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Formação de professores em educação profissional

março 3, 2016

ensino medio unescoEm 2008, participei de um simpósio organizado pela UNESCO para abordar o ensino médio integrado. A organização me pediu para introduzir a questão de formação de professores em educação profissional. Minha intervenção aconteceu numa fala breve, cujo texto foi publicado no livro que registra o citado simpósio: Ensino Médio e Educação Profissional: Desafios da Integração. Minha fala aparece a partir da página 202, sob o titulo “O saber do trabalho e formação de docentes.

No mesmo livro, há um capítulo que aborda os eixos centrais do simpósio: “Juventude, trabalho e educação: balanço interpretativo do simpósio”, texto que escrevi por solicitação da UNESCO. (cf. página 247 e seguintes).

Meus textos podem ser lidos no livro disponível na internet para leitura e cópia (repito o link,interessados podem clicar aqui). Mas, para quem quiser ler apenas minhas provocações sobre a formação de mestres em educação profissional, reproduzo aqui o pequeno texto que registra minha participação no simpósio:

 

O SABER DO TRABALHO E A FORMAÇÃO DE DOCENTES

Comentarista:
Jarbas Novelino Barato

Se o trabalho é concebido como princípio orientador da ação educativa, a atividade docente relaciona-se à natureza do aprender a trabalhar e não importa muito se isso acontece no ensino médio integrado ou concomitante, no ensino profissional pós-secundário e na qualificação.
Vou procurar ser breve, apresentando aqui algumas ideias sobre aprendizagem e trabalho com a intenção de provocar discussão.

TRABALHO E MERCADO

Cláudio Salm, em sua tese de doutorado, fez um reparo importante sobre a mania de se propor uma escola congruente com o mercado de trabalho. Ele observa que o capital usa a escola de acordo com seus interesses. Toda tentativa de estruturar uma escola congruente com o
mercado de trabalho é um esforço vão. Sempre que precisar, o capital mudará critérios, ignorando a escola que supostamente foi organizada de acordo com seus interesses. Para o capital, o que importa são as suas conveniências; e ele usa a escola de acordo com estas, não importando os planos que os educadores tenham feito para adequar educação a mercado.

O SABER NO E DO TRABALHO

Para se contrapor a uma educação orientada para o mercado e por ele, é preciso pensar em uma formação profissional voltada para o saber no e do trabalho. O saber do trabalho é uma questão pouco estudada, despertando quase nenhum interesse nos meios acadêmicos. Esta é, pelo menos, minha experiência pessoal. Tive dificuldades no doutorado, quando procurei discutir o saber que se constrói no interior das atividades produtivas.

Em conversas com minha orientadora e outros pesquisadores da universidade, eu tentava chamar atenção para detalhes que acontecem no interior do trabalho. Um dia, relatei minhas observações sobre a técnica de enrolar cabelos, mostrando a dinâmica do conhecimento exigido por esta prática profissional. A reação dos meus ouvintes foi de completo desinteresse e alguma complacência.

SABER DO TRABALHO E CIÊNCIA
No documento escrito pelo professor Amin Aur, há alguns registros que dão a impressão de que ciência e tecnologia geram o trabalho e sem elas este não teria sentido. É preciso considerar com mais cuidado essa noção quase hegemônica nos meios educacionais, porque o trabalho nasce antes da ciência. Nós somos o que somos e até fazemos ciência porque trabalhamos.

SUPOSTA IGNORÂNCIA DE ALGUMAS PROFISSÕES

Outra preocupação muito pessoal, biográfica, e que sempre tive receio de discutir com meus colegas da academia, é a de que existe uma perspectiva de julgar alguns trabalhos como embrutecedores, como atividades que exigem pouca ou nenhuma inteligência.
Há dois trabalhos sempre citados e tidos como embrutecedores em dois países diferentes: garçonete, nos Estados Unidos, e pedreiro, no Brasil.

Em ambos os casos, parece que as atividades dos citados profissionais são trabalhos sem inteligência. Garçonetes e pedreiros são vistos como gente que não sabe o que faz, nem tem ideia do próprio saber de seu trabalho.

Vale aqui lembrar um caso clássico: a história de Schmidt, o trabalhador instruído por Taylor para executar movimentos de acordo com critérios da organização científica do trabalho. Schmidt é caracterizado como alguém de inteligência limítrofe, mas esse “bruto”, na ocasião em que era instruído por Taylor, estava construindo a própria casa. Sabia fazer cálculos, sabia quanto de sua renda podia gastar para comprar material, sabia lidar com eletricidade, sabia muitas técnicas de construção. Não era o “bruto” que Taylor nos quer fazer crer.

Não tenho tempo para desenvolver as questões que apresentei de forma resumida e, supostamente, provocativa. Quero apenas deixar uma mensagem com base nelas: precisamos rever a questão do saber do trabalho.

O que tudo isso tem a ver com docência em educação profissional? Tem muito, pois o modo pelo qual os professores veem o saber no trabalho tem consequências na docência, na escolha de conteúdos, na escolha de enfoques didáticos.

A última provocação: sempre se afirma que os professores que vão trabalhar com educação profissional precisam fazer complementação pedagógica, caso contrário, não farão um bom trabalho didático, não darão boas aulas. Não tenho tanta certeza disso, pois acho que algumas complementações pedagógicas pioram o desempenho destes professores.

É interessante notar que ninguém fala em complementação laboral para professores no campo da formação profissional. Afinal de contas: como é que professores que nunca saíram da escola podem desenvolver sensibilidade necessária para adotar o trabalho como princípio pedagógico?
Educadores não costumam pensar nisso, mas se apressam em falar na necessidade de complementação pedagógica para profissionais que não passaram por faculdades de Educação. Tais complementações, em geral, ignoram as dinâmicas do aprender no interior das atividades produtivas. Ignoram as dinâmicas do saber, da elaboração do conhecimento que se estrutura no fazer cotidiano do trabalhador, e impõem uma didática nascida de práticas com conteúdos acadêmicos. Por causa disso, acho importante uma “complementação laboral”, lembrando uma observação que ouvi de José Carlos Peliano: “De vez em quando é preciso conhecer com as mãos e não apenas falar sobre uma coisa”.

Ao ler o documento elaborado pelo professor Amin, observei algumas coisas que estão sempre acontecendo, quando se fala em formação de professores na junção ou na encruzilhada entre educação e trabalho. Vou listá-las aqui, na esperança de que minhas observações possam merecer discussões.
• Às vezes há um entendimento de que, se a pessoa se concentra na técnica, está, sendo adestrada, pois aprende apenas a prática.
• A dualidade entre teoria e prática continua, mesmo quando se pensa em integração. Os professores da parte de educação profissional acabam sendo classificados de modo diferente dos demais docentes. O trabalho que fazem, como professores, é visto como uma atividade inferior à “formação científica”; seus salários e a forma do contrato de trabalho denunciam um tratamento que os considera professores de segunda categoria; a proposta de complementação pedagógica que lhes é imposta ignora sua experiência profissional.

Docentes da parte profissional são, muitas vezes, pessoas com pouca formação escolar e grande experiência em sua área de trabalho. Conheci um professor de cozinha que dizia querer aprender pedagogia. Assisti a algumas aulas dele e conclui que quem tinha de aprender era eu. Do ponto de vista de organização de um curso dentro de uma cozinha, ele tinha um domínio de espaço e de tempo que nenhum curso de complementação pedagógica lhe daria.

Quase sempre, ao propormos complementação pedagógica, padecemos de uma cegueira que não é evidente: não conseguimos ver o conhecimento que se estrutura no fazer das profissões que supostamente queremos ensinar. Os próprios trabalhadores chamados para exercer docência costumam desconsiderar o conteúdo do trabalho de suas profissões de origem, pois estas são desqualificadas pela sociedade. Muitos fazeres são vistos como trabalho simples, banal, bruto. São, por isso, invisíveis; e invisíveis também são os profissionais que deles vivem.
• No trabalho do professor, de educação geral ou formação profissional, preocupa-me a invisibilidade do saber do trabalho. Preocupa-me a ideia de que a ciência e a tecnologia possam explicar integralmente o trabalho. Tal visão acadêmica acaba ignorando conhecimentos cuja natureza se forja nos fazeres de uma prática social iluminada pela obra.
• Acho que é preciso sempre se perguntar: qual é o papel do docente quando o trabalho é um conteúdo significativo a ser considerado na educação? Esta pergunta, a meu ver, não deve ser feita apenas em cursos técnicos. Ela vale para qualquer modalidade de educação que tenha como horizonte imediato a formação das pessoas para um trabalho concreto.

Termino, lendo um pequeno trecho da apresentação que fiz para a edição brasileira de uma obra de Mike Rose,O saber do trabalho:

“A riqueza cognitiva do ofício de garçonete tem equivalentes em saberes de cabeleireiros, marceneiros, soldadores, eletricistas e encanadores. Tem também uma mesma sina: é invisível aos olhos dos observadores incapazes de ver o trabalho como desdobramento constante de atos de inteligência. Vale observar que conhecimento invisível é diferente de conhecimento tácito, este visto como um saber não verbalizado que pode emergir a qualquer momento na vida de um trabalhador. O primeiro é um saber do qual o trabalhador tem consciência, mas não evidente para observadores incapazes de examinar as atividades produtivas a partir do olhar de quem as faz. Esta invisibilidade do trabalho lembra outra invisibilidade de grupos humanos, cuja existência é ignorada pelos poderosos. Lembra a invisibilidade do camponês índio do romance Garabombo, o invisível, de Manuel Scorza.”

Insisto: professores envolvidos com formação para o trabalho precisam abrir os olhos para aspectos que permanecem invisíveis para uma boa parte dos educadores. Esses aspectos podem mudar completamente os modos de ver a atuação docente em cursos de formação profissional.
Podem mudar completamente modos de ver a formação de professores.

 

 

 

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