Em 2015, um jovem de quinze anos foi morto pela polícia no Rio de Janeiro. Registrou-se que ele e amigos estavam armados. Essa versão oficial foi desmentida por um vídeo gravado ao acaso pelo celular do rapaz assassinado. A gravação não mostra imagens da ação dos soldados, mas a trilha sonora, de cerca de quinze minutos, revela ataque a jovens que conversavam pacificamente na rua e que não estavam armados. O jovem assassinado era negro. Negros também eram seus amigos atacados pela polícia. Segue foto do rapaz. Se você clicar sobre ela verá a matéria publicada pelo El Pais.
O caso desse moço não é um fato isolado. Ele é mais um numa série de assassinatos de jovens negros no Brasil. Esse é um assunto que deveria ser discutido extensamente em nossas escolas. Não é. E há muita gente que diria que tal discussão é política e que política deve ficar fora das escolas.
Começo este post com um caso que reflete violência contra os negros em nosso país porque acabo de ler um artigo sobre educação crítica que começa com a descrição de uma caso de assassinato de jovem negro nos Estados Unidos. E os autores mostram que houve grande controvérsia sobre a questão de se discutir temas assim no espaço escolar. Eles opinam que tal discussão é necessária para a construção da cidadania.
Racismo, homofobia, assassinato de jovens negros, trabalho escravo, violência contra as mulheres são alguns dos temas que podem dar concretude ao que chamamos de educação crítica. Esta última não é um exercício formal de como raciocinar, mas uma prática voltada para o mundo em que vivemos.
O que apenas sugiro neste começo de conversa é abordado com muita propriedade no artigo de que falei. Vale ler a matéria e relacioná-la com o que anda acontecendo em nosso país. Professores e escolas vêm sofrendo violentas pressões para não fazerem educação crítica voltada para fatos sociais que precisam ser discutidos e analisados em profundidade, tanto na sociedade como nas escolas.
O artigo a que me refiro foi publicado na revista The Atlantic e é assinado por Jonathan Zimmerman e Emily Robertson, professores de importantes universidades americanas. Como muitos amigos não leem inglês com facilidade, resolvi cometer tradução do texto que saiu no The Atlantic. É uma tradução livre que não passou por necessárias revisões, mas acho que ela dá uma boa ideia do que apresenta o artigo.
Argumentos a favor da educação crítica
Jonathan Zimmerman e Emily Robertson
The Atlantic April 26, 2017

No dia 9 de agosto de 2014, o policial Darren Wilson atirou e matou Michael Brown nas ruas de Ferguson, Missouri. Wilson é branco; Brown era negro e estava desarmado. Em poucos dias Ferguson foi tomada por violentos protestos. E em muitas outras cidades americanas, milhares de manifestantes foram às ruas para condenar o racismo e a brutalidade da polícia.
Algumas escolas em Ferguson prorrogaram a volta às aulas para permitir que o pessoal da limpeza retirasse os detritos deixados pelos protestos e para se assegurarem de que os alunos poderiam ser transportados em segurança. Quando finalmente abriram suas portas, as escolas tiveram que decidir como – e se – abordar o assassinato de Brown e o que veio depois. Por todo o país, os participantes dos protestos cantavam “A Vida dos Negros Importa”. Como iriam os professores da área de Ferguson fazer com que a controvérsia tivesse sentido, e com que finalidade?
Sem nenhuma surpresa, as abordagens docentes variaram. Em University City, um subúrbio [vale lembrar que em cidades americana subúrbios são áreas afluentes] que se limita com St Louis, um professor levou os alunos a uma “discussão livre” sobre raça, justiça criminal, e desigualdade. “Eles são capazes de desconstruir os assuntos olhando para coisas como pobreza, educação, militarização das forças policiais, e percepção de que o país e o mundo tinham de que St. Louis passou por uma turbulência” declarou orgulhosamente o professor. Mas, às margens do Mississippi, em Edwardsville, Illinois, as autoridades escolares orientaram os professores a “mudar de assunto” sempre que o caso de Ferguson emergisse na classe. E em Riverview Gardens, o distrito em que Brown foi morto, os dirigentes disseram aos professores para falar do assunto apenas quando os alunos o levantassem. Se os alunos ”se mostrassem emocionalmente envolvidos com a situação”, os professores eram orientados a encaminha-los á orientação educacional e serviço social da escola.
Edwardsville é um distrito de maioria branca; Riverview Gardens é um distrito de maioria negra. Mas, em ambos os lugares, as razões para restringir o debate eram as mesmas: o medo de que os professores estariam inserindo seus próprios vieses – e botando fogo numa situação já muito volátil. O foco central da preocupação era o bem estar psicológico dos estudantes, não o seu crescimento intelectual e político. De fato, para muitos educadores na região, “política” era justamente o que as escolas deviam evitar. Ressaltavam-se visões de alunos emocionalmente frágeis, com elevada raiva e, possivelmente, violência decorrentes da situação de Ferguson. Mas talvez esse seja o caminho errado; as escolas públicas talvez devam abordar temas controversos que elas frequentemente evitam. O episódio de Ferguson merecia atenção das escolas. O assunto era objeto de divergência entre especialistas e de interesse e preocupação públicos.
Na mídia e nos grupos sociais da internet, acadêmicos discutiram as origens das abordagens policiais em Ferguson e sua ligação mais ampla para as relações americanas de raça e de justiça criminal. E através do país, pessoalmente ou em redes sociais, milhões de cidadãos se engajaram amplamente, e muitas vezes de modo apaixonado, em conversações sobre o assunto. E é claro que foi precisamente o volume e a veemência da discussão pública que levou muitos educadores a evita-la nas escolas. E isso tem sido um tema recorrente na história da educação americana. Como mostram os exemplos de Ferguson, as pessoas simplesmente não confiam nos professores como profissionais capazes de engajar os alunos em conversas sobre assuntos controversos de maneira bem informada e sensível. E não se dá aos professores espaço para conduzirem essas discussões no tempo escolar, crescentemente dominado pela preparação para testes padronizados [os ENEM da vida!]. Como confirma um relato de Riverside Gardens, “há pouco tempo disponível no espaço escolar” para abordar casos como o de Ferguson e, ao mesmo tempo, preparar os alunos para testes em matemática e leitura, especialmente em escolas da periferia onde muitos alunos não são proficientes em tais áreas de saber. Na verdade, como as pesquisas repetidamente confirmam, os alunos mais pobres têm menos oportunidades que outros estudantes de examinar assuntos controversos no espaço escolar.
As escolas ensinam muitas coisas. Na maior parte das vezes, porém, elas não têm ensinado os alunos com se engajar em debates bem informados e racionais sobre as inúmeras diferenças que perpassam a sociedade. Em síntese, o compromisso retórico de “ensinar temas controversos” nas escolas americanas não teve reflexos notáveis no dia a dia das salas de aula. Por causa de uma formação insuficiente, alguns professores não têm background de conhecimento ou habilidades pedagógicas – ou ambos – para liderar discussões em profundidade sobre questões quentes da política. Acima de tudo, porém, os professores não têm autonomia profissional para fazê-lo. Isso acontece particularmente durante períodos de guerra, quando as escolas são impedidas de abordar a conduta militar americana. Mas, através da história americana – e no presente – os professores enfrentaram, formal e informalmente, restrições na discussão de assuntos políticos de todos os tipos. A elevação dos níveis de educação provavelmente aumentou essa pressão, envolvendo desafios que os cidadãos antes julgavam que deveriam ser responsabilidade dos professores, com credenciais e saberes superiores para tanto. “O professor de ensino médio perdeu de fato o relativo status nos anos recentes na medida em que os pais têm agora formação secundária” observou, em 1958, o eminente sociólogo David Reisman. “Enquanto o professora da pré-escola ganha admiração porque ela pode controlar várias dúzias de pré-alfabetizados cujas mães sequer conseguem controlar uma única criança, o professor de ciências sociais no ensino médio tem dificuldades para se colocar como mais preparado que os pais que declaram que sabem tanto quanto ele”.
Isso é mais verdadeiro ainda nos dias de hoje, na medida em que mais e mais pais têm ensino superior. Mas o professor de ensino médio – particularmente o que ensina estudos sociais – ainda enfrenta restrições mais agudas, por razões que Riesman apontou na metade do século passado. “Os professores de ensino médio podem ser rotulados de ‘controvertidos’ assim que qualquer discussão se torna acalorada ou se aproxime do lar”, escreveu Riesman. E o perigo é maior em estudos sociais que “tanto pode refletir o que está nos jornais como pode se converter em notícia”. Em muitas comunidades isso é um grande risco para os professores de estudos sociais. Por isso, muitos deles ensinam o que Riesman chamou de ‘irrelevâncias sociais’ – uma ladainha de clichês e pieguices – e evitam qualquer tema controverso que possa lhes trazer aborrecimentos com alguma parte da população [pais, opinião pública, formadores de opinião etc.]. “Eles temem que a abordagem de ‘temas controversos’ em educação os exponha a críticas”, escreveu o futuro vice-presidente Hubert Humphrey, alguns anos antes. “Isso produziu insegurança incômoda que, por sua vez, forçou muitos professores a abandonar técnicas educacionais válidas”.
Seguramente, muitos outros conteúdos escolares – não apenas estudos sociais – envolvem potencialmente assuntos controversos. No desenvolvimento curricular, os professores lutam para confrontar suas obrigações de abordar tais assuntos com as inevitáveis pressões para evita-los. Nos anos vinte e trinta do século passado, por exemplo, os professores de ciências no ensino médio enfatizavam o ensino da física e da química; não davam, porém, grande importância à biologia. A razão era óbvia: ao contrário de outras ciências importantes, escreveu um observador, a biologia era uma ameaça que “poderia familiarizar rapazes e moças com a teoria da evolução”.
Reclamações dos cidadãos também restringiram incursões dos professores de inglês em assuntos controversos. Algumas vezes os professores foram impedidos de indicar The Catcher in the Rye, The adventures of Huckberry Finn, e outros livros ´banidos’ que provocam arrepios [e condenação] em reuniões de conselhos de educação [nos EUA há conselhos de educação em vários níveis, na própria escola, no distrito, no estado] por todo o país. Mesmo quando tais obras são permitidas, professores experimentam grandes limitações para discutir questões delicadas presentes no texto – especialmente aquelas que se referem a sexo. Finalmente, a educação sexual obrigatória também é alvo de constantes objeções da comunidade. Isso é um problema principalmente para professores no campo da saúde e da educação física, que muitas vezes eliminam de suas aulas qualquer coisa muito explícita – ou controversa – por medo de reações negativas das famílias.
Leis, dirigentes escolares e opinião da comunidade têm, todos eles, conspirado para evitar ou para desencorajar os professores americanos a discutir assuntos controversos em sala de aula. Isso não quer dizer que os professores sempre evitaram tais assuntos. Em 1953, no auge da Guerra Fria, uma pesquisa junto a professores de estudos sociais em Ohio revelou que os docentes estavam conduzindo discussões para determinar se o presidente Harry Truman deveria intervir na indústria de produção de aço, se Truman deveria ter demitido o general Douglas MacArthur, e se – como queria MacArthur – os Estados Unidos deveriam utilizar armas atômicas na Guerra da Coréia. No mesmo ano, em outra pesquisa, professores da cidade de Nova Iorque informavam que estavam conduzindo debates cujo foco era o direito da ‘China Vermelha’ ter assento nas Nações Unidas, ou se os comunistas tinham direito de lecionar em escolas públicas, ou se Julius e Ethel Rosenberg deveriam ser condenados à pena de morte por terem fornecido segredos atômicos para a União Soviética, ou se o senador Joseph McCarthy era “uma ameaça ou uma salvador da democracia americana”.
Depois que vários professores foram demitidos por serem considerados comunistas, muitos docentes admitiram que estavam com medo de discutir qualquer assunto controverso em suas aulas. Mas, a pesquisa indicou que seus temores eram infundados, ou pelo menos exagerados. “É preciso que os professores que têm esses medos ganhem coragem”, escreveu o autor da pesquisa. “O assunto que eles dizem ter medo de ensinar está sendo abordado por muitos de seus colegas em salas de aulas próximas, e em escolas da vizinhança. Tais professores estão impondo desnecessária censura a eles mesmos”.
No presente, algumas evidências sugerem que na verdade os professores superestimam as limitações para abordar assuntos controversos em suas aulas. Novos professores, particularmente, demonstram surpresa quando ouvem que velhos docentes discutem questões politicamente espinhosas com seus alunos. “Você os deixa falar sobre isso?!”, perguntaram os [novos] professores a uma colega quando ouviram falar sobre suas aulas. “Que opiniões você os deixa expressar?”. Em diversos sentidos, essas observações revelam a fraca preparação dos professores para um de seus deveres cívicos fundamentais: explorar assuntos controversos com futuros cidadãos. Elas também lembram que esse tipo de ensino continua a acontecer, apesar da pobreza de preparação profissional para a tarefa e – particularmente nos anos recentes – do encolhimento da proteção legal para ele.
Quando os Estados Unidos atacaram o Iraque em 1991, estudantes de uma escola de Pittsburgh foram para as ruas protestar contra a instituição que se recusou a abordar o assunto. Mas, doze anos depois, quando os EUA invadiram o Iraque de novo, uma escola suburbana de Nova Iorque patrocinou um dia inteiro de discussão sobre o fato. Em assembleia geral na quadra da escola, cinco estudantes e dois professores de estudos sociais apresentaram argumentos a favor e contra a guerra; a seguir os estudantes se dispersaram e voltaram às respectivas classes para continuar o debate. As salas de aula dos Estados Unidos oferecem muitas oportunidades para crescimento por meio de assuntos controversos. A questão é se os professores serão empoderados para abordar tais assuntos.
Este artigo foi adaptado da obra de Jonathan Zimmerman e Emily Robertson, The Case for Contention: Teaching Controversial Issues in American Schools.