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Introdução em eventos e materiais didáticos

agosto 22, 2020

Há alguns dias falei sobre introdução a WebGincanas. Lembrei-me então que escrevera nos anos de 1990 um texto sobre como começar o assunto. Achei que aquele velho texto ainda teria alguma serventia. Mas, ao revê-lo, achei que ele já está muito velho para aproveitamento nos dias de hoje. Agora, descobri que mais recentemente escrevi outro texto sobre introduções que ainda vale. Ele foi produzido quando escrevi as propostas de produção da série Desafio para a TV do MEC. Num dos Desafios foi preciso clarear um pouco a questão da introdução para a equipe de produção do programa.

Sem nada mudar no original, reproduzo aqui o que escrevi para o Desafio. Creio que o texto serve também para balizar como escrever introduções em WebGincanas.

Nota sobre primeira parte do programa e introdução ao tema na escola

A primeira parte de um Desafio deve buscar interesse. Interesse pelo que? Interesse por um assunto que deve ser estudado. E interesses não nascem de informações sobre o conteúdo, nascem da compreensão de problemas ou de encantamentos sugeridos por determinadas situações.

Não cabe apresentar informações na introdução. Ela não é uma ocasião para instruir, para ensinar. Nela, o que é apresentado deve provocar nos alunos curiosidade, deslumbramento, perguntas. Deve provocar sentimento de que o desafio proposto faz sentido e é uma atividade que vale a pena.

Na Introdução, escola e produção de TV devem escolher modos de apresentação que caminhem na direção do interesse. No caso do bullying, uma das formas de criar interesse é a de oferecer um contexto que mostre problemas de violência física e/ou simbólica contra pessoas ou grupos “diferentes”. Algo que crie algum impacto e mostre a irracionalidade de práticas gratuitas de ataque a pessoas mais fracas ou que tenham alguma característica particular. Nessa parte não se deve apresentar aquilo que os alunos precisam aprender sobre o assunto. Nessa parte, o que importa é que os alunos “comprem” o tema.

Fazer introdução a assuntos de um Desafio (pelo menos em desafio como o nosso, que segue orientações metodológicas parecidas com as do modelo WebQuest) exige alguma mudança em formas de apresentação. Introduções em materiais didáticos ou em materiais de TV com fins educacionais costumam oferecer uma visão geral do assunto ou antecipar o que vem pela frente. Não é isso que queremos.

O que queremos é uma apresentação que mostre importância do que vamos abordar. E para mostrar importância de algo precisamos, entre outras coisas, emocionar, envolver, indignar, relacionar tema com vida das pessoas.

Para situar o que estou tentando passar, vou oferecer um exemplo concreto. Tom March, autor de ótimas WebQuests, fez uma Introdução excelente para  um trabalho que propunha estudo da ética, tendo como referência questões sociais importantes em nosso mundo. Para tanto, o autor escolheu um caso concreto que envolveu ética e ciência, Tuskeege Tragedy. É preciso reparar que o caso escolhido por Tom não era material para ser estudado. Era um fato da história contemporânea que gerou indignação e levantou bandeiras com relação á ética. Segue o texto de introdução do material em foco:

 Introdução

Imagine que você é uma pessoa pobre vivendo em tempos economicamente difíceis. O seu governo lhe oferece tratamento médico gratuito. Parece bom. Mas a verdadeira razão pela qual o governo o procurou é porque você tem certa doença. Em vez de lhe proporcionar assistência médica, os doutores estão apenas acompanhando o que acontece quando a doença observada não é tratada. Suponha que ocorra um milagre e a ciência encontre uma cura para a tal doença. Mas, em vez de lhe dar o novo remédio, os médicos continuam o experimento que tem por objetivo observar o desenvolvimento “natural” da moléstia. Passam-se anos; alguns de seus companheiros, que também estavam sendo objeto de estudo, morrem, outros passam a doença para suas mulheres e filhos. Será que isso é uma sinopse para um novo filme? Será que alguém seria tragado por um roteiro tão inacreditável como esse? Será que esse é mais um caso de “arte que imita a vida”? Deixemos de suspense: aqui está a verdade, de acordo com uma reportagem da CNN:

“No começo da década de 1930, 399 homens foram inscritos pelo Serviço Público de Saúde dos EUA para um plano de assistência médica gratuita. O Serviço estava conduzindo um estudo sobre os efeitos da sífilis no corpo humano. Os homens nunca foram informados de que tinham sífilis. Os médicos lhes disseram que eles tinham “sangue ruim”. Esses sujeitos observados jamais foram tratados, mesmo depois da descoberta da penicilina em 1947. Quando o estudo tornou-se público em 1972, 28 homens tinham morrido de sífilis, 100 outros tinham falecido por causa de complicações relacionadas com essa doença. Pelo menos 40 esposas tinham sido infectadas, e 19 crianças contraíram a moléstia ao nascerem.”
(Retirado do CNN Interactive’s Tuskegee Study Website)

É difícil imaginar algo tão cruel como essa história. É por isso que muitas pessoas passaram a usar o caso da Pesquisa Tuskegee em comparações com outros tópicos como aborto, controle de armas, e experimentos em campos de concentração. Há razões para esse tipo de comparação? Nesta WebQuest, você decidirá.

No nosso caso (Bullying), a introdução pode ser desenvolvida em atividades que envolvam vídeo e música no âmbito da escola. No programa de TV o que precisa ser apresentado são as situações que serão mostradas aos alunos para que estes vejam que é importante fazer o que propõe o Desafio. Se conseguirmos provocar interesse, o s alunos estudarão o tema cientes da importância de se prepararem bem para realizar a tarefa que será proposta.

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Objetivos Educacionais de WebGincanas

agosto 22, 2020

No momento estou conversando com um grupo de educadores possibilidades de uso do modelo WebGincana no ensino remoto. As WebGincanas nasceram por volta de 2004 quando adaptei as Caças ao Tesouro para um contexto em que os alunos não só buscassem informação, mas também as usassem de modo lúdico. O modelo não nasceu pronto. Ele foi ganhando corpo na medida em que eu e meus alunos criávamos buscas gincaneiras nos laboratórios de informática da universidade. Em 2006, a ideia de WebGincanas jã estava melhor delineada. Por isso, antes de começar as minhas aulas de tecnologia educacional naquele ano, escrevi um texto curto sobre os objetivos educacionais das WebGincanas. Tal texto segue reproduzido em sua forma original.

Objetivos Educacionais do Modelo WebGincana

Jarbas Novelino Barato

WebGincana é um modelo de organização da informação para fins educacionais que articula a dinâmica das velhas caças ao tesouro (Scavenger Hunts), usos da Web e o espírito das gincanas. Se bem feita, ela pode ser um modo divertido de aprender usando computadores, colaborando com colegas e utilizando as informações descobertas em diversos contextos de vida. Mas ela não é apenas uma alternativa interessante de aprender. Ela é um modo de trabalhar que procura alcançar determinados objetivos educacionais.  WebGincana bem planejada é um trabalho didático que procura concretizar os seguintes fins educacionais:

  • Capacitar os alunos a fazerem leituras rápidas, mas atentas, de textos que podem conter alguma informação de interesse imediato

Uma habilidade importante em buscas de informações é a de percorrer textos tentando encontrar pistas que possam indicar algum traço daquilo que se procura. Essa habilidade não é equiparável á leitura convencional. Ela é mais uma “varredura” à procura de sinais que possam levar o leitor à informação procurada. Embora não se ensine tal tipo de leitura, as pessoas vão construindo na vida estratégias que as ajudem a trabalhar com textos da maneira aqui indicada. Com o aumento expressivo de informações em nosso mundo, a habilidade de executar varreduras guiadas por algum interesse vem crescendo dia a dia. A habilidade em foco é particularmente importante no espaço Web. Os usuários da internet precisam desenvolver cada vez mais a capacidade de leitura aqui indicada para poder navegar com mais segurança e proveito pelos imensos oceanos de informação da rede mundial de computadores.

O modelo WebGincana tem como uma de suas principais finalidades ajudar as pessoas a desenvolverem a habilidade aqui descrita. O que se quer numa WebGincana é que os alunos construam boas estratégias de “varredura” de textos. Tais estratégias serão certamente construídas desde que o desafio proposto seja interessante.

  • Aguçar a curiosidade para um assunto que começa a ser abordado no programa de estudos

 Boas WebGincanas propõem questões curiosas, surpreendentes, desafiadoras. Elas possuem certa dimensão lúdica. O que se visa com isso não é apenas o prazer do jogo, mas sobretudo um começo de conversa atraente sobre o assunto.

  • Proporcionar uso sistemático e bem estruturado de recursos da internet

Usar a internet em educação depende sobretudo de duas condições: imaginação dos educadores e existência de boas ferramentas. As WebGincanas são um item que pode ser incluído na relação de ferramentas úteis para que os educadores possam usar a internet de uma maneira sistemática e bem estruturada. É preciso reparar que sem boas ferramentas intelectuais o uso dos recursos da internet  pode ficar muito limitado. Por outro lado, convém ressaltar que as WebGincanas são apenas mais uma ferramenta, capaz de atender a algumas finalidades que os educadores precisam conhecer muito bem.

  • Modernizar modos de fazer educação

 As novas tecnologias de comunicação e informação já ocupam um espaço importante em nosso mundo, mas têm uso ainda limitado em educação. No geral, as escolas continuam a usar os meios tradicionais. As iniciativas de uso de novas mídias ainda são muito tímidas em educação. Em parte isso acontece por falta de boas ferramentas. O modelo WebGincana pretende ajudar os educadores a superar a limitação aqui apontada, sugerindo uma alternativa interessante de uso da internet.

  • Incentivar a pesquisa

Pesquisar é uma atividade que depende da percepção de desafios que o pesquisador quer enfrentar. Não basta usar o termo pesquisa para desencadear buscas interessadas em qualquer área de saber. Por essa razão, a ordem “pesquisem na internet” não funciona. Pesquisas acontecem quando há uma situação que precisas ser esclarecida, explicada, entendida. A estrutura das WebGincanas procura dar sentido às buscas solicitadas e com isso possivelmente faz com que os alunos aprendam a gostar de “pesquisas’.

  • Promover trabalho cooperativo de aprendizagem

Tradicionais gincanas são sempre um jogo de grupos. Para ganhar o jogo é preciso que todos trabalhem como um time, distribuindo funções, dividindo as tarefas, discutindo estratégias etc. Espera-se que tudo isso que acontece em gincanas tradicionais venha a ocorrer em WebGinacanas bem planejadas. E, é claro, trabalhar com os outros de modo cooperativo é uma competência indispensável em nosso mundo.

  • Promover usos educacionais da internet

Todo mundo diz que a internet é um recurso formidável para a educação. É verdade. Mas,a rede mundial de computadores não é por definição um recurso feito para a educação. Para aproveitá-la é preciso contar com estratégias e métodos que ajudem os alunos a se organizarem para aprender na e com a internet. O modelo WebGincana foi feito para isso. Como já foi dito, tal modelo não é a única solução. Ele, porém, é um instrumento bastante útil para o fim aqui abordado.

  • Evitar o recorte-e-cola

Já é quase que folclórica a história de que os alunos vão à internet recortar e colar textos e figuras, sem ler e compreender o que copiaram. Mas a culpa por esse fenômeno não é devida à esperteza ou preguiça dos alunos. A origem disso está na falta de método em propostas dos educadores para usos da internet. Quando a pesquisa na internet tem uma base metodológica sólida fica impossível cortar e colar. E uma das alternativas metodológicas com essa característica é o modelo WebGincana.

Cumpre observar que as WebGinanas não foram inventadas para evitar o corte-e-cola. Elas foram inventadas para colocar os alunos em situações de busca de informações no espaço Web. E tais situações exigem leitura e compreensão dos textos que precisam ser trabalhados

  • Articular estudo no computador com atividades diversificadas de uso das informações

Em WebGincanas padrão as atividades propostas articulam buscas na internet com atividades que resultam em usos das informações encontradas no espaço Web. Essa é uma providência importante. O mundo virtual não é o mundo de nosso viver cotidiano. Informações precisam ser usadas em contextos significativos por dois motivos principais: aprendemos melhor quando usamos o conteúdo estudado, os dados obtidos em buscas na internet ganham sentido quando são utilizados em contextos significativos.

  • Fortalecer o espírito de equipe

Já se comentou aqui o caráter coletivo das WebGincanas. A explicitação do presente objetivo procura sublinhar tal aspecto. Gincana é um jogo de equipe.

Proporcionar aos professores um caminho simples de utilização de computadores para fins de aprendizagemMuitos professores não sabem por onde começar a usar computadores para atividades de ensino-aprendizagem. As WebGincanas podem ser um bom ponto de partida. Uma vantagem que elas oferecem para os iniciantes é a simplicidade. Como trabalham com saberes pouco complexos (conhecimentos, na taxonomia de Bloom), elas facilitam planejamento e produção. Bons professores, após rápida exposição ao modelo, podem se converter em autores de excelentes WebGincanas e propor assim usos muito proveitosos do laboratório de informática.

 

São Paulo, 02 de fevereiro de 2006.

Hoje eu talvez mudasse um pouco o subsídio que escrevi para meus alunos 16 anos atrás. Mantive o texto tal qual ele foi escrito com finalidades de registro. Mas, acho que ele ainda á um material aproveitável para quem queira utilizar o modelo WebGincana.

 

Definição de Tecnologia

agosto 18, 2020

Diversas vezes tenho insistido numa definição bem sintética de tecnologia educacional. Essa definição é a que segue:

 

TECNOLOGIA = FERRAMENTA + IMAGINAÇÃO

 

O terceiro elemento dessa fórmula é o que, na verdade, define tecnologia. Esta é acima de tudo imaginação, capacidade de inventar, capacidade de criar, capacidade de colocar as ferramentas a serviço dos sonhos humanos. Com essa definição ressalto que, em educação, tecnologia é sobretudo atividade dos professores. Sem essa atividade temos apenas uma abordagem instrumentista que deixa pessoas em segundo plano. Ou, para dizer de duas outras formas diferentes:

>>> Tecnologia é uma questão de cabeça, não de máquinas e equipamentos (Allison Rosset).

>>> Para que a tecnologia aconteça, é preciso que os professores tenham, concreta e figurativamente, a chave do laboratório (Al Rogers)

O que escrevi acima é uma introdução ao vídeo que acabo de descobrir e que foi gravado durante a Conferência de Aprendizagem Criativa, acontecida em Curitiba, 2018.

Tutorial para o OKMindmap

agosto 15, 2020

Estudos universitários

agosto 3, 2020

Me entrevistaram certa vez para uma revista que tinha a educação universitária como meta. Me mandaram as perguntas. Respondi. Acho que não publicaram, pois nunca recebi qualquer feedback. As perguntas não eram lá muito bem feitas. Esforcei-me para apresentar respostas bem arrumadas. Mas, acho que elas não eram o que a entrevistadora esperava. Segue uma das perguntas com a minha resposta, abordando como eu via os estudantes que ingressavam em cursos superiores.

 Durante os anos lecionando dentro do âmbito universitário, como você sentia o impacto da faculdade nos alunos recém-chegados? Como era essa adaptação? Eles acompanhavam bem os conteúdos aplicados?

Essa questão merece muitas explicações. Vou abordar nela alguns aspectos que não costumam ser muito comentados.

Começo com uma observação sobre um dos papeis que o ensino universitário vem desempenhado na atualidade, o de contenção da mão de obra juvenil. Estudar é uma forma de se preparação profissional. Mas, é também uma forma de retardar o ingresso no mercado de trabalho. Quanto mais anos os jovens passarem em bancos escolares, mais tempo ficarão afastados de um trabalho profissional relacionado com uma carreira e com uma biografia laboral significativa.

Não há nada de errado com o retardamento do ingresso dos jovens no mercado de trabalho. Isto está acontecendo por duas razões: demográfica e econômica. No campo demográfico, temos uma população que, em média, vive cada vez mais. E os adultos tendem a permanecer no trabalho até os setenta anos ou mais. Para equilibrar as coisas, não convém que os jovens comecem a trabalhar muito cedo. No campo econômico, não é fácil criar oportunidades de emprego para todos. Por essa razão a escola funciona como uma instância de ocupação para boa parte dos jovens. E, no mundo todo, o tempo de permanência em escolas aumenta cada vez mais. O número de universitários tende a crescer. Nos EUA, por exemplo, mais de 40% da população de 18 a 22 anos está nas universidades. No Brasil esse percentual é de mais ou menos 13%. Mas, os planos de governo, desde os tempos em que o Professor Paulo Renato era ministro da educação, são de chegar a 30%.

Mesmo com apenas 13% de jovens em idade própria na universidade, é comum no Brasil ouvir-se que é necessário fazer uma pós ou especialização. Em outras palavras, já se desenha uma situação de exigência de mais tempo nas escolas. Essa tendência indica que o diploma de graduação já não basta. Indica que os jovens permanecerão mais tempo ainda nos bancos escolares.

Não vou aprofundar o fenômeno do retardamento do ingresso de gente mais nova no mercado de trabalho, assim como da exigência de tempos cada vez mais longos de estudo. Creio que o que observei até aqui já fornece um contexto para que eu possa encaminhar uma resposta para sua pergunta.

Os jovens que chegam à universidade não tem informação clara sobre os mecanismos de retardamento de ingresso da mão de obra jovem no mercado de trabalho. Nem sabem que o curso superior, em muitos casos, é apenas um período de espera. Mas, eles vivenciam esses mecanismos demográficos e econômicos de nosso tempo. Embora não o digam, eles intuitivamente percebem que estão aguardando sua vez. Percebem que vai demorar certo tempo para que possam, de fato, começar algum trabalho promissor em termos de carreira. E sabem, intuitivamente, que os estudos universitários podem ter pouca relação com seu futuro no trabalho,

Há muitos anos, o máximo de escolarização que a maioria das pessoas podia esperar era “tirar o ginásio”. Ou seja, cursar oito anos de escola. E, aos 14 anos, o destino da maioria era o mercado de trabalho. Hoje, muitos jovens só vão ter o primeiro emprego por volta dos 22 anos. É certo que muitos estudantes universitários de cursos noturnos trabalham. Mas, quase sempre, veem seu trabalho como uma condição provisória. Sonham com um futuro muito melhor cuja porta é uma formação de nível superior. Estão, de certa forma, retardando o ingresso em profissões que de fato desejam exercer.

Ao lado disso, cresce cada vez mais os nem/nem entre jovens com idade entre 17 e 24 anos. Os nem/nens nem estudam, nem trabalham. Vivem com dependentes de seus pais ou avós. Esperam dias melhores. Ou talvez nada esperem. Alguns deles iniciaram estudos universitários e pararam, pois não conseguem ver com clareza seu futuro. Mais uma vez, é preciso dizer que este também é um fenômeno planetário. Há milhões de nem/nens nos Estados Unidos e Máxico, por exemplo.

Não desenhei o quadro completo sobre as mudanças que vêm acontecendo com relação ao papel que as universidades estão desempenhando como diques de uma mão de obra que não tem grandes chances de incorporação imediata a um mercado de trabalho promissor.

Esse meu comentário sobre demografia e papel de contenção de mão de obra desempenhado pelos estudos foi necessário para mostrar que a juventude de nosso tempo é uma juventude estendida. Ou seja, a duração dos anos juvenis agora vai muito longe, chegando perto dos trinta. Ou mesmo ultrapassando tal barreira

O que tem tudo que eu disse até agora com o impacto da faculdade nos alunos recém-chegados? Acho que a juventude mais estendida já não olha para a universidade com a mesma esperança dos tempos antigos. Embora não o diga explicitamente, o jovem sabe que “tirar” um curso superior não será mais garantia de bom emprego como antigamente. No geral, os jovens entram na universidade com bastante insegurança. Não sabem se fizeram a escolha certa. Por isso, é muito comum encontrar estudantes universitários que já mudaram de curso pelo menos uma vez.

Outra coisa que acontece com os estudantes universitários de hoje é uma expectativa de que o curso universitário seja apenas uma continuação do curso secundário. Vi muito isso nos tempos em que dei aula para primeiros anos. Convém explicar melhor essa observação.

A passagem do ensino médio para a universidade deveria ser uma ruptura. Estudos superiores deveriam ser muito diferentes dos estudos secundários. Exemplifico isso no tratamento das matérias. No segundo grau, geralmente o professor “mastiga” a matéria para os alunos. Isso não deveria ocorrer no ensino universitário. O jogo é outro. A matéria não deveria ser mastigada. O aluno deveria ter autonomia para fazer sínteses pessoais dos conteúdos que precisa aprender. E isso é uma mudança muito grande. Há poucos dias conversei com uma menina de dezessete anos que começou um curso superior na área de biologia na USP. Ela estava assustada porque os professores não “explicam” a matéria e dão muito material para os alunos estudarem. E essa menina não sabe estudar dessa forma tão independente. Ela gostaria que a matéria fosse mastigada pelo docente.

Meus alunos tinham dificuldade parecida com a dessa aluna do curso de biologia. Eles queriam que eu apresentasse uma matéria bem organizada e definisse com muita clareza o que iria cair na prova. Queriam, como eu disse, que a graduação fosse uma continuação suave do curso secundário.

Meus alunos viviam certa ilusão de que o curso superior lhes abriria automaticamente portas para o sucesso profissional. Mas, logo se desencantavam. Descobriam que o futuro não seria tão promissor. E muitos alunos começavam a pensar em mudar de curso.

Poucos alunos aceitavam a ruptura. Poucos alunos percebiam que no ensino superior esperava-se deles certa independência no estudo. Muitos queriam matéria mastigada.

Contra antecipação da Formação Profissional

agosto 3, 2020

Há bastante tempo, escrevi um artigo curto sobre formação profissional. Nele defendi duas ideias, com destaque para: 1. crítica à profissionalização precoce, 2. defesa de uma formação profissional pós-secundária. Trago o texto para cá em formato de imagem.

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Trabalho é dignidade

agosto 2, 2020

Trago para cá resenha que escrevi tempos atrás e que foi publicada no BTS.

 

Resenha

Trabalho é Dignidade: Visita a uma cafeteria e a uma oficina mecânica

 CRAWFORD, Matthew B. Shop Class as Soulcraft: An inquiry into the value of work. New York: Penguin Books, 2009. 245 p.

GUILL, Michael Gates. How Starbucks Saved My Life: A son of privilege learns to live like everyone else. New York: Gotham Books, 2007. 266 p.

O título desta resenha é uma afirmação do escritor F. Scott Fitzgerald, utilizada por Michael Gates Gill para definir o trabalho duro, intenso e comprometido de seus companheiros numa casa de café em Nova Iorque. Boa parte dos companheiros de Gates é composta por jovens negros que tiveram infância e adolescência vividas em duras condições dos bairros degradados da grande cidade americana. No trabalho e pelo trabalho, esses jovens ganharam a dignidade que lhes foi negada desde o nascimento. A afirmação de Fitzgerald é um convite para reflexões sobre relações entre o trabalhador e suas atividades. Trabalhar pode ser apenas um meio de ganhar a vida, mas pode também ser um modo de estar no mundo como um cidadão ou cidadã que tem orgulho do que faz.

O trabalho tem valores que lhes são intrínsecos. Pode ser uma atividade que nos traz muita satisfação, ou pode ser uma atividade vista apenas como meio de ganhar a vida. Neste último caso, ele produz a famosa síndrome da sexta feira, identificada em expressões de alívio de trabalhadores que proclamam alegria por escapar da chatice de suas profissões nos finais de semana.

Há quem sugira que a satisfação no trabalho deve ser responsabilidade do trabalhador. Nessa linha, competiria ao profissional descobrir como ele pode dar sentido ao que faz, não importando muito a natureza e conteúdo de suas atividades. Essa solução de tons moralistas não leva em conta o conteúdo do trabalho. De acordo com ela, qualquer profissão pode ser digna, dependendo da maneira pela qual o profissional lhe dá significação.

Estudos clássicos sobre degradação do trabalho como o de Paul Willis (1991) e o de Jean Rousselet (1974) mostram trabalhadores totalmente insatisfeitos com o que fazem para ganhar a vida. Na pesquisa feita por Willis junto a adolescentes ingleses de extração operária, as reações a propostas conformistas de valorização de um trabalho degradado são caracterizadas por revolta e ironia. No estudo feito por Rousselet sobre a situação laboral francesa no pós 68, o trabalho é visto com extremo pessimismo. Convém aqui oferecer uma mostra das observações feitas pelo sociólogo francês:

O fato de serem os valores relacionados com o trabalho os mais ameaçados hoje em dia não encontra apenas explicação no aparecimento de novas necessidades de consumo ou na generalização das inquietações juvenis.

Se tantos jovens, e até adultos, não hesitam em testemunhar nas suas opiniões ou condutas uma surpreendente indiferença por essa forma de atividade humana [trabalho], considerada, outrora, como essencial, é porque também, por seu lado, o progresso tecnológico começa a esvaziar a atividade laboral de significado moral, desumanizando-a de forma desordenada. (ROUSSELET, p. 137)

Essa visão pessimista do destino do trabalho na sociedade que se convencionou de chamar de pós-industrial perpassa toda a obra de Rousselet. Mais à frente, o autor observa:

O frequente exemplo das derrotas de toda a espécie só reforça em grande parte da juventude a ideia de que não existe, de fato, qualquer possibilidade razoável para a maioria dos trabalhadores escapar à mediocridade de sua condição e do determinismo sociocultural (ROUSSELET, p.172)

Análises como as de Willis e Rousselet não são muito lembradas nos dias de hoje. Elas contrariam o otimismo que predomina entre os formadores de opinião, educadores inclusos, que promovem a visão de que o trabalho está cada vez mais complexo, criativo e interessante por causa do ingresso crescente de tecnologia nas atividades produtivas. Há, porém, autores que apresentam um panorama em que a introdução de novas tecnologias segue caminho inverso, tendo como resultado empobrecimento do conteúdo do trabalho.

O trabalho numa oficina mecânica

Uma análise do valor do trabalho que merece atenção apareceu num livro que se tornou bestseller nos Estados Unidos: Shop Class as Soulcraft: An inquiry into the value of work, de Matthew B. Crawford.

Para apreciar Shop Class as Soulcraft é preciso inicialmente considerar quem é seu autor. Os pais de Crawford viveram intensamente os movimentos sociais dos anos sessenta. Seu pai é um cientista que pesquisa e ensina física em grandes universidades dos EUA. Sua mãe é uma ativista social que passou boa parte da vida em comunidades hippies. Na infância e adolescência, o autor não conheceu lares convencionais, pois vivia com a mãe nas comunidades das quais ela era membro muito ativo. Antes de iniciar seus estudos de segundo grau, Matthew Crawford trabalhou como eletricista. E em seus tempos de estudante, voltava a canteiros de obras nas férias de verão para exercer seu ofício na construção civil. No final da juventude, ele se interessou por mecânica de automóveis e, durante algum tempo, esteve empregado numa oficina que preparava carros de corrida. Matthew graduou-se em física. Em seus tempos de universidade encantou-se com filosofia e acabou fazendo mestrado e doutorado nessa área de conhecimento.

Após o doutorado, Crawford conseguiu emprego como executivo de uma organização não governamental, mantida por empresas da área de energia, que atua no campo de pesquisas sobre meio ambiente. Mas, ele não permaneceu muito tempo nesse emprego de prestígio e bem remunerado. Depois de sete meses à frente da organização, pediu demissão, comprou uma oficina de reparo de motos antigas e começou a ganhar a vida como mecânico. Cabe reparar que durante seus estudos de pós-doutorado, Crawford passava boa parte do tempo reparando motos num porão que ele alugou para exercer suas atividades no campo da mecânica.

O livro de Crawford analisa o trabalho a partir das experiências de vida do autor, um intelectual que resolveu deixar a academia para reparar motos que, muitas vezes, já saíram de linha ou cujas fábricas não mais existem. Esse destino profissional não é fruto de algum desastre ou de falta de oportunidades. É uma escolha motivada pela compreensão do que é o trabalho e de que atividades podem ser intelectualmente desafiadoras e psicologicamente compensadoras.

O título do livro faz referência a um ambiente que era comum em escolas americanas na primeira metade do século XX, a oficina (shop class).  A Escola Nova e certa saudade das virtudes que eram atribuídas ao trabalho artesanal levaram as escolas americanas a instalar em seus prédios oficinas onde predominavam atividades de marcenaria e mecânica. Tais oficinas não tinham finalidade de capacitar trabalhadores por meio de engajamento dos alunos em atividades que exigiam produção manual de obras, mas a de garantir aprendizagens de valores importantes relacionados com o trabalho. Dos anos de 1970 para cá, há um número expressivo de ferramentas de qualidade em lojas que vendem artigos de segunda mão. Boa parte dessas ferramentas vem de oficinas escolares que foram desativadas. Em seu lugar surgiram laboratórios de informática.

A desativação das oficinas em escolas americanas vem acontecendo em nome daquilo que se convencionou chamar de sociedade do conhecimento. Crawford vê a medida como um engano dos educadores e dos formadores de opinião. Para ele, o fim das oficinas sinaliza falta de compreensão quanto ao significado do trabalho manual. Em sua análise, o autor lembra observação de um dos filósofos de Mileto, Anaxágoras: “somos mais inteligentes que os outros animais porque usamos nossas mãos”. O autor também faz referência à fenomenologia de Heidegger, lembrando que os objetos que manipulamos revelam saberes que estão nas coisas. Essas observações são alguns dos argumentos que Crawford utiliza ao mostrar acerto de sua decisão em deixar um cargo executivo muito bem remunerado para passar boa parte do dia com as mãos sujas de graxa reparando motos. Voltarei a esse contraste entre o trabalho numa oficina e o trabalho na gestão de uma organização que articulava saberes científicos para justificar decisões de empresas da área de energia. Mas, antes disso, convém examinar outros temas que o autor desenvolve em seu livro.

O protótipo de local de trabalho hoje é um espaço onde o profissional dispõe de uma mesa, um computador e outros instrumentos de informação. A visão otimista vê em tal espaço um local típico da sociedade da informação. Crawford, com alguma ironia, apelida tal espaço de cubículo, fazendo referência a Dilbert, The Office, uma história em quadrinhos que mostra os absurdos da vida dos trabalhadores em ambientes burocráticos. Logo depois que concluiu o mestrado, ele acabou conseguindo um emprego numa empresa que produzia resenhas de artigos científicos para sistemas acadêmicos de informação. Ao ingressar em tal atividade no Vale do Silício, o jovem mestre acreditava que faria um trabalho intelectual significativo. Acreditava que sua aprendizagem nos estudos universitários seria expandida com a leitura dos trabalhos científicos que ele deveria fazer para produzir resenhas. Mas, essa esperança logo se desfaz. A empresa de informação que o contratou criou um padrão de resenhas que mecanizou o trabalho. Além disso, estabeleceu cotas absurdas de produtividade. Ao atingir a competência esperada, o autor tinha a inacreditável meta de resenhar 28 artigos diariamente. Cabe aqui uma observação incidental. Na literatura de ficção científica, produção automatizada de textos é explorada no romance de ficção científica The Tin Man (FRAYN, 1965). No ambiente editorial pintado pelo romance há uma máquina que produz automaticamente reportagens, bastando que lhe forneçam alguns termos chave que podem definir acontecimentos merecedores de veiculação pela imprensa. Essa padronização do discurso, permitindo que a produção de textos ocorra de modo automático foi também explorada no campo da inteligência artificial com o programa Eliza, criado por Joseph Weizenbaum (1976). Em todos esses casos, elimina-se o julgamento humano por meio de padrões e rotinas que garantem a produção de textos aparentemente bem articulados. Máquinas e programas produzem tais textos sem qualquer referência à semântica. Ou seja, não operam no território dos significados. Quando os seres humanos operam do mesmo modo, há um completo esvaziamento do conteúdo do trabalho intelectual.

Crawford examina argumento que poderia ser utilizado contra sua crítica ao esvaziamento do trabalho na empresa da área de informação que o contratou, o de que as resenhas deviam ter qualidade porque eram bem aceitas pelo mercado. O autor entende que tal argumento é equivocado quando se examina a questão da qualidade do trabalho. O mercado ás vezes converte em artigos respeitáveis, produtos sabidamente inferiores. Isso explica, segundo Crawford, o sucesso do Windows. E essa respeitabilidade é apenas função do predomínio de algo para o qual não temos alternativa viável. Ao analisar sua experiência no episódio da produção mecanizada de resenhas, o autor insiste na ideia de que é desejável que o trabalho deve ser animado por virtudes que lhes são intrínsecas. Uma atividade esvaziada de conteúdo desestimula o profissional. Fazer bem um trabalho é desejo que nasce do próprio trabalho, não de incentivos ou motivos externos.

A ideia de que ocupações satisfatórias são aquelas cujo conteúdo de trabalho desafia e envolve o trabalhador de modo significativo, destacada no caso do episódio da elaboração de resenhas, perpassa toda a obra. Crawford mostra que o trabalho do mecânico é prazeroso, envolvente e, muitas vezes, mais desafiador do ponto de vista intelectual que as profissões burocráticas, as profissões do cubículo. A identidade profissional do mecânico é significativa no trabalho e na vida. No trabalho ela requer um envolvimento com atividades, desafios e realizações próprias de uma atividade que vale a pena. Na vida, ela oferece muitas satisfações pelo reconhecimento que as pessoas manifestam por alguém cujas obras (reparo de motocicletas) podem ser concretamente apreciadas.

Com o empobrecimento do conteúdo em muitas áreas profissionais, surgiu um movimento que sugere que o trabalho pode ser enriquecido pela criatividade dos trabalhadores. Para examinar tal movimento, Crawford escolhe exemplos apresentados por Richard Florida em The Rise of the Creative Class. Florida afirma que há milhares de novos Einstein, membros de uma classe criativa nos negócios. E essa classe é formada por gente muito jovem capaz de propor mudanças que alavancam lucros das empresas. E Florida, segundo Crawford não identifica esses trabalhadores criativos com grandes executivos, mas com gente do chão de fábrica ou do balcão de loja que contribui com ideias para melhorar continuamente a produção. A medida da criatividade dos novos Eisnstein é verificada por meio do lucro das empresas. Todo o discurso otimista sobre a suposta criatividade dos empregados não se vincula à satisfação que o trabalho pode assegurar nas atividades cotidianas, mas no sucesso empresarial das pequenas invenções dos novos gênios. O autor critica duramente essa perspectiva de uma criatividade espontânea. Convém citar um trecho da obra de Crawford sobre tal questão:

A verdade, porém, é que a criatividade é um subproduto da mestria cultivada por meio de longa prática. Parece que ela é construída por meio da submissão (pense num músico praticando escalas, ou em Einstein aprendendo álgebra tensorial). Identificar criatividade com liberdade combina bem com a cultura do novo capitalismo, no qual o imperativo de flexibilidade não permite dedicação a uma tarefa por tempo suficiente para desenvolver reais competências. (p. 51)

O que Crawford chama de submissão no texto citado é um mergulho em atividades que envolvem completamente seu executor e exige que ele respeite e aprecie os insumos com os quais interage para realizar uma obra. Esse modo de ver explica a migração do executivo de um escritório de luxo de Washington para o chão de uma humilde oficina de reparo de motos. Nos trabalhos burocráticos atuais, os trabalhadores não percebem claramente qual é o objeto de suas atividades. Não desenvolvem compromisso com obras. Isso, segundo o autor, é acentuado no caso da gestão. Os gestores já não administram produção de obras, administram tão somente satisfação/insatisfação dos empregados.

Volto ao aspecto que mais chama a atenção na história de Matthew Crawford, a saga de um doutor em filosofia que virou mecânico e escreveu um livro para justificar sua decisão radical. A explicação para isso é apresentada mais profundamente no capítulo Thinking as Doing. O autor observa que o atual sistema de ensino privilegia o conhecimento do que (knowing that) que se opõe ao conhecimento do como (knowing how). No campo de preparação para o trabalho, isso gera aspirações pelo exercício de ocupações que não são condicionadas pelas circunstâncias. Mas…”Nós geralmente não encontramos as coisas de modo desinteressado [desencarnado], pela simples razão de que as coisas que não nos dizem respeito são incapazes de resultar em engajamento interessado” (p.163). Em suas análises, Crawford apresenta o trabalho do mecânico como uma atividade que engaja as pessoas em relações significativas com os outros. Esses outros são pessoas, equipamentos, ferramentas, insumos. Todos eles grávidos de significado, em situações desafiadoras. Nessas relações há um saber sempre em construção, pois esse mundo imediato precisa ser transformado de alguma maneira pelo profissional e, ao mesmo tempo, o transforma. O fazer inteligente, necessário para transformar outros significativos, faz do trabalho (trabalho do mecânico) uma atividade que compromete o trabalhador com o resultado de seu trabalho. Em termos cognitivos, trabalhos assim mostram que é preciso fazer para entender. Ao contrário do que sugere o pensamento hegemônico, o fazer tem grande riqueza intelectual. O autor recorre a Heidegger para mostrar isso:

Uma das questões centrais da ciência cognitiva , com raízes na epistemologia predominante, tem sido a de como conceber como nossa mente “representa” o mundo, uma vez que mundo e mente são concebidos como inteiramente distintos. Para Heidegger, não existe o problema de representação do mundo porque o mundo apresenta a si mesmo originalmente como algo no qual já estamos inseridos e excluídos. Os insights do filósofo sobre o caráter situado da cognição cotidiana lança uma luz sobre o conhecimento especializado (expert knowledge), como o de bombeiros e mecânicos, que também está inerentemente situado. (p. 164)

Com a citação que faz referência a Heidegger, eu quis enfatizar as dimensões epistemológicas do fazer propostas por Crawford. Essas dimensões desafiam o lugar comum de um par antitético que assombra a educação, teoria e prática. O filósofo travestido de mecânico mostra que esse tradicional modo de ver é um equívoco que resulta em depreciação de trabalhos nos quais predominam atividades manuais. As transações entre sujeito e objetos naquilo que Heidegger chama de saber local são um conhecimento envolvente e significativo. Sem elas, o saber abstrato, proposicional, o saber do que, não poderia ser elaborado.

Os aspectos epistemológicos propostos por Crawford são interessantes e podem nos ajudar a superar dualismos que acabam resultando em visões equivocadas sobre a natureza do trabalho. Quero encerrar minhas considerações sobre Shop Class as Soulcraft, dando necessário destaque ás análises do autor sobre as dimensões valorativas de trabalhos manuais envolventes como o de mecânico, marceneiro, eletricista. Nessas ocupações, os profissionais, dado seu envolvimento com o significado intrínseco do que fazem, sempre estão comprometidos com a obra. Essa circunstância tem desdobramentos importantes no campo da ética. O atendimento a demandas de qualidade, postas pela natureza dos objetos com os quais o profissional interage, garantem realização de um trabalho que respeita todos os atores diretamente envolvidos. O mecânico tem profundo compromisso com as motos que repara, com os clientes que solicitam seus serviços e com a comunidade de prática com a qual ele compartilha os saberes da profissão. Para tudo isso cabe a frase de Fitzgerald: trabalho é dignidade.

O trabalho numa cafeteria

Outro olhar sobre o trabalho manual e as possibilidades que esse oferece para a realização pessoal é oferecido por livro que conta uma história inusitada: How Starbucks Saved My Life: A son of privilege learns to live like everyone else. A obra narra história de um executivo desempregado que, aos sessenta e três anos começou carreira nova como barista numa loja da Starbucks. O autor do livro é Michael Gates Gill, antigo diretor de criação de uma das maiores agência de propaganda do planeta. Depois de vinte e cinco anos dedicados à corporação, Gates é demitido. Profissional maduro, ele não procura nova colocação no mercado, parte para a carreira solo de consultor. No início, contando com antigos clientes da sua carteira dos tempos em que atuava na agência, consegue alguns contratos. Com o tempo, os clientes vão rareando, até a ocasião em que ninguém mais procura seus serviços. Por acaso, uma gerente da Starbucks lhe pergunta se ele não quer um emprego. Intrigado, mas desesperado com a falta de perspectiva que enfrentava, ele diz que sim. Tempos depois, de acordo com cronograma de recrutamento da empresa, ele é chamado e, apesar de sua idade madura e falta de experiência, é contratado.

Gates entra num mundo inteiramente desconhecido para ele. Seus companheiros de trabalho são muito jovens, quase todos negros, com pouca escolaridade, vindos de famílias desestruturadas. A própria gerente que lhe ofereceu trabalho era uma jovem afro-americana de vinte e oito anos que passara a infância e adolescência em lares provisórios. O autor, pelo contrário, era filho de família da elite, graduado por Yale.

O livro narra aventuras de aprendizagem das tarefas típicas de um barista da Starbucks, envolvendo higienização da loja, elaboração de vinte e oito diferentes tipos de café, atividades de abertura e de fechamento da loja, cuidados de reposição de itens do cardápio, operação do caixa, relacionamento com clientes. Para Gates não foi fácil aprender e desempenhar algumas atividades que demandavam muita agilidade física e força. Além disso, sua inabilidade para lidar com dinheiro gerou pavor no momento em que foi escalado para operar um dos caixas da loja. Ao mesmo tempo em que ele vai aprendendo a profissão de barista, cresce sua admiração por boa parte de seus parceiros na loja. Muito jovens, pobres, com experiências que beiraram a marginalidade, os companheiros de Gates trabalham como muita competência e desenvolvem um sentimento de dignidade que ele passa a admirar. Ao mesmo tempo, o antigo diretor de criação vai conseguindo enxergar que o trabalho braçal na loja de café demanda inteligência e envolvimento dos quais ele sequer suspeitava em seus tempos de executivo.

Gates compara sua vida de barista com sua vida de executivo. E, surpreendentemente, sugere que suas atividades na cafeteria são muito mais envolventes e compensadoras que suas atividades como publicitário. O livro é de uma literatura leve, sem voos profundos como os realizados por Crawford em Shop Class As Soulcraft. Mas, vale a pena considerá-lo em reflexões sobre o trabalho. O autor viveu uma experiência rara para os filhos da elite e apresenta uma contribuição que pode iluminar nossa compreensão sobre o significado do trabalho que envolve o profissional e dá sentido à sua vida.

Gates e Crawford falam de dignidade do trabalho com base em experiências que, infelizmente, merecem pouca atenção em análises sobre educação profissional e tecnológica. Vale a pena visitar a obra de um e outro para rever modos de olhar para a formação de trabalhadores em todos os níveis de ensino. Vale a pena visitar a obra de um e outro para verificar como se manifestam os valores que são intrínsecos ao trabalho.

 

Referências

FRAYN,  M. The Tin Man. New York: Ace Publishing Corporation, 1965.

ROUSSELET, J. A Alergia ao Trabalho. Lisboa: Edições 70, 1974.

WEIZENBAUM, J. Computer Power and Human Reason: From judgment to calculation. San Francisco: W. H. Freeman and Company, 1976.

WILLIS, P. Aprendendo a Ser Trabalhador: Escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

 

Jarbas Novelino Barato. Professor. Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Tecnologia Educacional pela San Diego State University (SDSU).