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Aprender depois dos sessenta

outubro 21, 2014

Trago para cá texto que escrevi no Aprendente em 2008, registrando leitura que eu acabara de fazer

 

Faz umas três semanas que acabei de ler um livrinho surpreendente, How Starbucks Saved My Life. É uma história verdadeira e improvável. Michael Gates Gill, o autor, foi executivo de uma grande empresa de publicidade. Poderoso e amigo de gente também muito poderosa. Aos cinquenta e três anos foi demitido. Uma moça que ele ajudou a subir na empresa foi quem lhe comunicou a notícia.

Desempregado, Gates, criou uma consultoria e foi levando a vida até ficar completamente quebrado aos sessenta e dois anos. Aos sessenta e três esperava inutilmente chamado de algum cliente. Tomar café numa loja Starbucks era seu último luxo. Um dia, entrou numa Starbucks onde gerentes de várias unidades de Nova Iorque participavam de um dia de recrutamento. Ele não viu a faixa que anunciava o evento. Entrou como de costume na loja, pediu o seu café e acomodou o celular à espera de chamadas de clientes que jamais ligavam. Mais um dia de um velho desempregado e sem esperança.

De repente, surge à sua frente uma moça negra e bonita, vestindo o uniforme da grande rede de cafés, que lhe pergunta: “quer trabalhar comigo?”. Pergunta inusitada. Sem pensar, Gates deu uma resposta automática: “quero”. A moça se apresentou, informou que era gerente de uma loja distante, anotou os dados de Mike e lhe disse que entraria em contato.

Dias depois Mike recebeu um telefonema. Era a moça. Convidava-o para uma entrevista. Ele foi aprovado. Começou na faxina. Mais tarde foi aprendendo outras funções na Starbucks até dominar todas as rotinas de serviço e atendimento típicos da grande rede. Vive uma vida com a qual nunca sonhara. Seus parceiros de trabalho são quase todos muito jovens. São quase todos negros. São quase todos oriundos dos “projetos”,aqueles bairros de cortiços da área de Nova Iorque. Aprende um trabalho braçal e exigente do ponto de vista físico. Convive com seus novos companheiros que o aceitam sem restrições aparentes.

O episódio todo é um exemplo bonito de aprendizagem. Mike aprende não apenas uma profissão. Aprende a viver de novo. Reflete sobre seus velhos valores. Arrepende-se de sua auto-suficiência e falta de sensibilidade dos tempos de executivo poderoso. Ganha novo sentido para a sua vida. Aprende que a elite é, em muitos sentidos, ignorante. Relembra, agora com toda a carga de significado que sua atuação no Starbucks dá ao texto, um velho dito de Fitzgerald:

Work is Dignity

Neste vídeo, o autor de How Starbucks Saved My Life aparece numa conversa com empregados da Google.

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Arte do trabalhador

outubro 15, 2014

Albarda, 2012 (Pereiro)

Qualquer trabalho é uma arte. Nos dias de hoje, com o esvaziamento do trabalho, o império das máquinas e a invasão de sistemas que subordinam pessoas a rotinas acabamos nos esquecendo da estética mais significativa do viver; a estética de obras que o trabalhador produz, mudando o mundo e mudando seu próprio eu.

A arte do trabalhador aparece com muita frequência em romances. Personagens que produzem alguma coisa quase sempre manifestam seu orgulho por uma obra bem feita, bonita. Em minha recente releitura de O Joio e o Trigo, de Fernando Namora, fiquei encantado com um trecho em que o grande romancista mostra o orgulho de um artesão, um seleiro.

Joana, uma das protagonistas da história, encomenda uma albarda (arreio de animal de carga) para a burra da família. O profissional diz que a sela ficará pronta em três dias. No dia combinado, Loas, marido de Joana, vai buscar a albarda. Mas, o seleiro tinha sumido. Loas sai atrás dele pela região e fica sabendo que o profissional está exibindo a albarda por toda a parte. Finalmente o dono da burra consegue encontrar o seleiro numa taberna. Este lhe dá uma explicação que copio a seguir:

_ Olhe, meu amigo _ insistiu _, isto é uma albarda como você nunca viu na vida. E eu não podia lha entregar sem que pelo menos meia dúzia de pessoas a vissem. Sim, mostrei-a por aí, como obra-prima que é. Todos nós temos um bocado de brio com aquilo que nos sai das mãos. Não tinha esse direito? (p. 202)

Tempos depois, Namora descreve como Loas falava da sela que adquirira :

Sempre que se referia à albarda, recordava o homem da taberna. Ali estava um bom tipo, um artista, destes que dão valor às coisas, que têm sentimentos. Se fosse alguém capaz de perceber de lavoura, tê-lo-ia convidado para fazer parte da courela. Talvez ele pudesse amar a terra ou um animal, como sabia amar a arte que, por magia, lhe saía das mãos grosseiras. (p. 206)

Os dois pequenos trecho do romance de Fernando Namora tem muita substância sobre trabalho e valor. Uma dia quero usá-los num artigo sobre educação e trabalho que aborde a estética do feito em obras de trabalhadores identificados com seu ofício. Por enquanto fico com as citações,achando que elas podem sugerir reflexões interessantes para quem esteja no campo da educação profissional e tecnológica.

 

Fazer-saber e tecnologia educacional

outubro 4, 2014

fogo de piritaEm 1986 eu fazia parte do Conselho Comunitário das Faculdades Anhembi Murumbi. Numa das reuniões propus que o currículo da habilitação em tecnologia educacional incluísse psicologia do conhecimento. Meus companheiros de conselho não entenderam muito bem a proposta. Ana Maria Leonel, coordenadora do curso me pediu então para escrever um texto sobre a sugestão que fizera. Comecei o escrito solicitado e o pus na gaveta. Ele dormiu no fundo de muitas coisas que eu fazia na época. Retomei-o uns quatro anos depois, mas o mesmo ficou inacabado e voltou para a gaveta mais um vez. Eu quis retomá-lo muitas vezes nos últimos anos, mas preguiça e falta de oportunidade não o permitiram. Agora resolvi tornar público esse texto incompleto, pois não sei mais como encerrá-lo. Ele fica como está para mostrar uma das minhas inquietações que não consegui traduzir de modo completo.

 

OS SABERES DO FAZER:

Um Argumento Pró Ciência em Tecnologia Educacional

Jarbas Novelino Barato
Embarco, nas horas mortas de um fim de semana prolongado, numa reflexão pouco ociosa. Há três dias, Ana Maria Leonel, coordenadora do curso de Pedagogia da Anhembi-Morumbi, andou à minha caça para que eu lhe indicasse artigos e documentos que fundamentassem minha opinião sobre a necessidade da disciplina Psicologia do Conhecimento no curso de Tecnologia Educacional. Não fui encontrado. Mas, se tivesse sido, a Professora Leonel não receberia de mim a literatura solicitada. Até onde sei, ninguém escreveu ainda uma defesa explícita do ingresso da mencionada disciplina em currículos de Tecnologia Educacional. Acho, por outro lado, que essa defesa não será escrita por qualquer especialista que, como eu, vê no movimento cognitivista a principal referência para o fazer educacional atual. As razões para isto parecem óbvias: já faz mais de uma década que as produções de tecnologia educacional dignas deste nome possuem acento marcadamente cognitivista. Não é preciso gastar tempo e papel para argumentar a favor da providência que sugeri à Anhembi-Morumbi. Mas, contraditoriamente, aqui estou eu batucando comentários sobre a matéria…

Psicologia do Conhecimento é apenas um detalhe num debate sobre as possibilidades de capacitar pessoas para o ofício de especialista em tecnologia educacional. Um detalhe importante e revelador. Pessoas incapazes de perceber a importância dos mecanismos psicológicos na elaboração do conhecimento acham que a Tecnologia Educacional é redutível à confecção de materiais didáticos modernosos. Forço a barra e apresento uma caricatura mais cruel: há quem pense que esta nova especialização em educação dispensa talento e inteligência na razão direta da capacidade de compra e uso de sofisticados recursos eletrônicos. Neste caso a discussão sobre fundamentos está fora de cogitação, pois o pressusposto, nem sempre desvelado, é o de que tecnologia é “trabalho morto”. Convém, a esta altura, tentar definir o que é “trabalho morto”. Processos de produção, que dependem da intervenção de trabalhadores qualificados, podem ser transferidos para máquinas e sistemas, reduzindo consideravelmente fazeres inteligentes. Nesta direção, em vez de termos máquinas e equipamentos capazes de alargar o potencial de criatividade humana (cf. idéia da ferramenta enquanto prótese dos sentidos, Weizembaum, 1974), teremos seres humanos atuando como apêndices de ferramentas (idéia dos seres humanos como ferramentas de suas próprias ferramentas expressa pela crítica severa de Thoreau, cf. Postman, 1993). Quero, obviamente, provocar um debate. Para tanto, acho conveniente recuperar algumas das velhas ideias dos anos setenta:

Contra o poder da tecnoburocracia e o mito do determinismo tecnológico, sugere-se a criação de uma tecnologia que se apoie na experiência criadora dos trabalhadores. Para escapar da alienação técnica que esclerosa a vontade de mudar, convém imaginar tecnologias “emancipadoras”, cujo exercício permita realização humana. (Durand, 1978, p. 181)

Escrevo um texto sem compromissos acadêmicos. Posso, portanto, ousar um pouco. Num recente trabalho sobre Filosofia da Ciência, Lawrence Slodbodkin (cf. Simplicity & Complexity in Games of the Intellect, 1992) observa que importantes conquistas tecnológicas (tipos móveis, pólvora, moinhos de vento e, até mesmo, relógios) ocorreram na China séculos antes de virem a ser utilizadas no Ocidente. Estranhamente, porém, os chineses pouco avançaram no terreno tecnológico. O fenômeno não é facilmente explicável. Os comentários de Slodbodkin enveredam por uma interpretação sócio-histórica cuja linha de argumentação segue a seguinte direção:

Apesar da riqueza tecnológica da velha China, investigações intelectuais deliberadas para identificar leis naturais e suas regularidades como um saber interessante não começaram no império chinês, mas numa Europa carente de saneamento básico e extremamente bárbara do século XIII. Os historiadores tentam estabelecer várias causas para o fenômeno. Uma possibilidade, sugerem eles, é a de que a estrutura religiosa do Ocidente estava centrada num deus que tinha características de governante que podia elaborar leis naturais de um modo bastante parecido com o de um governante secular que estabelece leis para o comportamento humano. No Ocidente, portanto, era mais fácil acreditar que as leis naturais poderiam ser descobertas. A imagem chinesa de deus era menos antropomórfica. Os historiadores também sublinham que, conforme os registros históricos escritos, a promoção pessoal na China ocorria no campo do serviço civil, circunstância que enfatizava o desempenho literário e, ao mesmo tempo, deixava de recompensar as aventuras empreendedoras de caráter prático. Num certo sentido isto era o reverso da situação no mundo Ocidental.

A tecnologia floresceu na China, mas não havia interesse pela teoria; na Grécia, pelo contrário, a especulação era exuberante, mas não havia entusiasmo pela tecnologia. (…) Nas cidades-estados da Europa medieval, com seus ambiciosos senhores da guerra, as inovações intelectuais e práticas eram possivelmente melhor recompensadas. Em outras palavras, conforme a sugestão de muitos historiadores e a ideia protestante de deus como um governante legalista formaram uma cadeia de causação circular na Europa…(p. 127-128).

A análise de Slodbodkin aponta para um entendimento de tecnologia enquanto um empreendimento que, para provocar mudanças significativas, deve associar capacidade de realização com curiosidade investigativa. David Wingrove, numa brilhante série de ficção científica (cf. Chung Kuo, book I & II, 1990 e 1991), explora o desinteresse chinês pelo desenvolvimento tecnológico, criando situações em que os governantes do planeta, membros de uma dinastia de imperadores chineses, entregam aos ocidentais as indústrias e centros de pesquisa, e mantêm sob controle estrito qualquer possibilidade de inovação. Em Chung Kuo o germe da revolução é a inquietude daqueles que pretendem inovar, fazer ciência, mudar as bases de uma tecnologia que, embora avançadíssima, está marcada pelo imobilismo satisfeito de uma cultura cujos valor maior é a estabilidade.

Em ficção científica, um contraponto ao desinteresse chinês pode ser encontrado em Earth’s Children, a volumosa coleção de romances escritos por Jean M. Auel com aventuras ambientadas em cenários europeus ocupados pelo inquieto homo sapiens e pelo compacto homo neanderthalis vinte e cinco séculos atrás. Ayla, a heroína da escritora de Seatle, adotada por uma tribo neanderthal na infância e posteriormente uma viajante que entra em contato com diversas culturas da espécie sapiens, é um exemplo de gênio permanentemente curioso com as possibilidades tecnológicas. Em The Valley of Horses, Ayla descobre um novo processo e obtenção do fogo a partir de faíscas produzidas pelo atrito entre rochas. Uma descoberta casual que desencadeia atividades intelectuais febris. Não resisto à tentação de citar partes do texto em que a autora descreve ações e pensamentos da heroína quando esta descobre “pedras de fogo”:

… Ela pegou a pirita de ferro mais uma vez e a examinou com atenção. Como será que a faísca saiu da pedra? O que aconteceu? A lasca de pederneira, o golpe com a perdeneira. Sentindo-se um tanto boba, bateu de novo uma pedra contra a outra. Nada aconteceu. O que é que eu esperava? pensou e golpeou pedra contra pedra, desta vez com mais força. Voou uma faísca. Subitamente, uma ideia, cujos contornos até então eram tênues, desabrochou em sua mente. Uma ideia estranha, excitante. Uma ideia um pouco assustadora.

Ela colocou cuidadosamente as duas pedras sobre a proteção de pele, em cima do osso de pé de mamute, e começou a recolher material para fazer uma fogueira. Quando tudo estava pronto, pegou as duas pedras, mantendo-as próximas dos gravetos, e ensaiou um golpe. Uma faísca voou e morreu sobre a rocha fria. Ayla mudou o ângulo e tentou de novo, mas a força não foi suficiente. Outra tentativa: desta vez a faísca brilhou e sumiu entre os gravetos, chamuscando algumas fibras antes de morrer. Ainda não era fogo, mas o leve cheiro de fumaça prometia. Num outro ensaio, um golpe de vento sobre os gravetos fez brilhar mais intensamente a chama rápida.

Claro! Tenho que soprar a chama. Ayla muda de posição para poder soprar a chama incipiente e produz mais uma faísca com as pedras. O resultado foi uma faísca forte, brilhante, com grande poder de fogo, que atingiu o ponto certo…Ayla pode perceber o calor e soprou os gravetos até obter uma chama permanente. Em seguida usou folhas secas para aumentar o fogo. Em pouco tempo, sem a demora dos velhos métodos, ela tinha uma fogueira! Fácil! Era muito fácil. Ayla mal podia acreditar. Ela tinha que provar outra vez a descoberta para si mesma. Recolheu mais material (gravetos, folhas secas) e fez uma segunda fogueira; e uma terceira; e uma quarta. A excitação que ela sentiu era parte medo, parte pasmo, parte alegria de descobrir. Mas era, sobretudo, um sentimento de admiração que crescia enquanto ela se afastava para contemplar as quatro fogueiras, todas elas produzidas por pedras de fogo… (Auel, p. 146-147)

As duas referências ficcionais que utilizei não precisam ser explicadas (explicações de obras ficcionais, ou de obras de arte, são geralmente uma literatura de segunda classe que acaba eliminando as múltiplas possibilidades interpretativas sugeridas pela linguagem artística). Preciso, porém, me explicar. O fenômeno chinês é mais sutil do que parece. Desinteresse pela tecnologia, no caso, não é equivalente a uma ignorância orgulhosa dos aspectos práticos da vida, própria das sociedades escravocratas européias (cf. Grécia Clássica). É, muito mais, um traço cultural capaz de reconhecer as possibilidades instigantes do saber tecnológico e que a ele renuncia para manter a estabilidade social (vale observar que na China, ao contrário da Grécia, a produção tecnológica era uma atividade de homens livres – Slobodkin, 1992). Apesar disto, o resultado final acaba sendo análogo ao observado no ambiente helênico: perde-se a dimensão do saber enquanto interação mundo-conhecimento-cultura.

Ayla é exemplo extremo de uma outra possibilidade: o deslumbramento com os fazeres humanos que podem mudar o mundo. Se descontarmos esta marca de quase onipotência que parecer estar presente nas entrelinhas do texto de Auel, obteremos a medida justa de uma descrição equilibrada da trama excitante do saber tecnológico. Não consigo explicar isto muito bem. Por esta razão recorro a um autor cujas ideias articulam muito claramente a dimensão do saber enquanto interação mundo-conhecimento-cultura:

O eu muda. Começamos como crianças, crescemos, envelhecemos. Apesar disto a continuidade do eu nos assegura que permaneçamos idênticos num sentido (o sentido de “geneidentidade” de Kurt Lewin – 1922). E ele (o eu) permanece mais idêntico que o corpo (este último, aliás, também permanece geneidêntico de acordo com Lewin). O eu muda por causa de envelhecimento e de esquecimento, mas muda mais rapidamente ainda devido à aprendizagem desde a experiência. De acordo com a teoria aqui defendida, aprendemos desde a experiência por ação e seleção. Agimos de acordo com certas metas e preferências, e também de acordo com certas expectativas e teorias, especialmente expectativas de concretizar ou alcançar metas: agimos com base em programas de ação. Em consonância com este modo de ver, aprender por ou desde a experiência consiste em modificar nossas expectativas e teorias, assim como nossos programas de ação. É um processo de modificação e seleção, especialmente pela refutação de nossas expectativas. Os organismos podem aprender desde a experiência, de acordo como o ponto de vista aqui defendido, somente se eles forem ativos, se tiverem metas e preferências; e se produzirem expectativas. (Popper, 1977)

As ideias de Popper abrangem um espectro muito mais amplo do que aquele que estou querendo mostrar aqui. Não posso deixar, porém, de insistir nas coincidências entre as explicações do filósofo austrobritânico sobre a elaboração do saber e a narrativa de Auel – este último, aliás, um texto sem qualquer pretensão teórica explícita. As ações, indagações, dúvidas, tentativas e expectativas de Ayla podem facilmente ser utilizadas como exemplo dos mecanismos de expectativas, metas, teorias, preferências e ações propostos por Popper. Num e noutro caso – no texto ficcional e no texto de análise epistemológica – o fazer não e um “lá fora” explicado pela mente. É parte integrante de um processo interativo e global de fazer-saber.

Volto incidentalmente à questão da inclusão da disciplina Psicologia do Conhecimento em currículos de Tecnologia Educacional. Minhas reflexões e viagens literárias já devem ter mostrado que a tal disciplina não seria um “acréscimo” curricular para oferecer bases teóricas capazes de explicar o fazer tecnológico. Tecnologia digna do nome não é uma coleção de macetes que, milagrosamente, funcionam. É saber que engaja os agentes de conhecimento em aventuras excitantes de mudar o mundo, compreender relações entre as “coisas”, produzir e reaprender. Assim, de certa forma, Psicologia do Conhecimento enquanto disciplina é desnecessária se o tecnólogo educacional não for apêndice de processos alienadores da inteligência e da criatividade. Para mim, a disciplina em questão é apenas uma desculpa para argumentar a favor da tecnologia enquanto saber.

Vejo-me obrigado a esclarecer um ponto: o da criatividade. Predomina hoje a ideia de que é possível ser criativo recorrendo a forças ocultas desveladas por exercícios de criatividade em treinamentos rápidos. Não embarco nesta corrente. Meu entendimento do que é criatividade coincide em muitos pontos com as ideias desenvolvidas por Arthur Koestler em The Act of Creation (1964). Criar é uma função de indagações intensas, exigentes e prolongadas. Não é uma banalidade resultante da liberação de emoções recalcadas. Não quero e nem preciso falar mais de criatividade. Para os fins deste texto, penso que esta nota parentética é suficiente.

É quase certo que a questão central destas minhas divagações ainda não esteja muito clara. Preciso, portanto, revelar minhas intenções. A dúvida sobre a presença da disciplina Psicologia do Conhecimento nos planos de estudo do curso de Tecnologia Educacional da Anhembi-Morumbi – matéria discutida diversas vezes em reuniões do conselho consultivo daquela faculdade – não reflete, muito mais, conflitos nem sempre explícitos sobre o que é tecnologia. Por esta razão, o que estou tentando fazer aqui é examinar alternativas de definição do que pode ser entendido por Tecnologia Educacional. Até aqui não forneci nenhuma definição acabada desta nova área do fazer-saber pedagógico. E para decepção dos apreciadores de definições não vou “conceituar” o assunto nas linhas que seguem. Vou apenas tentar explicitar as posições conflitantes.

Em 1973-1974 a recessão econômica provocou desempregos em massa na Europa. Os sindicatos do velho continente enfrentaram a situação de modo tradicional (redução da jornada de trabalho, estabilidade provisória no emprego, requalificação profissional dos trabalhadores, demissões voluntárias, etc.). Em alguns casos, porém, surgiram alternativas novas e interessantes de resistência operária aos resultados concretos da recessão. Um destes casos foi o contra-plano desenvolvido pelos trabalhadores britânicos de uma empresa aero-espacial (Cadessus & Clark, 1978). O contra-plano, em linhas gerais, propunha mudanças profundas na organização do trabalho, apresentava possibilidades de geração de novos produtos e apontava metas que, mesmo não resultando em empreendimentos tão lucrativos quanto as adotadas pela direção da empresa, poderiam manter os níveis de emprego e resultar em produção de bens socialmente relevantes. Não vou esmiuçar aqui as linhas do contra-plano dos trabalhadores da Lucas Aerospace (leitores interessados poderão recorrer aos citados Cadessus & Clark ou à análise do caso em Economic Democracy: The Challenge of the 1980s (Carnoy & Shearer, 1980). Quero apenas deixar registrado que a proposta de mudança de uma indústria de guerra para uma indústria de ferramentas agrícolas (o ponto central do contra-plano) mostra que tecnologia não é apenas um aparato de máquinas e equipamentos mas sobretudo capacidade humana de planejar e produzir.

Revejo o que escrevi até aqui e noto que ainda não abordei a questão da Tecnologia Educacional. Minhas observações, até este ponto, trataram de coisas que, aparentemente não deveriam estar presentes numa discussão sobre uma disciplina pedagógica. Com base em obras de ficção científica, tentei mostrar que historicamente as tecnologias ganham corpo apenas quando um fazer interessado alia-se ao gosto especulativo. Mais especificamente, utilizando as idéias de Slodbokin (1992), ressaltei os avanços tecnológicos da Alta Idade Média e início do Renascimento no século XIII. Vale lembrar que este entendimento de tecnologia como algo de interesse prático aliado à arte e à ciência irá ganhar contornos mais definidos na obra dos grandes gênios do Renascimento, especialmente nas realizações e planos de Leonardo da Vinci (Boorstin, 1993). Tentei, ainda utilizando referências de ficção científica, mostrar que os empreendimentos tecnológicos articulam planos de ação com um fazer-saber em relações com o mundo (cf. narrativa sobre a descoberta de Ayla). Cheguei à uma sugestão de que o saber (qualquer que seja, incluindo o tecnológico) deve ser visto como uma interação multidirecional entre o mundo, conhecimento e cultura (cf. citação de Popper). Recorri, finalmente, ao contra plano da Lucas Aerospace para sugerir o entendimento de uma tecnologia ancorada em práticas sociais e não redutível a artefatos. Tudo isso já é o bastante para que pensemos a importância de mergulhos no conhecer para melhor entender o que é tecnologia, e mais particularmente tecnologia educacional.