Já escrevi muito sobre o tema que dá título a este post em tentativas de explicar que o fazer (a técnica) tem um status epistemológico específico. Em meus escritos recorri a observações de Johnson, um filósofo americano que escreveu belo livro sobre o assunto. Recorri também a Crawford, um intelectual que foi para a oficina de motos onde sabia que iria encontrar saberes tão ou mais desafiadores que os que havia enfrentado m seu doutorado de filosofia política.
Insisto muito na atenção que deve merecer o saber do trabalho. Mas, sei que quase nunca consigo sensibilizar pessoas formadas sob a influência de Descartes, que acham óbvia a divisão mente/corpo e que sempre, em educação, falam em teoria e prática como instâncias apartadas na vida.
Voltei ao tema porque acabo de ler um belíssimo trecho de A Caverna, do Saramago, que aborda a relação mão e cérebro pontuando todos os aspectos que julgo essenciais. E o grande escritor português faz isso de uma maneira fantástica.
No trecho a que me refiro, Saramago comenta as primeiras tentativas de um oleiro que começa a dar formas a figuras (bonecos) que até então não fabricara. E o escritor, a partir de manipulações com intenções de dar formas pensadas à argila, desenvolve um texto de inegável valor epistemológico.
Em outra ocasião pretendo examinar cada um dos aspetos sugeridos pelo escrito do grande romancista lusitano. Por agora, contento-me em divulgar o que ele escreveu:
Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada uma dos dedos das mãos, algures entre falange, falanginha e falangeta. Aquele outro órgao que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós mesmos para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, difusas, sobretudo pouco variadas, acerca de que as mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de um pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma ordem ás mãos e aos dedos, crê, ou finge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremidade dos braços, aparecesse feito. Nunca teve a curiosidade de se perguntar por que razão o resultado final dessa manipulação, sempre complexa até nas suas mais simples expressões, se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instrução às mãos. Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhes sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que se chamaria faca e uma coisa a que se chamaria ídolo. O cérebro da cabeça andou toda vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tato, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro… (SARAMAGO, José. A Caverna. Companhia das Letras: São Paulo, 2.000, p. 85-86)