O educador italiano Francesco Tonucci fez uma linda conferência sobre como deve ser a escola hoje e amanhã. Os organizadores lhe pediram para falar sobre a escola do futuro – “Como Puede Ser La Escuela Para Mañana?¨. O evento aconteceu em Granada, Espanha, em 13 de fevereiro de 2012. A fala de Tonucci aponta questões que não podem ser esquecidas. Revela esperança de um amanhã melhor. Enfatiza a importância da escola pública. Aponta aspectos que não costumam merecer destaque nos meios pedagógicos tradicionais.
Neste post, vou publicar minhas notas pessoais sobre a fala de Tonucci. No texto vou relatar o que ele disse e, ao mesmo tempo, estabelecer ligações da fala dele com outros autores e com algumas de minhas convicções sobre educação. Mas, o leitor interessado poderá fazer coisa melhor que ler meu escrito. Poderá clicar no vídeo que trago para cá e ouvir a fala do grande mestre. Ele é italiano, mas fala um espanhol perfeito. Dá para entender muito bem.
Se você não quiser continuar a ler meu texto e ir direto para a fala do Tonucci, clique aqui.
Antes de abordar a conferência, acho conveniente dizer algumas coisas sobre Tonucci. Ele é muito conhecido na Espanha, na Argentina, no Peru e na Colômbia. No Brasil, porém, poucos o conhecem.
Minha primeira informação sobre Tonucci aconteceu em 1979. Eu estava na Espanha e comprei exemplar da revista Cuadernos de Pedagogía. No número que adquiri havia uma entrevista com ele. Na matéria apareciam ideias muito interessantes. Uma delas era observação de que a escola de tempo integral é um equívoco, pois a educação formal deve ser uma reelaboração da experiência. “E que experiência tem uma criança cujo tempo se resume em ver televisão e passar o dia todo entre muros escolares?” Perguntava ele.
Outra observação referia-se ao uso inadequado do conceito de pesquisa nas escolas. A prática escolar leva os alunos entenderem pesquisa como um trabalho de recortar informações de alguma fonte e apresentar o resultado ao professor. Isso acaba com ideia de pesquisa como busca apaixonada de resposta para perguntas que merecem investigação.
Ao ler a entrevista, me identifiquei de imediato com esse pensador inquieto chamado Francesco Tonucci.
Acompanhei, quando pude, o trabalho de Tonucci, particularmente suas produções como chargista. Além de ser um pesquisador de renome, ele é um artista que sintetiza em desenhos geniais suas observações sobre educação. Uma mostra expressiva dos desenhos de Tonucci, que assina suas obras como FRATO, foi publicada em forma de livro no Brasil: Frato: 40 anos com olhos de criança, Porto Alegre: Artmed. É um livro que merece leitura. Ou melhor, merece olhadas meditativas. Escrevi resenha de tal obra e os interessados poderão acessá-la com um clique aqui.
Um dos desdobramentos das ideias de Tonucci acabou se convertendo em projeto que recebe o nome de Cidade das Crianças – La Cittá dei Bambini. O projeto foi concretizado em várias partes do mundo, dando voz às crianças nas cidades que o adotaram.
Há muito mais o que dizer sobre Francesco Tonucci. Mas, o dito basta. Vamos à palestra sobre a escola do futuro de acordo com os olhos de grande educador italiano, num relato com certos voos meus para lados que talvez não sejam muito acertados. Mas boas palestras produzem o que Lupicínio Rodrigues já disse em canção célebre: “o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar”.
Voei muito. Espero que você também voe.
Tonucci começa sua conversa observando que se a escola que temos não é boa para amanhã, ela também não é boa para hoje. Em outras palavras: ele sugere que é preciso ter já a escola ideal já, em vez de projetar desejos de melhoria para o futuro.
A seguir ele faz uma pergunta sobre uma comparação que é bastante comum. Muita gente costuma julgar a escola de hoje a partir de idealizações da escola do passado. Essa comparação não é correta. Para argumentar, Tonucci fala da “sua” escola. Era uma escola para poucos. Dos trinta companheiros que com ele começaram o ensino primário, apenas cinco chegaram ao quinto ano. Os demais ficaram pelo caminho. Foram rejeitados pelo sistema. Essa é uma história comum para a geração do conferencista e também para a minha.
A escola frequentada por Tonucci por volta dos anos de 1950 era pública e com pretensões de ser uma escola para todos. Mas, na época, filhos das classes populares estavam condenados ao fracasso. A fala de Tonucci sobre o problema me lembrou a crítica de Dom Lorenzo Milani (outro grande educador italiano) à escola pública da época. Essa crítica aparece num livro escrito pelos rapazes de Barbiana, alunos de Dom Lorenzo Milani na escola perdida num ermo das montanhas da Toscana que ganhou fama internacional como uma das experiências educacionais mais importantes do século XX. Escrevi resenha de três livros sobre Dom Milani e a Escola de Barbiana. Interessados podem acessar o texto com um clique aqui.
Os alunos que não fracassavam, observa Tonucci, eram aqueles que vinham de famílias que os apoiavam em casa. Mais que apoiar, essas famílias providenciavam um ambiente favorável à aprendizagem. Nos lares dessas crianças havia livros. Muitos pais liam para os filhos e estes viam seus genitores escrevendo. Tais crianças tinham uma formação literária no lar.
A escola completava obra que a família havia começado. Para os alunos das classes populares não havia o que complementar. Eles nada tinham daquilo que a escola estruturada para filhos de classe média esperava. Por isso eram reprovados logo no começo de suas vidas escolares.
Na escola, os alunos das “boas” famílias aprendiam história antiga e geografia exótica. A geografia do país e do continente lhes era conhecida. Eles viajavam com suas famílias. A história contemporânea entrava em suas casas por meio de jornais e de conversas de seus pais.
A escola frequentada por Tonucci no pós-guerra já era uma escola que pretendia atender a todas as crianças. Essa é uma marca das democracias europeias. E isso é muito bom. Mas, apesar de favorecer ingresso de todas as crianças, tal escola ainda não era uma escola para todos. Ela continuava a ser uma escola para os filhos das classes médias:
A ESCOLA PARA TODOS CONTINUAVA A SER UMA ESCOLA PARA POUCOS
E ainda hoje, a escola é uma proposta para crianças que sabem muito. Não é uma proposta para crianças que nada sabem. O conferencista identifica sinais disso na fala de uma professora:
>>> “Sinto muito, seu filho não consegue me acompanhar”.
Essa professora espera que os alunos venham preparados de suas casas. Espera que dominem uma linguagem que lhes permita acompanhar o que ela diz. Essa e muitas outras professoras e professores dirão que as famílias não ajudam a escola. Esses mestres, embora não o digam claramente, imaginam que a escola deve apenas complementar a educação que se recebe em casa. Esse é um ponto que nossos professores devem considerar com muita atenção, pois as famílias das classes populares não têm capital cultural que possa ser repassado para seus herdeiros. Para se apossarem de tal capital, os filhos das famílias menos privilegiadas dependem inteiramente da escola.
Precisamos de uma escola para crianças que não têm apoio da família, diz Tonucci. Precisamos de uma escola para todos.

Tonucci, atuando como FRATO, desenhou essa charge que mostra bem a questão do capital cultural da família e sua relação com a escola.
Faço aqui um comentário pessoal sobre essa ideia de Tonucci. Estamos acostumados a imaginar a escola para todos como um projeto de inclusão. Como uma oferta irrestrita para que toda e qualquer criança tenha oportunidade de estudar. Mas, não costumamos considerar a questão das crianças que nada trazem de suas casas em termos de educação formal, literária, intelectual. Elas chegam à escola sem nada.
Mais uma vez, isso me lembra Dom Lorenzo Milani. Na Escola de Barbiana ele propunha que os alunos vencessem a imensa barreira que os separava (intelectualmente) dos “filhos de papais”. Para tanto precisam de cuidado. Precisavam ganhar visibilidade diante dos educadores. Precisavam de mais tempo, de mais apoio, de mais atenção, de mais tudo. Precisavam de CUIDADO.
PRECISAMOS DE UMA ESCOLA PARA TODOS
Volto à fala do Tonucci.
Antes de seguir em frente, o educador italiano mostra diversos desenhos de FRATO, nome artístico com o qual assina suas charges. Levantei na internet a maior parte dos desenhos que Tonucci utilizou em sua fala. Trago-os para cá, com comentários curtos sobre cada um deles. Além disso, vou publicar alguns desenhos que ele não utilizou na palestra, mas têm tudo a ver com sua fala.

Tonucci observa que muitas vezes a pré-escola funciona apenas como um depósito de crianças. Essa charge vai ao ponto.

Muito se fala sobre a necessidade dos professores conhecerem seus alunos. Por isso pedem uma apresentação do estudante. Mas que informação os mestres passam sobre quem são?
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Essa é uma das imagens mais famosas desenhada por FRATO. Ela mostra a escola que temos.

Fala-se muito em imaginação. Mas, quando a imaginação emerge, muitos professores forçam a barra para que aconteça o “planejado”.
Tonucci deixou seus desenhos de lado para abordar os deveres de casa. Ele mostra que os deveres de casa são lições para quem sabe. O aluno que domina o assunto faz os exercícios e, se tiver alguma dúvida, terá assistência em casa. O aluno que não sabe nada aprende com os deveres. Não consegue fazer os exercícios. Não tem qualquer apoio em casa, pois seus pais nada sabem sobre o assunto. O dever penaliza os alunos ignorantes e pouco acrescenta para os alunos que já sabem.
Depois disso, o conferencista volta a mostrar mais um desenho:

Tonucci segue com outra observação sobre um assunto que conhecemos bem: a escola está sofrendo muito. Ela é uma escola de que ninguém gosta.
Dela não gostam os alunos. Isso não é novidade, diz o conferencista. Ele também não gostava da escola nos tempos de criança. Lembro aqui que Santo Agostinho, que frequentou a escola primária no século IV, já registra em Confissões, grande desgosto com a instituição que frequentou.
A lista de desgosto continua.
Da escola não gosta hoje a família. Isso é uma novidade. Antigamente, quando o aluno chegava em casa com notas baixas era censurado. A família apoiava as decisões da escola. Hoje não. Quando o aluno chega com notas baixas em casa os pais lhe dizem: “vamos à escola pedir explicações, exigir satisfação”. Na relação com as escolas, os pais passaram a ser “sindicalistas” sempre prontos a contestar tratamento que suas crias recebem.
Da escola não gostam os professores. Isso é trágico. A escola é uma das instituições com o maior número de profissionais com doenças ocupacionais, físicas e psicológicas. Por que os professores sofrem tanto?
Da escola não gosta a sociedade. Prova disso, diz Tonucci, é um número de reformas que temos visto em educação nos últimos anos. Cada governo novo quer reformar a educação. Cada político quer mudar algo ou acrescentar algo na escola. E o pior de tudo é que a escola não melhora com tanta reforma. Apesar de tanta mudança, uma coisa não muda, a escola para poucos.
Faço aqui um comentário pessoal. Em meus quarenta e poucos anos como educador, vi pelo menos dez reformas gerais em educação. E vi um número imenso de reformas pequenas. Soube de um número absurdo de propostas de deputados e de senadores propondo modificações no currículo, na metodologia, na carreira docente etc. Os efeitos de tudo isso foram pífios. E algumas reformas arrasaram boas experiências educacionais. Uma consequência arrasadora foi, por exemplo, o efeito da Lei 5692 para o ensino técnico no Estado de São Paulo. A reforma sucateou cerca de noventa escolas técnicas que tinham uma história bonita e faziam uma educação que era de muito boa qualidade.
Tonucci volta ao tema da escola para todos. Insiste na ideia de que a escola para todos não deve ser mais uma instituição que complementa o trabalho de formação cultural na família.
A seguir, o educador italiano sugere alguns princípios. Vou destacar os principais.
A escola deve oferecer bases culturais para todos os alunos. Ela deve dar a alunos que não contam com apoio familiar fundamentos culturais que permitam que as crianças possam aprender. Esse compromisso antecede a definição de programas.
A escola deve ser um ambiente bonito e rico. Deve ser um local onde se veem coisas bonitas. Nada daqueles escolões com espaços imensos e opressivos. É preciso que o espaço seja acolhedor. Além disso, é preciso que a escola seja um espaço rico em estímulos, não um local cinzento, desagradável, massificante.
Faço aqui mais um digressão. A questão do espaço escolar aparece de modo dramático no documentário High School, de Wiseman. Vale ver esse filme da década de 60. Ele ilustra o comentário feito por Tonucci. No minuto 37 do filme há uma tomada dos corredores da escola. Imensos. Vazios. Sem qualquer beleza. Um local para circulação da massa. Opressivos. Tristes. Em corredores como esse os alunos aprendem que a educação não é bonita… As imagens de Wiseman são impressionantes e merecem ser vistas com um vagar que nos leve a pensar nos efeitos da feiura dos ambientes escolares.
Se quiser ver High School, clique aqui.
A escola deve ser uma escola de abertura. Para Tonucci, abertura significa capacidade de escutar. Antes de propor qualquer coisa, a escola deve aprender a escutar os alunos. Escutar o que as crianças trazem para a escola. O conferencista brinca um pouco com o que as crianças hoje trazem fisicamente para a escola. E diz que não é disso que está falando. Não está falando dos materiais… E olhe que ele não conhece o costume brasileiro que penaliza as crianças com carregamentos de malas imensas de materiais escolares.
A gente já se acostumou com isso e não fala mais sobre o absurdo dessa ida e vinda de pesadas cargas das malas escolares. Minha filha mais velha fez o primeiro ano do ensino fundamental nos EUA e ela nada levava para escola; tudo que era necessário em seu dia a dia escolar era fornecido pela escola; ela ia para suas aulas sem nenhuma mala. Sonho que um dia teremos algo parecido no Brasil.
O que Tonucci diz é que a criança traz para a escola história de vida, experiências, esperanças, anseios. É para isso que a escola deve estar aberta. É isso que deve escutar.
Ao comentar esse princípio, Tonucci faz uma observação que vale considerar. Ele diz que o manual vai desaparecendo na medida em que se avança nos níveis de educação. E nos anos finais, nada há de manual nas escolas. Há uma perda significativa em termos de aprendizagem. Além disso, a medida sinaliza desvalorização do fazer manual. Confesso que nunca tivera reparado nisso. Mas, ao ouvir o educador italiano, vi que perdemos dimensões importantes do aprender e não nos damos conta das perdas. Esse é um tema que merece aprofundamento. A mão não educa o cérebro apenas no começo da história e da vida. Ela é um elemento fundamental de exploração do mundo, de aventuras de aprender em todas as idades.
Outro ponto: a escola deve oferecer oportunidades para todas as linguagens. Na escola para poucos, apenas uma linguagem é possível. A linguagem “culta” da classe média.
Tonucci sugere uma escola sem salas de aula. Em vez delas, acha que deveriam existir oficinas. Oficina de escrever. Oficina de leitura. De biologia. De física. Etc. Essa proposta de Tonucci me lembra outra, bem similar, do meu amigo Steen Larsen, educado da Dinamarca. Steen costuma dizer que a escola que temos é uma escola do auditório. E ela continua a ser uma escola do auditório mesmo quando o espaço escolar está abarrotado de máquinas eletrônicas. Steen sugere uma escola do laboratório, onde os alunos escutem menos e façam mais, realizem.
Acho que é preciso considerar com muita atenção a proposta de Tonucci. Precisamos de oficinas. As salas de aula devem desaparecer. Como diz meu amigo dinamarquês, precisamos eliminar a escola auditório e inaugurar a escola laboratório.
Tonucci fala da sala de aula. Diz que nela, o aluno precisa fazer constantes ajustes em seu cérebro cada vez que toca o sinal. Quando estava quase sintonizado com português, o sinal soa e ele precisa começar a pensar em matemática assim que a professora dessa disciplina entrar no recinto. Tudo é muito abstrato. Nada no ambiente facilita a mudança. Na mesma sala cabe, artificial e abstratamente, português, biologia, química, história etc. Tudo seria diferente se o aluno tivesse que entrar numa oficina. Nesse caso, o ambiente o ajudaria a sintonizar-se com o que é preciso aprender.
O ambiente tem importância fundamental para a aprendizagem.
Faço aqui um voo a partir da sugestão do educador italiano. O filósofo americano Mark Johnson propõe um entendimento muito interessante de estética. El diz que todo o conhecimento tem suas raízes na estética, no encontro do organismo com o ambiente que o cerca. O saber se estrutura a partir de tal relação, pois o organismo, em suas interações com o ambiente, procura dar sentido à experiência.
A sugestão de Johnson tem decorrências epistemológicas que mudam completamente nosso modo de ver o conhecimento. Creio que a proposta de Tonucci vai na mesma direção. O saber é, na sua origem, encarnado, não uma elaboração cerebrina sem qualquer relação com o mundo circundante. A sala de aula ignora isso e promove uma epistemologia cartesiana que separa mente e corpo. Há aqui um território que precisa ser muito explorado se quisermos mudar a arquitetura escolar em direção que facilite o aprender.
A escola deve desenvolver o melhor de cada aluno. Todos podem ser excelentes em alguma coisa. Cabe à escola descobrir isso e garantir que seus alunos sejam excelentes em algo de que gostem e no qual mergulhem com vontade.
Além de favorecer desenvolvimento da excelência em cada um, a escola, segundo Tonucci, precisa nos tornar felizes. Isso mesmo, um dos resultados que a escola deve buscar é a felicidade de seus alunos.
A partir do tema da felicidade, Tonucci faz uma crítica a abordagens economicistas que dizem que a escola tem que olhar para o mercado. O mercado diz que precisamos de engenheiros, e lá vai a escola atrás dessa demanda, enfatizando formação de engenheiros. A fala de Tonucci me lembra o discurso predominante sobre educação em nosso tempo. Fracassos da economia são atribuídos à escola que não está preparando a necessária mão de obra. O desemprego é explicado (aqui no Brasil) por causa da inexistência de mão de obra qualificada (culpa da educação, dizem economistas como o José Pastore).
Tonucci diz que a escola não tem que correr atrás do mercado. Gente feliz saberá encontrar caminhos em termos de trabalho. Por outro lado, gente supostamente qualificada, mas infeliz, vive uma tragédia, pois odeia o que faz. O compromisso da escola deve ser com a felicidade de seus fregueses (alunos) não com supostos desejos ou necessidades do mercado.
Outra observação: a escola deve educar cientificamente. Pela busca. Não pela comunicação de verdade. Ela deve ser investigativa, não dogmática.
E mais: deve ser uma escola da divergência. E a escola mais diversa é a pública. Nada contra a escola privada. Mas esta, no geral, é uma escola de iguais.
Essa opinião do educador italiano coincide com uma observação que fiz muitos anos atrás: “a escola privada é um ghetto com sinal trocado”. Nela se alojam filhos de pessoas que não querem ver suas crias se misturarem com a turba. Ela reduz ou elimina a diversidade. Há muito o que considerar sobre esse ponto, mas, para começo de conversa, basta o que está aqui registrado.
Na palestra, uma afirmação textual de Tonucci coincide com algo que digo sempre para pais que querem orientação sobre onde matricular seus filhos:
>>> “A melhor escola é a escola pública mais próxima de sua casa”.
Tonucci não tem qualquer preocupação com “proposta pedagógica”. Ele se preocupa com a natureza da instituição onde colocar os filhos para estudar. E como diversidade é importante para formar cidadãos que entendam o mundo em que vivem, qualquer escola pública é a melhor opção. Isso mexe muito com os valores de todos nós de classe média. Esse é outro tema que merece muito mais consideração. A fala de Tonucci abre o caminho, mas há um longo caminho a andar.
E o conferencista volta à diversidade. Ele comenta certas práticas que vão na contramão da diversidade. Uma dessas práticas é a de separar em grupos especiais alunos com algum tipo de problema. A desculpa para tanto é a de que em tais grupos será mais fácil garantir a recuperação dos alunos que apresentam alguma anomalia que deve ser corrigida. Feita a correção, eles voltarão à turmas comuns. O que acontece é que nunca os alunos segregados alcançam o que deles se espera para que possam participar de “turmas normais”. Eles continuarão em turmas especiais para sempre. Toda essa segregação ocorre por causa do pensamento dominante da escola para iguais.
A última linha de defesa da escola dos iguais é a formação de grupos por idade. Repete-se no caso mais um lance de segregação.
Tonucci usa o termo diversidade com muitas facetas. Embora ele não aborde todas elas, a gente infere que a diversidade abrange gênero, etnia, classe social , idade, origem sócio-econômica, origem cultural, dialetos, linguagens e muito mais. A escola precisa ser diversa como é o mundo.
Mudança de assunto. O educador italiano projeta uma de suas charges com o título Dichoso em espanhol (podemos traduzi-la por Sortudo). O desenho mostra um menino bem vestido, com sua mochila de estudante indo para escola, encontrando-se no caminho com um menino de rua sentado na caçada. Sobre a cabeça de ambos está um balão com a palavra “sortudo”. O menino de rua me lembra versos de uma canção de João do Vale, Minha História:
E quando era de noitinha, a meninada ia brincar
Vixe, como eu tinha inveja, de ver o Zezinho contar:
– O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar
– O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar
Deixo aqui indicação de uma das gravações da música do João. Está é do Rolando Boldrin.
Os versos do João traduzem o que pensa o menino de rua. Não encontrei referências musicais sobre o outro lado, de um menino que vai para a escola, mas tem inveja da sorte do menino de rua.
Tonucci lembra fala que ouviu de um menino de Bogotá, Colômbia.
O garoto de nove anos diz para a mãe: “eu quero ir à escola apenas uma vez por semana, é o que basta para o que lá aprendo; eu preciso dos outros dias para brincar”.
O conferencista diz que talvez esse menino tenha razão, pois ele entendeu muito bem o que a escola faz com e para ele. Esse comentário de Tonucci é acompanhado de uma observação sobre o tempo que se passa na escola. De cinco a oito horas por dia. Cinco dias por semana. Pelo menos nove meses por anos. Pelo menos dez anos na vida de qualquer cidadão no mundo de hoje.
E quais são os resultados? Decepcionantes, se consideramos investimento de tanto tempo nas atividades escolares. Esse é mais um motivo para que se repense a instituição escolar que temos. O tempo das crianças deveria ser utilizado de forma mais rica. As crianças são crianças apenas uma vez na vida, e por pouco tempo. Ao ouvir isso conclui: não podemos condenar as crianças a viver uma vida miserável na infância, pois elas não terão outra oportunidade.
O conferencista não avança análise em outra direção, a da sobrecarga de estudos e obrigações que os pais impõem a seus filhos, acabando completamente com tempos livres que poderiam ser aproveitados para jogos que as próprias crianças inventariam. Esse é um tema caro para Tonucci. Ele tem uma charge que vai ao ponto com pais falando do muito que seu filhos fazem, segurando pelas mãos as crias extenuadas: piano, inglês, xadrez, balé, informática e sei lá mais o que.
Copiei o desenho do livro Frato; 40 Anos Com Olhos de Criança. Vejam-no a seguir.

Tonucci volta ao tema da mudança das escolas por meio de leis. Insiste que não é o aparato legal que muda a educação. Não se pode obrigar a escola a mudar, diz ele. A afirmação me lembra documento da União Europeia que li nos anos setenta. Tal documento analisava repercussão das reformas educacionais em diversos países da Europa no século XX, reparando que os educadores continuavam com velhas práticas, congruentes com a antiga legislação. O gap que o documento constatava entre nova lei e prática educacional era de cerca de quarenta anos. Cito isso de memória e infelizmente não me tenho entre meus guardados tal documento. Minha lembrança, porém, ainda é muito viva.
O educador italiano diz que o móvel principal de mudanças em educação é o professor. Por isso, a condição fundamental para que a escola melhore e mude é a formação de bons professores. Ele sugere que os governos, em vez de ficarem insistindo em reformas, deveriam investir na formação de professores.
Essa fala me lembra muitas coisas. Registro aqui apenas uma delas. Nas últimas décadas houve muitas mudanças nas leis sobre formação de professores para o ensino fundamental. Essas leis acabaram com o antigo Curso Normal que formou ótimos professores (tive o privilégio de ter professores formados em tais cursos quando fiz o primário).
A formação dos mestres migrou para o nível superior, migrou para o curso de pedagogia. E tal curso foi reformado muitas e muitas vezes em espaços muito curtos de tempo. Os resultados foram desastrosos. Há pouquíssimos cursos de pedagogia que formam bons professores. E os homens da lei continuam a propor novas configurações legais para a pedagogia, para o currículo de formação de professores… Sempre com resultados que deixam a desejar. Continuamos a ter problemas para formar bons professores.
A última observação de Tonucci também é sobre formação de professores. Mas, ele pouco falou sobre isso. Preferiu recorrer a FRATO, mostrando charge em que um acadêmico vomita regras sobre como os professores devem ser. No desenho, o acadêmico está sentado num local mais elevado, e os professores-alunos estão também sentados em carteiras colocadas em filas. Tonucci lê os dizeres da charge. Reproduzo aqui tal texto:
>>> Acadêmico: Queridos professores, esses novos programas acabaram com as plataformas, com as carteiras alinhadas em fila, com o transmissivismo. Vamos lá.. Repitam comigo: esses novos programas…

E, para marcar posição, ele pede ao auditório que leia com ele: “ esses novos programas…”.
Minha conversa com Tonucci termina aqui. Ela poderia continuar, mas acho que o que escrevi é suficiente para que os amigos tenham uma boa notícia sobre a palestra do grande educador italiano e das coisas que me foram ocorrendo à media em que o ouvia.
Espero que, em comentários, amigos aqui do Boteco contribuam para a continuidade do papo.