Estou lendo material sobre avaliação da educação profissional e tecnológica. Os textos refletem o pensamento hegemônico sobre as relações entre educação e trabalho. O pressuposto é o de que trabalho é um subproduto da ciência e da tecnologia. Nas propostas de como organizar a educação profissional, predomina uma abordagem que nos velhos tempos a gente chamava de cientismo. E a “nova educação profissional” é pintada como superação de mero treinamento para o posto de trabalho. Outras vezes critica-se uma formação centrada em atividades meramente operacionais.
Sempre tenho um pé atrás com relação a críticas que caracterizam aspectos da velha educação com o adjetivo mero. Minha ojeriza maior é pela expressão “mera habilidade”. Nesse discurso fica evidente uma crítica à aprendizagem de técnicas. Mas, que diabos, diria o Moleque Saci. O trabalhador precisa de ter um bom repertório de técnicas para negociar com quem pretende contratar seus serviços. Gosto da palavra repertório neste caso porque ela coloca em cena uma analogia feliz. O trabalhador é como um músico. Ele só vai para o palco se tiver um bom repertório. Quem sabe tocar um reduzido número de músicas não será reconhecido como artista. E repertório de técnicas exige domínio de um número amplo de habilidades.
Hoje no meu Facebook fiz duas provocações por causa de minha insatisfação com as visões da maioria dos educadores sobre edução voltada para o trabalho. Numa das provocações escrevi o seguinte:
SEM HOMO HABILIS, NÃO HAVERIA HOMO SAPIENS.
Na outra provocação escrevi:
SEM MÃOS, NÃO TERÍAMOS COMPUTADORES.
No primeiro caso tentei lembrar que é partir do homo habilis que construímos nosso ser no mundo, modificando, com ferramentas, o ambiente. Produzimos cultura. E foi essa habilidade original de nossos ancestrais que acabou produzindo sabedoria. Há em nossa história evolutiva uma associação entre mão e cérebro que alguns autores chamam de coevolução. Mas, mesmo coevoluindo, a habilidade das mãos precede a sabedoria da mente. Estou aqui a simplificar um tema que merece mais aprofundamento para que os educadores parem de falar em “mera habilidade”.
No segundo caso dei destaque especial às mãos. São elas que nos fazem mais inteligentes que os demais seres, como já o disse Anaxágoras há mais de dois mil e quinhentos anos. Ficamos muito admirados com as proezas cada vez mais incríveis dos computadores. E essa admiração nasce de um pressuposto de que as máquinas digitais são uma nova espécie na cadeia da evolução dos seres mais inteligentes do planeta. Mentes não produzem computadores, projetam-nos. Quem os produz sãos as mãos. Mais uma vez apenas toco numa questão que precisa de muito aprofundamento. Ela também é uma forma de se opor ao pensamento de que a técnica é “mera habilidade”.
A partir de minha crítica ao cientismo que vejo entre os teóricos da educação profissional nos dias de hoje, acabei descobrindo que desapareceu completamento do cenário o entendimento de que trabalho é arte. Na literatura me lembro de apenas dois autores atuais que insistem na ideia de que trabalho é arte: Sennett e Crawford. Mas acho que há outras fontes que devem ser consideradas. Uma delas é a notável experiência pedagógica do Black Mountain College na metade do século passado.
Em minhas meditações sobre o tema acabei me lembrando de observações que fiz de situações do ensino do fazer-saber. Uma delas aconteceu no setor de confeitaria de um hotel escola. Tentei encontrar ciência e tecnologia no que lá acontecia. Não encontrei. Aquilo era pura arte. Outra foi a de observações num pavilhão de soldagem de uma escola que é referência nacional em metalurgia. Há ciência e tecnologia nas realizações dos soldadores. Mas, executar uma soldagem é um ato artístico. Uma das maiores profissionais do universo da soldagem, Lisa Legohn, com um imenso conhecimento científico e tecnológico da área, define a profissão como arte. E, mais que isso, Lisa diz que só embarcou definitivamente na aventura de se tornar uma das soldadoras mais conhecidas nos EUA quando compreendeu que soldagem é uma arte.
Lembro episódio narrado por meu amigo Mike Rose. Ele estava acompanhando alunos de um curso de formação de eletricistas. Eles estavam trabalhando (aprendendo pelo fazer) numa obra. Um dos estudantes acabara de completar a fiação de um painel que ficaria escondida dentro da parede. O rapaz se afastou e contemplou sua obra. Funcionava. Mas, ele resolveu refazê-la. Mike quis saber o porquê de tal decisão. O rapaz lhe disse: “professor, funciona, mas está feia”. Meu amigo argumentou que ninguém veria o que o moço tinha feito, tudo aquilo ficaria escondido no interior da parede. Este, porém, reparou: “não importa que ninguém a verá; eu não faço coisa feia”.
Há vários desdobramentos quando se entende que trabalho é arte. Um deles é o da importância da obra no processo de aprendizagem. Outra é o da constituição da identidade do trabalhador por meio daquilo que ele faz em comunidades de prática (prática social). Outra ainda é a de que ciência e tecnologia só ganham concretude no trabalho por meio da arte.Sem arte o trabalho morre.
Paro por aqui. Há muito mais o que considerar. Mas, antes que eu pudesse elaborar melhor a ideia de que trabalho é arte, resolvi fazer este registro, para me ajudar como referência no aprofundamento do tema; como mostra pública de um entendimento, esperando que amigos possam colaborar com a análise que pretendo fazer sobre a necessidade de conceituar trabalho como arte em atividades de educação profissional.