Archive for maio \19\+00:00 2021

Mãos parceiras

maio 19, 2021

Ao fazer mise en place, garçons costumam colocar garfo à esquerda do prato, e a faca à direita. Porque será? Alguém diria que isso é um convenção. Não é não. Há um bom motivo para isso. A maioria das pessoas tem como dominante a mão direita. Se forem cortar carne ou outro alimento, utilizarão a faca nesta mão e utilizarão garfo na esquerda para fixar o que está sendo cortado.

Mas a gente acaba invertendo faca e garfo para outras operações. Pra levar arroz e feijão à boca, quase sempre utilizaremos garfo na mão direita, utilizando eventualmente a faca na esquerda para acomodar porções e apoiar o movimento do garfo.

Tudo que descrevi acima muda se a pessoa é canhota. Vale registrar que se for observador, o garçom colocará garfo à direita e faca à esquerda quando perceber que o freguês é canhoto.

Se alguém ler o que estou escrevendo aqui pode se perguntar que importância tem essa história de garfo e faca. Afinal de contas, mise en place é assunto que interessa apenas a garçons e maitres. Ledo engano. Considerações sobre mise en place podem ser um ponto de partida importante para pensarmos como utilizamos as mãos. Falamos muito nas maravilhas do cérebro. Mas, tão maravilhosas como ele são nossas mãos. Acontece que elas funcionam de modo tão inconscientente que não nos damos contas de como elas são extremamente sofisticadas.

Lembrei-me da mise en place dos restaurantes ao ler o capitulo sobre a mão direita em The Hand, de Wilson. Quero, em outra ocasião, comentar aqui o conteúdo de tal capítulo. Por ora fico apenas com uma observação feita no livro. Ao comentar as proezas da mão (ou da mão dominante), o autor observa que a mão esquerda também tem um papel relevante na maior parte das coisas que fazemos. Consideremos, por exemplo, execução de muitos instrumentos musicais. No momento estou ouvindo e vendo Verônica Ferriani numa live. Ela canta e toca violão. Mão esquerda vai percorrendo posições para produzir as necessárias harmonias. E a mão direita tange as cordas para produzir e ritmar o som. No caso, a mão dominante depende muito da mão de apoio. Ao mencionar coisas com essa, Wilson sugere que passemos a ver as mãos como parceiras. Isso nos obriga a ver com mais cuidado o que faz nossa mão esquerda em atividades em que a direita brilha como primeira bailarina.

Fico por aqui. Não aprofundei a coisa. Apenas indiquei um ponto de partida para começo de conversa. Voltarei ao assunto.

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Formação docente e EPT

maio 12, 2021

Acabo de receber informação de minha amiga Lucília Machado de que ela publicou recentemente artigo sobre docentes de reconhecido saber em número da revista Retratos da Escola. Interessados no artigo dela e no número todo da publicação devem clicar AQUI.

A linguagem do fazer

maio 11, 2021

Em Educação Profissional: Saberes do ócio ou saberes do trabalho? reconto história contada por Eduardo Rojas. Tal história narra os problemas para regular uma máquina alemã. O equipamento, importado, precisava ser devidamente preparado para funcionar com eficiência. Vinha acompanhado por manual em alemão. A industria argentina, que o importou, entregou a tarefa de regulagem a engenheiros que sabiam alemão. Eles seguiram o manual, mas o resultado não foi o esperado. Novas tentativas foram feitas, sem que se conseguissem resultados satisfatórios. Já sem esperança de que a máquina viesse a funcionar, a empresa fez uma última aposta: pediu a um velho operário alemão, radicado na Argentina, que regulasse a máquina. Ele leu o manual, mas desistiu de usá-lo. Mexeu na máquina, num percurso de tentativas e erros. Depois de um tempo, deixou o equipamento funcionando como deveria. Os donos da empresa e os engenheiros ficaram impressionados e quiseram saber o que o velho operário fizera. Ele respondeu, numa frase bem curta, “eu li a máquina”.

Ao que parece, os diversos fazeres têm um linguagem própria. Uma linguagem das coisas, não uma linguagem das palavras, uma linguagem verbal. Tal linguagem corresponde a um saber operativo, não a um saber explicativo, proposicional, expresso verbalmente. Penso que um saber assim está presente na aprendizagem de profissões como as de soldador, marceneiro, cozinheiro, piloto de fórmula 1, protético dental.

Em observações que fiz sobre ensino e aprendizagem no campo da formação profissional, vi que uma solda ou uma escultura dental demandam saber que não se expressa em palavras. É um saber das coisas. Um saber in rebus, não in verbis, como diziam os latinos. Discursos sobre soldagem ou sobre prótese são insuficientes para elaborar o saber do soldador ou do protético.

A observação que acabo de fazer vai na mesma direção da feita por Wilson em The Hand depois de relatar como George McLean desenvolveu seus saberes de joalheiro:

Ao discutir seu trabalho, George se refere a um “vocabulário visual”, como se joalheria fosse a concretização de certa linguagem oculta, não verbal, Com base na descrição dele, não ficam dúvidas de que as peças que produz fluem de regras internalizadas para combinar materiais e elementos estruturais no sentido de se obter significado que leva a sua marca. Como esse processo difere do processo do escritor, cujas histórias nasceram por meio de palavras unidas de acordo com uma gramática que governa suas relações? Os movimentos manuais hábeis dos gestos do artesão, escrevendo seus significados em formas sólidas, são como os do escritor que põe palavras no papel? Quão longe pode ir esta analogia? E mais: tal analogia pode encontrar sua contraparte no próprio cérebro?

A história de George nos sugere três grandes aspectos a considerar:

– a transformação das duas mãos em parceiras complementares, com especialização lateralizada (dominância de uma mão) tornando-se ubíqua como um comportamento estável por toda vida.

a transformação da mão num órgão articulado de expressão.

– o aparecimento de ligações sensório-motor e perceptivas de mão e cérebro, normalmente associadas com uma aprendizagem específica de tarefa, sugerindo integração de ambos os fatores hereditários e experenciais na aptidão para uma habilidade e realização.

Cabe aqui mais uma lembrança. Dei um curso sobre ensino de técnicas para professores do centro de treinamento da antiga FEBEM. No final do processo, cada docente apresentava aula sobre assunto relacionado com sua área. Seu João, velho operário aposentado, preparou aula sobre reparo de motores. Colocou sobre uma bancada um motor de automóvel e anunciou “este motor está com um defeito, vamos reparara-lo”. Em seguida, sem dizer qualquer palavra, fez uma série de operações e concluiu: “o motor agora está funcionando”. Perguntei ao velho operário porque ele não nos explicara o que estava fazendo. Resposta: “ou eu mostro como consertar o motor ou eu falo sobre isso”. Entendi que para seu João o fazer era não palavroso. O que tínhamos de fazer era ler os seus gestos e o motor. Explicações viriam antes ou depois da ação, não durante ela. Seu João, sem dúvida, tinha certeza de que o saber da mecânica não é verbal. Considero a conclusão desse velho operário muito radical. Mas, ela dá o que pensar.

Trabalho é arte 2

maio 8, 2021

Já desenvolvi algumas ideias sobre trabalho como arte em Fazer Bem Feito: Valores em educação profissional e tecnológica. No livro, escrevi um capítulo ao qual de dei o título de Trabalho e Arte. Na referida obra ainda não avanço o entendimento que agora me parece mais adequado. Entendo agora que não há apenas uma associação importante entre trabalho e arte. Entendo agora que trabalho é arte. Isso muda um pouco as coisa e exige algum avanço nas análises que já fiz num capítulo em Fazer Bem Feito. Por ora, cito pequeno trecho do que escrevi no dito livro:

A palavra arte, em sua associação com o trabalho, tem significado mais amplo que forma de expressar beleza. Rugiu (1998) faz uma abordagem de tal significado que é oportuno resumir aqui. Na história do trabalho, a palavra arte designa todas as relações de saber de um grupo profissional. O termo tem cono-tações culturais, epistemológicas e sociais. No âmbito cultural, a associação entre arte e trabalho se refere a um saber compartilhado por um grupo profissional; em termos da linguagem hoje utilizada, arte é a cultura própria de uma comunidade de prática no campo do trabalho. Do ponto de vista epistemológico, arte é um saber fazer cuja referência é a obra. Rugiu aborda esse entendimento de arte citando Le Goff: “Uma arte é uma atividade justa do espírito aplicado à fabricação de instrumentos, sejam materiais, sejam intelectuais: é uma técnica inteligente do fazer. Ars est recta ratio factibilium” (LE GOFF apud RUGIU, 1998, p. 31). Do ponto de vista social, arte se confunde com o que mais tarde veio a ser chamado de corporação; ou seja, arte é uma dimensão de existência com normas e costumes construídos historicamente por um grupo comprometido com saberes constituídos em experiências vivenciais.

A expressão latina utilizada por Le Goff e citada por Rugiu – Ars est recta ratio factibilium – pode ser traduzida por “uma arte é a razão correta do fazer”. Mas essa tradução talvez não revele integralmente o sentido de recta ratio. Recta não é apenas uma qualidade de correção técnica. Recta é também indicação de compromisso com a obra; e mais, é um compromisso ético de fazer as coisas de acordo com os padrões elaborados e aceitos pela corporação. A arte, nesse sentido, envolve seu praticante, exigindo correção de saberes e correção de comportamento. Quando praticada pelo trabalhador, é uma forma de expressão capaz de garantir a identidade que ele constrói constantemente por meio de suas obras. (p. 91)

Trabalho é arte

maio 7, 2021

Estou lendo material sobre avaliação da educação profissional e tecnológica. Os textos refletem o pensamento hegemônico sobre as relações entre educação e trabalho. O pressuposto é o de que trabalho é um subproduto da ciência e da tecnologia. Nas propostas de como organizar a educação profissional, predomina uma abordagem que nos velhos tempos a gente chamava de cientismo. E a “nova educação profissional” é pintada como superação de mero treinamento para o posto de trabalho. Outras vezes critica-se uma formação centrada em atividades meramente operacionais.

Sempre tenho um pé atrás com relação a críticas que caracterizam aspectos da velha educação com o adjetivo mero. Minha ojeriza maior é pela expressão “mera habilidade”. Nesse discurso fica evidente uma crítica à aprendizagem de técnicas. Mas, que diabos, diria o Moleque Saci. O trabalhador precisa de ter um bom repertório de técnicas para negociar com quem pretende contratar seus serviços. Gosto da palavra repertório neste caso porque ela coloca em cena uma analogia feliz. O trabalhador é como um músico. Ele só vai para o palco se tiver um bom repertório. Quem sabe tocar um reduzido número de músicas não será reconhecido como artista. E repertório de técnicas exige domínio de um número amplo de habilidades.

Hoje no meu Facebook fiz duas provocações por causa de minha insatisfação com as visões da maioria dos educadores sobre edução voltada para o trabalho. Numa das provocações escrevi o seguinte:

SEM HOMO HABILIS, NÃO HAVERIA HOMO SAPIENS.

Na outra provocação escrevi:

SEM MÃOS, NÃO TERÍAMOS COMPUTADORES.

No primeiro caso tentei lembrar que é partir do homo habilis que construímos nosso ser no mundo, modificando, com ferramentas, o ambiente. Produzimos cultura. E foi essa habilidade original de nossos ancestrais que acabou produzindo sabedoria. Há em nossa história evolutiva uma associação entre mão e cérebro que alguns autores chamam de coevolução. Mas, mesmo coevoluindo, a habilidade das mãos precede a sabedoria da mente. Estou aqui a simplificar um tema que merece mais aprofundamento para que os educadores parem de falar em “mera habilidade”.

No segundo caso dei destaque especial às mãos. São elas que nos fazem mais inteligentes que os demais seres, como já o disse Anaxágoras há mais de dois mil e quinhentos anos. Ficamos muito admirados com as proezas cada vez mais incríveis dos computadores. E essa admiração nasce de um pressuposto de que as máquinas digitais são uma nova espécie na cadeia da evolução dos seres mais inteligentes do planeta. Mentes não produzem computadores, projetam-nos. Quem os produz sãos as mãos. Mais uma vez apenas toco numa questão que precisa de muito aprofundamento. Ela também é uma forma de se opor ao pensamento de que a técnica é “mera habilidade”.

A partir de minha crítica ao cientismo que vejo entre os teóricos da educação profissional nos dias de hoje, acabei descobrindo que desapareceu completamento do cenário o entendimento de que trabalho é arte. Na literatura me lembro de apenas dois autores atuais que insistem na ideia de que trabalho é arte: Sennett e Crawford. Mas acho que há outras fontes que devem ser consideradas. Uma delas é a notável experiência pedagógica do Black Mountain College na metade do século passado.

Em minhas meditações sobre o tema acabei me lembrando de observações que fiz de situações do ensino do fazer-saber. Uma delas aconteceu no setor de confeitaria de um hotel escola. Tentei encontrar ciência e tecnologia no que lá acontecia. Não encontrei. Aquilo era pura arte. Outra foi a de observações num pavilhão de soldagem de uma escola que é referência nacional em metalurgia. Há ciência e tecnologia nas realizações dos soldadores. Mas, executar uma soldagem é um ato artístico. Uma das maiores profissionais do universo da soldagem, Lisa Legohn, com um imenso conhecimento científico e tecnológico da área, define a profissão como arte. E, mais que isso, Lisa diz que só embarcou definitivamente na aventura de se tornar uma das soldadoras mais conhecidas nos EUA quando compreendeu que soldagem é uma arte.

Lembro episódio narrado por meu amigo Mike Rose. Ele estava acompanhando alunos de um curso de formação de eletricistas. Eles estavam trabalhando (aprendendo pelo fazer) numa obra. Um dos estudantes acabara de completar a fiação de um painel que ficaria escondida dentro da parede. O rapaz se afastou e contemplou sua obra. Funcionava. Mas, ele resolveu refazê-la. Mike quis saber o porquê de tal decisão. O rapaz lhe disse: “professor, funciona, mas está feia”. Meu amigo argumentou que ninguém veria o que o moço tinha feito, tudo aquilo ficaria escondido no interior da parede. Este, porém, reparou: “não importa que ninguém a verá; eu não faço coisa feia”.

Há vários desdobramentos quando se entende que trabalho é arte. Um deles é o da importância da obra no processo de aprendizagem. Outra é o da constituição da identidade do trabalhador por meio daquilo que ele faz em comunidades de prática (prática social). Outra ainda é a de que ciência e tecnologia só ganham concretude no trabalho por meio da arte.Sem arte o trabalho morre.

Paro por aqui. Há muito mais o que considerar. Mas, antes que eu pudesse elaborar melhor a ideia de que trabalho é arte, resolvi fazer este registro, para me ajudar como referência no aprofundamento do tema; como mostra pública de um entendimento, esperando que amigos possam colaborar com a análise que pretendo fazer sobre a necessidade de conceituar trabalho como arte em atividades de educação profissional.

Webquest na academia

maio 2, 2021

O sucesso do modelo Webquest gerou muito interesse de estudos do modelo criado por Bernie Dodge por investigadores cursando mestrado ou doutorado. Mas, a produção de teses e dissertações sobre o modelo encontrou uma barreira inesperada. Bernie Dodge é, num certo sentido, um anti-acadêmico. O modelo Webquest não é um produto de pesquisas apuradas. É, muito mais, um arranjo que foi criado para responder a necessidade imediata de Dodge, para responder a pergunta de como fazer algo interessante num curso de formação de professores para que estes usassem recursos da internet. E Bernie achou uma forma bem arrumada de fazer isso. Na sequência ele estruturou de modo mais definitivo o que havia feito no curso de formação de professores e deu ao arranjo o nome de Webquest. O sucesso foi imenso. Em pouco tempo, professores em todo o mundo criaram e publicaram Webquests na internet. Bernie foi convidado a levar a boa nova para quase todos os estados americanos e para muitos países do planeta, incluindo, entre outros, Brasil, China, Austrália, Espanha, Perú.

Para ver a questão da ausência de boas referências acadêmicas sobre Webquests é bom dar uma olhada aqui.