História de um Plano de Educação Profissional
autor desconhecido
Era uma vez um educador formado por ótima faculdade de educação. Assim que recebeu o diploma, ele caiu na vida. Saiu a buscar emprego. Moço de sorte, não teve de procurar muito. Conseguiu colocação numa instituição de educação profissional. Salário bom, bem acima da média para recém-formados. Benefícios excelentes. Boas perspectivas de carreira. E, quase certamente, a instituição lhe daria apoio para ingresso no desejado mestrado na USP ou UNICAMP.
O chefe do jovem educador chamou-o pra uma conversa. Cara meio seco, falou pouco. Em síntese, o chefe queria que ele preparasse um plano de educação profissional para formar protéticos, soldadores e carpinteiros.
O moço saiu da sala do chefe ansioso para mostrar serviço. Sentou-se em sua mesa e começou a produzir o plano pedido.
O jovem educador, antes de qualquer coisa, procurou deixar claros os princípios necessários para fundamentar o plano de educação profissional encomendado. Seu ponto de partida foi a ideia de que os educandos têm, cada qual, seu próprio estilo de aprendizagem. Em seguida, esclareceu que seria preciso levar em conta os tipos de inteligência de cada um dos alunos. Esses dois princípios, explicados pelo brilhante jovem em começo de carreira, sugeriam uma educação capaz de respeitar a individualidade dos alunos.
E logo veio a segunda parte do plano. O jovem educador mergulhou fundo nas competências. Para tanto, em entrevistas com pessoal de RH, levantou a relação de competências esperadas pelo mercado para protéticos, soldadores e carpinteiros.
Essa parte do plano ressaltava de novo a necessidade de personalizar o ensino, usando para tanto as novas tecnologias da informação e comunicação, pois cada aluno deveria aprender no seu próprio ritmo e de acordo com seus tipos de inteligência.
O plano, olhando para as atuais tendências de mercado, dava destaque a competências nos campos da sociabilidade, da comunicação, do trabalho em equipe, da capacidade empreendedora, da criatividade, da prontidão para adaptar-se a uma mundo em contínua mudança.
O jovem educador não se esqueceu de competências nos campos da sustentabilidade, da parceria, do comportamento ético, da cidadania, do respeito às diferenças, da prontidão para utilizar as novas tecnologias digitais. Além disso, deixou a porta aberta para a incorporação de mais competências gerais cuja necessidade aflorasse no mercado.
Na terceira parte, o plano contemplava competências associadas às técnicas próprias de cada ocupação. Mas, o jovem educador não deixou de expressar um alerta para os leitores do plano. Tudo muda, disse ele. O que o profissional aprende a executar hoje tem vida curta. Em pouco tempo, a ciência e a tecnologia criarão novos modos de produzir e os trabalhadores precisarão deixar de lado velhas manhas do ofício para aprender novas. Por esse motivo, dizia ele, não se deve enfatizar as competências técnicas. Frasista, concluía: as competências técnicas já nascem velhas.
Na quarta parte do plano, nosso herói estabeleceu as linhas gerais sobre docência. Sugeriu contratação de professores com sólida fundamentação pedagógica e ótimos conhecimentos técnico-científicos.
O jovem educador insistiu na ideia de que professores são mediadores, são pontes capazes de facilitar travessias de aprendizagens dos alunos. Sugeriu que, em programas de educação continuada, os docentes fossem incentivados a assumir, cada vez mais, seu papel como mediadores no processo de aprendizagem.
No capítulo docência, o plano ressaltava que os atores principais são os alunos. Chamava atenção dos professores para olharem para os interesses dos estudantes. E lembrava que já não cabe mais, em nossas escolas, docentes cuja virtude principal é o domínio de conteúdos. Em tom de brincadeira, mas com a necessária firmeza, gostava de dizer que conteúdo em nossos dias é território do Tio Google. Em vez de perguntar a professores, os alunos vão atrás do Tio que sabe cada vez mais e este pode dar respostas imediatas para suas pesquisas.
O plano tinha muito mais. Mas o leitor talvez não queira saber de tudo tim-tim por tim-tim. De qualquer forma, é bom dizer algumas palavras sobre o capítulo final: avaliação.
O ponto central da proposta avaliativa do jovem educador era o de que os docentes e outros agentes educacionais da instituição deveriam dar peso maior para avanços que os alunos individualmente vinham obtendo em sua aprendizagem, no sentido de desenvolver a autoestima da moçada. Não deixava de lembrar que cada um é cada um, e cada um deve ser comparado apenas consigo mesmo.
O plano do jovem educador foi aprovado, com elogios da alta direção. Virou referência na instituição. Outros educadores da casa foram incentivados a fazer planos parecidos. E o moço brilhante, que escreveu o plano, ganhou merecida promoção.
Leitores acostumados com histórias felizes como esta, devem estar achando que já é hora de encerrar a conversa com a moral da história. Mas, por causa de um acidente, é preciso continuar com a narrativa. Vamos, pois, ao acidente.
O elogiado plano foi parar nas mãos de um velho educador que começou sua carreira numa IREP (Inspetoria Regional do Ensino Profissional) no final dos anos de 1950.
Com a nova LDB de 1961, o velho educador, na época ainda muito novinho, foi removido para a diretoria de ensino livre da Secretaria da Educação, um setor sem importância e glamour que cuidava de cursos tais como os de datilografia, corte e costura, auxiliar de cozinha.
O velho se aposentou na função em 1995. Mas continua na ativa, atuando voluntariamente como coordenador de projetos de formação de trabalhadores no sindicato das costureiras.
Por um dos azares ou sortes da vida, o velho educador é tio avô do nosso herói. Por isso, depois de ler o plano, ele chamou o sobrinho para uma conversa turbinada por generosas doses de chope no Bar do Leo.

Foto do interior do Bar do Leo. Local onde vale a pena conversar sobre tudo, educação inclusa.
O velho falou muito, tentando encantar o sobrinho com outra visão de educação profissional. Segue aqui um resumo muito resumido da fala do antigo inspetor de IREP.
Na primeira e segunda parte, ele disse ao sobrinho, você enfatiza em demasia a noção de individualização na aprendizagem. Não aprendemos isoladamente. Aprendemos com os outros. Aprendemos em companhia. Aprendemos com os companheiros.
O sobrinho disse ao velho que a crítica dele era coisa antiga. O mundo mudou. Mas o tio era um idoso muito atualizado. Sacou de sua sacola de algodão um livrinho que foi eleito uma das dez melhores obras de educação da segunda metade do século XX: Common Knowledge: The developmentof understanding in the classroom, obra de de Derek Edwards e Neil Mercer, dos idos de 1989
O estudo que o antigo inspetor mostrou para o jovem educador fornece evidências de que aprendemos em processo de compartilhamento de saberes, negociando significados. O sobrinho nunca tinha visto aquele livrinho. O tio lhe disse que os autores eram, e ainda são, pesquisadores importantes no campo do construtivismo.
O velho entrou com certa ironia na parte das competências. Disse ao sobrinho que o primeiro passo para conversar sobre conteúdos do trabalho é o diálogo com os trabalhadores, não com burocratas do RH.
Trabalho tem história. Trabalho tem arte. Trabalho tem compromisso. Trabalho tem sentido. Trabalho tem valor. O velho estava entusiasmado em sua oratória. Mostrou ao sobrinho que era preciso olhar para os trabalhadores com empatia, como gente que sabe, mas tem um saber que é invisível para intelectuais e senhores da academia. Recomendou a leitura de um belo livro de Mike Rose sobre o assunto: O Saber no Trabalho: Valorização da Inteligência do Trabalhador.
Mike (2007) vai até os trabalhadores. Os vê trabalhando. Conversa com eles simpaticamente. E vai descobrindo saberes muito ricos que podem ser vistos apenas por quem se aproxima dos profissionais, de sua história, de seus sonhos, de seus valores, de seu orgulho por trabalhos bem feitos, por sua arte.
Como Mike é um cara de esquerda, gente que o jovem educador olha com alguma desconfiança, o velho resolveu apresentar-lhe gente “neutra” que também faz alertas no sentido da necessidade de mergulhar profundamente nos saberes do trabalho.E para tanto, tirou da sacola um best-seller do New York Times, Shop Class as Soulcraft: An inquiry on the value of work, 2007.
O autor, Matthew Crawford, mostra que o trabalho de um mecânico que conserta motos antigas oferece desafios cognitivos muito mais aventurosos que o trabalho pseudo-intelectual de trabalhadores de escritório.
Ato contínuo, o idoso sacou de seu embornal mais um livro, de 2004, cujo autor insiste na ideia de que em educação profissional o ponto de partida essencial é o conteúdo do trabalho, a técnica, o fazer-saber: Educação Profissional: Saberes do Trabalho ou Saberes do Ócio?
O velho mudou de tom, deixou os livros de lado e disse ao sobrinho que o saber técnico é essencial. O esvaziamento, do conteúdo trabalho, disse o educador das antigas, é uma estratégia para simplificar o trabalho e rebaixar salários. E isso não é novo. Taylor começou tal história há quase um século. Assim, atribuir pouco peso a competências técnicas não é uma sacada de modernidade, a não ser que o sacador ache que Taylor ainda deve ditar como o trabalho deve ser realizado.
Na terceira tulipa de chope, o velho inspetor ligou seus motores teóricos, ignorados pelo sobrinho até aquela conversa no Bar do Leo. E o tiozinho foi fundo. Começou a falar de uma teoria arcana. Citou Jean Lave Etienne Wenger: Situated Learning: Legitimate Peripheral Participation .
Jean lave é responsável pela introdução do conceito de comunidade de prática no campo das ciências sociais. O conceito refinado por Lave teve como base o exame das aprendizagens que ocorrem no e pelo trabalho em ambientes onde os aprendizes aprendem fazendo.
[O tio seguiu em frente, mas, eu vou deixar a história de lado por um tempo e, em outra ocasião, comentarei com certa liberdade interpretativa as ideias de Lave no livrinho que ele apresentou ao jovem educador seu sobrinho]
O velho tinha um repertório imenso – para surpresa de seu sobrinho. Disse ao moço que estava meio cansado e que poderia continuar a conversa outro dia, talvez no Brahma ou num belo boteco chamado Juriti.

O Juriti é um boteco que fica no Cambuci, SP. Trago para cá foto do balcão da casa. Você não precisa ler cardápios para saber o que há de tira gosto na casa, basta olhar o que está exposto no balcão.
O jovem educador ficou abalado. Sentiu que suas convicções eram ingênuas, meio ceguetas. Prometeu que iria prestar atenção no saber dos trabalhadores dali para frente e começou a admirar a sabedoria do tiozinho que ficou tanto tempo cuidando da inspeção de cursos livres, atividade aparentemente pobre e pouco sintonizada com os avanços das ciências da educação. Mas, aprendeu a lição. Começou a olhar para seu plano como uma bobagem de educador que não se comprometeu com o trabalho e com os trabalhadores.
MORAL DA ESTÓRIA: o trabalho tem muitos saberes que não se manifestam para educadores que acham que a formação profissional é uma prima pobre da educação.