deficientes visuais. Conversei longamente com uma moça de quarenta e poucos, cega desde os dezenove. Alegre, de bem com a vida. Amava dançar. Feliz no curso. Aprendendo muito e cobrando uma política complementar para o PRONATEC: fonte de financiamento para que os salgadeiro pudessem comprar equipamentos profissionais. O ambiente de trabalho/aprendizagem no Senai do Porto é ótimo. De primeiro mundo, diriam alguns. Além disso, os alunos tinham diversos apoios para que pudessem frequentar o curso. E o Senai forneceu uniforme, um camisa bem transada, com nome da escola e do curso. A moça me disse que vestia aquela camisa com maior orgulho. [A camisa representava todos os cuidados que ela estava recebendo]. A revelação foi inesperada. Alguém talvez esperasse um discurso de caráter econômico, de expectativas quanto a ganhos que o trabalho de salgadeiro poderia trazer. Mas, a moça quis falar sobretudo sobre seu orgulho de voltar à escola, ser publicamente reconhecida como estudante em uma instituição de respeito.
Como diz Mike Rose, citando fala de um aluno adulto que teve uma segunda chance escolar:
“VOCÊ É CAPAZ DE SE DESCOBRIR ALGUÉM QUE NUNCA IMAGINOU SER.”
O caso dessa aluna me permite tirar o foco do aluno e propor reflexões sobre valores no plano institucional. Oportunidade para falar sobre arquitetura e educação. Sobre respeito que transparece naquilo que as instituições oferecem como condições materiais d trabalho/aprendizagem em EPT.
Muito o que falar sobre a moça e o orgulho de uma adulto que volta à escola e encontra condições muito dignas para aprender.
Caso 2: O aluno que acariciava madeira.
Curso de marcenaria. Oficinas artesanal e industrial exemplares. Alunos aprendem fazendo uma obra a cada semestre. Vi a turma desenvolvendo um rack. Comecei a prestar atenção num aluno muito pequeno, apesar de seus 16 anos, que às vezes não conseguia alcançar o painel de controle das máquinas. Ele havia feito um emenda de madeira no fundo do seu rack. Ficou perfeito. Leigos não conseguiriam ver a emenda. Ele passava continuamente a mão sobre a emenda, num gesto de carícia e admiração. O professor chegou. E ele também acariciou a madeira. Muitas leituras para o gesto. Mas vou resumir a ópera: no gesto o menino pequeno revelava admiração pela obra.
Estética e ética num mesmo evento. Compromisso. Engajamento. Admiração. Autoestima. Respeito pela obra. Fazer bem feito, mesmo num fundo de móvel que ninguém vai ver.
Espaços de trabalho/aprendizagem. Em EPT necessariamente espaços de trabalho/aprendizagem. Importância fundamental da arquitetura, das ferramentas, dos insumos, das obras. Os valores estão entranhados em tais espaços e nas tramas que neles ocorrem. Sem tais espaços, temos uma EPT pobre, precária, sem dignidade. Um chamado para considerar arquitetura e educação em conversas sobre valores.
Comunidades de prática. Ao entrar num curso de EPT, caso a aprendizagem aconteça em oficinas, o aluno ingressa numa comunidade de prática [prática social] que tem obras no horizonte. Não aprende o QUE. Aprende a SER. Não aprende simplesmente a faze móveis, aprende a ser marceneiro.
Ética do cuidado. Cuidado com quem? Cuidado com o que? Quem: companheiros e beneficiários. Que: a obra, as ferramentas, o ambiente [meio ambiente e ambiente profissional], os insumos.
Novas tecnologias costumam ser apresentadas como um evangelho. São vistas como redentoras. A isso, alguns autores dão o nome de tecnofilia, uma nova religião. Os fieis não admitem qualquer crítica. Algumas vezes, as críticas não têm muito fundamento e os crentes da tecnologia as rejeitam com razão. Mas, há críticas bem fundamentadas. uma delas apareceu num livro chamado Blog Theory, de Jodi Dean. Gostei muito da obra e a resenhei. A resenha apareceu no Boletim Técnico do Senac. Mas, já faz algum tempo. Por isso resolvi reproduzi-la aqui.
DEAN, Jodi. blog theory: feedback and capture in the circuits of drive. Malden, MA: Polity Press, 2010. 153 p.
Novas tecnologias da informação e comunicação (NTICs) ganham espaço cada vez maior na vida cotidiana. Essas tecnologias são vistas como avanços desejáveis, pois os ganhos que trazem em termos de ampliação do conhecimento são imensos. Tal interpretação do papel das NTICs tem uma dupla face. De um lado, ela entende que produção e acumulação de saberes é um processo contínuo e cumulativo. De outro, ressalta a necessidade de se adotarem as mudanças que as mais recentes tecnologias trazem. Comentários nos meios de comunicação e em produções acadêmicas tendem à tecnofilia. Ao mesmo tempo, a aceitação entusiasmada das NTICs tem muitos traços de ingenuidade.
O pensamento hegemônico sobre as novas tecnologias da informação e comunicação sugere que sociedade e indivíduos têm conhecimento cada vez maior, que a educação dará um salto de qualidade e que a prática política ganhou grandes espaços de exercício da liberdade. Tais conclusões não são fruto de análises aprofundadas das NTICs. São, muito mais, consequências de crenças que ignoram qualquer análise crítica dos novos meios de comunicação.
Blog Theory, obra de Jodi Dean, contesta o pensamento hegemônico. Examina o fenômeno dos blogs, tentando perceber o significado dessa prática comunicativa na sociedade e para os blogueiros individualmente. A autora, porém, não se restringe aos blogs. Na verdade, realiza uma análise mais ampla, incluindo em seu estudo outras práticas comunicativas que ganharam espaço expressivo na web.
A intenção de Dean é analisar criticamente as NTICs a partir de uma tradição que busca entender o significado e impactos sociais das tecnologias, assim como a maneira pela qual as forças hegemônicas se apropriam das ferramentas de comunicação. Ela procura superar o nível das aparências para desvelar o que está acontecendo nos planos coletivo e individual. Há mudanças. Mas, que mudanças estão acontecendo em modos de ver a vida, no plano dos valores, na vida política, no plano epistemológico? Respostas a essas perguntas balizam o caminho percorrido por Dean.
A autora reconhece que analisar criticamente as NTICs não é tarefa fácil. A atualidade das análises é efêmera, pois as novas redes de comunicação são turbulentas, sempre mutantes. Muitos de seus aspectos definidores desaparecem em pouco tempo. A obsolescência de equipamentos e ferramentas é extremamente acelerada. Por esses motivos, livros que abordem criticamente os novos meios de comunicação correm o risco de ficarem desatualizados assim que chegarem às livrarias. Por outro lado, utilizar a própria web para registrar aspectos críticos em blogs e outros ambientes de publicação digital é providência vã, pois o conteúdo não merecerá a devida atenção.
Dean mostra que os livros desempenham papel importante na elaboração e no registro de análises críticas. Sugere que as mídias digitais não conseguem substituí-los em tal função. Conclui que eles continuam a ser o veículo mais adequado para articular análises que evidenciem as consequências mais profundas das NTICs.
O funcionamento da Internet, segundo a autora, mostra a emergência do capitalismo da comunicação. Esse fenômeno vem recebendo diversos nomes, com destaque para “sociedade da informação”. No entanto, quase sempre os analistas ignoram o capital como o maior interessado na produção, na circulação e no uso de uma commodity intangível que vem mudando as relações entre as pessoas, a formação de identidade e os modos de ver o mundo. Para Jodi Dean, “o capitalismo marca a estranha convergência da democracia e do capitalismo em redes de comunicações e mídias de diversão” (p. 4).
Para mostrar os desdobramentos ideológicos do ambiente mediático de nossos dias, Dean examina como movimentos de esquerda com raízes nos anos 1960, acreditando em virtudes intrínsecas das redes de comunicação, acabaram caindo em armadilhas e passaram a defender valores que criticavam. Para ela, esse é o caso, por exemplo, dos novos comunalistas. Estes, ao abraçarem promessas libertárias da Internet, aliaram-se aos adversários de outrora – as forças armadas, o capital, a burocracia –, promovendo ideias neoliberais e justificando a flexibilização do trabalho e outras decorrências de um capitalismo no qual se entranha a comunicação.
As observações de Jodi Dean sobre aspectos ideológicos promovidos no e pelo uso das redes digitais nada têm a ver com teorias conspiratórias. A autora examina as práticas comunicativas correntes e nelas encontra características que não são evidentes para usuários e entusiastas das novas mídias. Ela busca caracterizar que cultura e sociedade estão sendo construídas naquilo que se convencionou chamar de “sociedade da informação”.
Na produção e circulação de informações, a autora vê um fenômeno que precisa ser considerado: o fenômeno da reflexibilidade. Este, em síntese, é caracterizado por uma circularidade, na qual informação gera mais informação, sem qualquer referência a realidades que não integrem as redes digitais. No plano individual, a reflexibilidade gera comportamentos análogos aos da obsessão pelo jogo. Usuários de redes sociais entram em um circuito que não privilegia conteúdos, mas o constante uso de veículos de informação.
Nos planos axiológicos e epistemológicos, Jodi Dean sugere que a utilização das novas mídias caminha na direção do declínio da eficiência simbólica. Ou seja, as pessoas deixam de ter uma referência sólida para julgar a informação. Vale tudo. Em blogs e outros meios de expressão digital, acredita-se que todas as opiniões sejam válidas. A tendência reforça traços de relativismo já presentes na cultura ocidental antes do advento das redes digitais. No caso dos valores, há um esvaziamento de referências aceitas coletivamente. No caso da ciência, há uma crença de que todo e qualquer saber é equivalente. O resultado dessas maneiras de ver é que banalidades sem fundamento e afirmações ancoradas em investigações sistemáticas em nada diferem. São informações que entram no circuito, reivindicando tratamento igualitário.
Predomina na rede digital impulso para o uso, não importando outros fins. A lógica do sistema é a de um consumo cada vez mais avassalador de informações, não pelo valor intrínseco destas últimas, mas pelo sentimento de participar de um processo informativo que não cessa. A comunicação constante é uma obrigação. Mais ainda: uma obsessão. É preciso comunicar-se, não importa para quê, nem o que comunicar.
Dean consagra um capítulo inteiro à questão do afeto (Affective Networks). A autora observa: “O capitalismo da comunicação manda nos divertirmos, ao mesmo tempo que nos adverte de que não estamos nos divertindo o bastante, ou tão bem como os outros. Nossa diversão permanece frágil, arriscada”(p. 92).
A ordem para nos divertirmos aparece de diversas formas. Uma delas é a de sentir-se membro de uma comunidade que, segundo a autora, “é uma comunidade sem comunidade”. Contraditoriamente, as redes facilitam a superação do isolamento, embora as pessoas continuem isoladas. Outra forma é a da repetição. Faz-se a mesma coisa o tempo todo. Não importa o significado do que é repetido, mas sempre a repetição, em um ritmo cada vez mais envolvente. Repetição e redundância é o nome do jogo. Isso já era característico nos meios de comunicação de massa que chegaram um pouco mais cedo que as redes digitais. Essa circunstância foi e é largamente utilizada em publicidade na TV.
Convém, mais uma vez, recorrer ao texto da autora:
“A dimensão aditiva da comunicação pela comunicação marca um excesso.Esse excesso não é novo significado ou perspectiva. Ele não se refere a um novo conteúdo. Em vez disso, advém da repetição, agitação ou emoção por mais. Na duplicação reflexiva da comunicação, a diversão incorporada à comunicação pela comunicação desaloja intenção, conteúdo e significado. O extra na repetição é diversão, a diversão que é capturada no impulso e na diversão expropriada pelo capitalismo da comunicação.” (p. 116)
A meta, como já se disse, é a de usar a rede. E usá-la à exaustão. O discurso ideológico justifica tal uso com promessa de mais conhecimento. Mas, conforme diz a autora, “quanto mais conhecimento incorporamos, menos sabemos”. Na verdade, o que predomina é a circulação de informação, não a sua apropriação pelos usuários. Uma das consequências disso é a falta de ação. Em vez de agir, busca-se mais informação. Os resultados encontrados não satisfazem. Por isso, mais informações são procuradas. Esse processo não tem fim, e estar nele é fonte de prazer. A produção de informação com características de reflexibilidade é uma criação dos usuários. Eles acabam produzindo o ambiente em que vivem, pois as conexões estabelecidas no interior do sistema configuram as pessoas. Gerar informação, consumi-la, reproduzi-la, dentro de um loop, substitui busca de sentido, de significado; é tudo que se quer.
Apesar do título de seu livro e de ter um capítulo dedicado aos blogs, estes não são o foco de Dean, mas, sim, as práticas mediáticas que se tornaram comuns com a chegada dos recursos digitais. A autora faz menção às características técnicas dos diários eletrônicos e examina as analogias mais comuns que são utilizadas para defini-los. Ela, porém, não se prende a visões mais tradicionais. Para além de aparências óbvias de blogs como diários eletrônicos ou formas de expressão de um novo jornalismo, Jodi Dean mostra como a prática deles está a serviço da expressão da subjetividade.
A autora vai buscar nas práticas epistolares do antigo Império Romano, assistida por estudos realizados por Michel Foucault, analogias para iluminar o sentido da escrita em diários eletrônicos. Revela que as correspondências produzidas pelos latinos tinham acima de tudo características de auto-escrita. A arte de escrever cartas era vista como um elemento de reflexão. Nesse sentido, importava pouco o que comunicar. Importava o próprio exercício de produzir as cartas, mesmo que estas não fossem enviadas aos seus destinatários. Essa é uma descoberta intrigante. O ato, a prática era mais importante que o escrito. E é isso o que acontece com os blogs: valem para eles as observações feitas para todo o sistema de comunicação digital. Eles são uma alternativa de ingresso na ciranda interminável de gerar e consumir informação, pouco importando o conteúdo. Também concretizam o sentimento de participação no qual se acentua a dimensão afetiva. Não são, assim, diferentes de qualquer outro formato que facilita a participação dos usuários na Web.
Blog Theory é um livro denso e exigente. A autora, para desenvolver seus argumentos, recorre a uma ampla literatura, influenciada principalmente por Lacan. Cada capítulo da obra mereceria uma resenha própria para que não se perdessem elementos importantes das análises feitas por Dean. Porém, os registros aqui feitos são suficientes para situar a obra e sua importância em áreas relacionadas com informação e comunicação. Importa assinalar como Blog Theory sugere novos modos de ver as NTICs em educação. O estudo de Dean mostra que aproveitamentos de qualidades aparentes da web para finalidades pedagógicas não podem acontecer de modo ingênuo. O predomínio de práticas de comunicação pela comunicação é um traço que deveria merecer análises críticas dos educadores. Usos educacionais das NTICs, caso ignorem uma visão crítica, irão apenas facilitar ingresso dos alunos em circuitos comunicativos que desconsideram conteúdos e significados.