Quando inaugurei este Boteco, minha amiga das letras, Ana Scatena, esclareceu em comentário, que a palavra boteco vem do grego Apotheke. O termo original designava os armazéns do porto do Pireu, centro do comércio internacional da cidade de Atenas. Nosso boteco tem um pouco do apotheke grego, é um lugar de encontros, de trocas.
Em viagens fora do país, sempre que acho algum empreendimento comercial que tenha nome que se aproxime de boteco ou apotheke, saco uma foto. Em Wurzburg, na Alemanha, descobri que o termo apotheke designa farmácias. A ideia de local de encontro ainda continua. Érico Verríssimo em seus romances costuma ambientar encontros para rodas de chimarrão na parte de trás das farmácias das pequenas cidades gaúchas. O fundo de algumas farmácias era, para Érico, o boteco do lugar. Nada sei sobre as farmácias alemãs, mas fantasio que elas também já foram botecos.
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Boteco Germânico
agosto 22, 2014Discurso de Formatura
agosto 8, 2014Faz tempo que prometi tornar público o meu discurso na formatura de Pedagogia, 1972. Cumpro agora essa promessa.
Antes de reproduzir o discurso, alguns esclarecimentos. Minha turma era a da tarde. Alguém sugeriu meu nome para orador da turma. Pedi às minhas amigas e meus amigos que não fizessem isso. Todos sabiam que eu não era bem visto pela repressão e pela direção da faculdade. Eu disse que não gostaria de passar por constrangimentos. No ano anterior, eleito representante de classe, não pude exercer minhas funções. Fui destituído pelo diretor da faculdade antes de tomar posse. Minhas explicações foram aceitas e fiquei tranquilo. Duas semanas depois, o convite de formatura trazia meu nome como orador da turma.
Conversei com a comissão de formatura da minha classe. Reclamei. Fui então informado de que a decisão de colocar meu nome no convite fora da turma da noite. Numa classe que não era a minha, fui eleito por unanimidade. Não tive mais o que fazer, fui preparar o discurso.
Escrevi um discurso que fugia um pouco do convencional. Mas, não fui muito longe. Não queria qualquer problema com a repressão e, ao mesmo tempo, precisava elaborar uma fala que correspondesse ao desejo da maioria dos meus colegas. Não compus uma grande peça de oratória, mas acho que dei conta do recado.
Alguns dias antes da formatura, num gesto de calculada rebeldia, fui até a sede da circunscrição militar de Ribeirão e entreguei cópia do meu discurso ao coronel que me vigiava. Disse a ele que o militar a ser destacado para ouvir minha fala na formatura já iria sabendo o que eu ia dizer.
Na foto, apareço discursando, com mesa das autoridades e coral ao fundo.
DISCURSO DE FORMATURA: TURMA DE PEDAGOGIA DA FFCL BARÃO DE MAUÁ
RIBEIRÃO PRETO – DEZEMBRO DE 1972
JARBAS NOVELINO BARATOQueremos, inicialmente, agradecer. Agradecer nossos pais, direção da faculdade, professores e todos que, de uma ou de outra maneira, tornaram possível este momento. Gostaríamos de deixar lavrado um agradecimento todo especial. Nesta hora de reconhecimento de nossa dívida pessoal para com todos que participaram diretamente da nossa formação, não poderíamos deixar de reconhecer nossa dívida social para como povo brasileiro. Graças a esse povo que tem construído este país com sacrifício e suor – e mesmo com sangue – foi possível que ocupássemos por tanto tempo os bancos escolares, embora uma maioria significativa deste mesmo povo tenha tido até hoje pouca ou mesmo nenhuma oportunidade de educação escolar. A esse povo, o nosso povo, o agradecimento de todos nós.
Certamente todos aqui presentes gostariam de saber o que nós pretendemos profissionalmente e o que nós pensamos a respeito da Educação. Tentaremos responder essas questões. Porém, sabendo que as palavras são insuficientes, queremos reafirmar o princípio já conhecido de que não há melhor resposta para tais questões que o trabalho, a ação. Esperamos, em nossa vida profissional, poder colocar em prática os princípios que julgamos corretos na ação educativa. E, ao mesmo tempo em que solicitamos a todos que exijam de nós coerência entre ideais e ação, pedimos que nos dêem oportunidades para realizar aquilo que pretendemos.
Nossas pretensões profissionais não dependem apenas de nossa boa vontade ou de nosso preparo profissional. Numa hora de mudanças no campo da Educação, como está ocorrendo hoje, depende da efetivação dos projetos de Reforma. Os ideais reformistas, desde a Lei de Diretrizes e Bases, têm reconhecido a importância significativa dos diplomados em pedagogia nas diversas áreas da ação educativa. Entretanto, a concretização dos projetos reformistas tem sido morosa e os lugares que deveriam ser ocupados pelos pedagogos, em grande parte, estão sendo ocupados por pessoas de outras áreas ou estão esperando uma regulamentação para que possam vir a ser ocupados por nós. Tal situação gera um clima de angústia entre os formados em pedagogia, que constrangidos pela falta de oportunidades de trabalho dentro de sua própria área, apesar da necessidade premente de pedagogos em campos específicos, vêem-se obrigados a procurar trabalho em áreas que não lhes são próprias.
Ao constatarmos aqui a situação dos formados em pedagogia, não pretendemos iniciar uma ação reivindicatória em termos de oportunidades de trabalho. Gostaríamos apenas que as exigências da realidade educacional fossem atendidas o mais breve possível. Acreditamos que nosso problema pessoal seria então resolvido e a angústia gerada pela incerteza diante do amanhã seria substituída pela esperança de poder trabalhar na área que nós escolhemos e para a qual nos preparamos na faculdade.
Cercados por tantos mitos a respeito da Educação, não cremos que ela seja uma espécie de missão quase que sagrada e que nós sejamos sacerdotes leigos da deusa cultura. Não acreditamos numa educação que se assemelhe a uma cerimônia mágica capaz de libertar o homem. Pensamos que a ação educativa deve ser perpassada por um humanismo realista e, acima dos sistemas e das estruturas sociais, pretendemos colocar o homem. Pedimos que todos vejam nesse nosso compromisso com o ser humano, o nosso compromisso profissional. E, novamente, achamos que a resposta mais significativa para esse compromisso deverá ir além do que aqui dizemos para se tornar uma resposta na ação.
Talvez nossa pretensão de uma educação humanística deva ser melhor explicitada. Numa época de tantos “humanismos” confessamos que nossa pretensão é modesta: pretendemos apenas que a educação se volte para as necessidades de cada homem. Não sonhamos elaborar complicados esquemas conceituais a respeito do destino da humanidade. Queremos partir de um humanismo terra-a-terra sem os grandes vôos de um otimismo utópico. Bastará que nos lembremos de que todos os homens são irmãos e que merecem igual respeito e que devem ter os mesmos direitos. Renunciamos a quaisquer ideologias que, apesar de sua beleza aparente, escondem interesses particulares e não têm o seu ponto de partida nas necessidades reais de cada ser humano.
Confessar uma atitude humanista em qualquer área de ação é hoje um lugar comum. É quase que uma resposta de etiqueta à expectativa social. Não queremos ser enquadrados entre aqueles que se confessam humanistas por conveniência. Mais ainda, pedimos que o uso constante desta palavra não desgaste o seu conteúdo. Confessamos, ao mesmo tempo, que não estaremos livres do manejo quase que demagógico desta palavra para acobertar uma ação que não vise em primeiro lugar o ser humano. Por isso, mais uma vez, pedimos que todos nos cobrem coerência entre ideais e a ação.
Ao lado da confissão, lugar comum, acima apontada, espera-se outra: a confissão de fé cristã. Faremos também essa confissão, mas seremos realistas. Há entre nós muitos que são cristãos de fato e outros que não o são.
Essa situação não impede uma confissão humanista de nossa parte, não elimina nossa unidade de propósitos.
O reconhecimento da nossa diversidade de crença exige uma permissão para que falemos como cristãos; não para cumprir as exigências do segundo lugar comum esperado, mas para deixar claros certos equívocos correntes. Renunciando as conveniências de uma fé tradicionalista, não queremos batizar nenhuma instituição. Nós acreditamos na ação de cristãos, mas não cremos em instituições cristãs.
Procuramos com essa atitude fugir da idolatria das coisas feitas cristãs, tais como: cultura cristã, filosofia cristã, educação cristã, país cristão. Consagrar tais instituições como cristãs faz esquecer o próprio Deus e, conseqüentemente, o próprio homem. Não queremos tornar Deus um prisioneiro daquilo que construímos em seu nome, como também não queremos tornar o homem escravo daquilo que inventamos para colocar a seu serviço. Portanto, ao confessamos a nossa fé, não queremos sacralizar o mundo, mas servir ao homem. E nessa tarefa, cristãos ou não, estaremos todos unidos.
Cristãos ou não, achamos que caberia, no final de um compromisso com o humanismo, a lembrança de uma oração, antiga e ao mesmo tempo atual, de apelo a Deus para que o mundo se torne mais humano.
Salmo 84
Justiça e PazSenhor, sempre foste amigo dos homens,
tantas vezes mudaste a sorte do teu povo:
nossas culpas foram perdoadas,
nossos pecados, esquecidos.
Retiraste tuas ameaças,
aplacaste o furor da tua cóleraQuero ouvir o que o Senhor vai dizer.
Certamente, nos vai falar de Paz,
a nós, seu povo e seus amigos,
Sim, a salvação está muito perto dos que o temem,
e nossa terra verá de novo a sua presença radianteNesse dia,
amor e fidelidade se encontrarão,
Justiça e Paz se abraçarão.
Como chuva, a justiça descerá do céu,
e da terra brotará a fidelidade.
Deus mesmo dará os seus dons,
e nossa terra dará os seus frutos.
À sua frente, o Senhor enviará sua justiça,
abrindo entre nós um caminho para a Paz.
Interesse e motivação em introduções
agosto 6, 2014Em materiais didático, não importa a mídia, as introduções costumam estar voltadas para o assunto. Este modo de apresentar um tópico obedece a uma lógica que não leva em conta o leitor, o usuário, o aluno. Já batalhei muito na guerra contra introduções tradicionais. Boa parte de tais batalhas foram travadas com alunos que escreviam introduções tradicionais para WebQuests. Eles não conseguiam fugir de um modelo do qual foram vítimas a vida inteira nos livros didáticos.
Introduções devem ser escritas para conquistar quem vai ler o material, ver o vídeo, usar o software, trabalhar numa WebQuest etc.
Minha última batalha por introdução criadora de interesse aconteceu num projeto que desenvolvi para a TV do MEC. O projeto se chamava Desafio Escolar e era executado por uma empresa de vídeo e cinema muito competente. Mas, os roteiristas e outros profissionais envolvidos (incluídos os de educação) insistiam em fazer introduções tradicionais. Para convencer toda essa gente de que era preciso fazer algo diferente escrevi um subsídio para uma das propostas de Desafio Escolar que desenvolvi, uma situação que colocava os alunos numa aventura de produção de materiais contra o bullying.
Acho que o subsídio que elaborei coloca bem a questão é é breve (apenas duas laudas). Por isso, em vez de retomar minhas sugestões sobre introdução em contextos didáticos, acho que posso reproduzir aqui o mencionado texto. É o que faço a seguir.
Nota sobre primeira parte do programa e introdução ao tema na escola
A primeira parte de um Desafio deve buscar interesse. Interesse pelo que? Interesse por um assunto que deve ser estudado. E interesses não nascem de informações sobre o conteúdo, nascem da compreensão de problemas ou de encantamentos sugeridos por determinadas situações.
Não cabe apresentar informações na introdução. Ela não é uma ocasião para instruir, para ensinar. Nela, o que é apresentado deve provocar nos alunos curiosidade, deslumbramento, perguntas. Deve provocar sentimento de que o desafio proposto faz sentido e é uma atividade que vale a pena.
Na Introdução, escola e produção de TV devem escolher modos de apresentação que caminhem na direção do interesse. No caso do bullying, uma das formas de criar interesse é a de oferecer um contexto que mostre problemas de violência física e/ou simbólica contra pessoas ou grupos “diferentes”. Algo que crie algum impacto e mostre a irracionalidade de práticas gratuitas de ataque a pessoas mais fracas ou que tenham alguma característica particular. Nessa parte não se deve apresentar aquilo que os alunos precisam aprender sobre o assunto. Nessa parte, o que importa é que os alunos “comprem” o tema.
Fazer introdução a assuntos de uma Desafio (pelo menos em desafio como o nosso, que segue orientações metodológicas parecidas com as do modelo WebQuest) exige alguma mudança em formas de apresentação. Introduções em materiais didáticos ou em materiais de TV com finas educacionais costumam oferecer uma visão geral do assunto ou antecipar o que vem pela frente. Não é isso que queremos.
O que queremos é uma apresentação que mostre importância do que vamos abordar. E para mostrar importância de algo precisamos, entre outras coisas, emocionar, envolver, indignar, relacionar tema com vida das pessoas.
Para situar o que estou tentando passar, vou oferecer um exemplo concreto. Tom March, autor de ótimas WebQuests, fez uma Introdução excelente para um trabalho que propunha estudo da ética, tendo como referência questões sociais importantes em nosso mundo. Para tanto, o autor escolheu um caso concreto que envolveu ética e ciência, Tuskeege Tragedy. É preciso reparar que o caso escolhido por Tom não era material para ser estudado. Era um fato da história contemporânea que gerou indignação e levantou bandeiras com relação á ética. Segue o texto de introdução do material em foco:
“Introdução
Imagine que você é uma pessoa pobre vivendo em tempos economicamente difíceis. O seu governo lhe oferece tratamento médico gratuito. Parece bom. Mas a verdadeira razão pela qual o governo o procurou é porque você tem certa doença. Em vez de lhe proporcionar assistência médica, os doutores estão apenas acompanhando o que acontece quando a doença observada não é tratada. Suponha que ocorra um milagre e a ciência encontre uma cura para a tal doença. Mas, em vez de lhe dar o novo remédio, os médicos continuam o experimento que tem por objetivo observar o desenvolvimento “natural” da moléstia. Passam-se anos; alguns de seus companheiros, que também estavam sendo objeto de estudo, morrem, outros passam a doença para suas mulheres e filhos. Será que isso é uma sinopse para um novo filme? Será que alguém seria tragado por um roteiro tão inacreditável como esse? Será que esse é mais um caso de “arte que imita a vida”? Deixemos de suspense: aqui está a verdade, de acordo com uma reportagem da CNN:
“No começo da década de 1930, 399 homens foram inscritos pelo Serviço Público de Saúde dos EUA para um plano de assistência médica gratuita. O Serviço estava conduzindo um estudo sobre os efeitos da sífilis no corpo humano. Os homens nunca foram informados de que tinham sífilis. Os médicos lhes disseram que eles tinham “sangue ruim”. Esses sujeitos observados jamais foram tratados, mesmo depois da descoberta da penicilina em 1947. Quando o estudo tornou-se público em 1972, 28 homens tinham morrido de sífilis, 100 outros tinham falecido por causa de complicações relacionadas com essa doença. Pelo menos 40 esposas tinham sido infectadas, e 19 crianças contraíram a moléstia ao nascerem.”
(Retirado do CNN Interactive’s Tuskegee Study Website).
É difícil imaginar algo tão cruel como essa história. É por isso que muitas pessoas passaram a usar o caso da Pesquisa Tuskegee em comparações com outros tópicos como aborto, controle de armas, e experimentos em campos de concentração. Há razões para esse tipo de comparação? Nesta WebQuest, você decidirá.”
No nosso caso (Bullying), a introdução pode ser desenvolvida em atividades que envolvam vídeo e música no âmbito da escola. No programa de TV o que precisa ser apresentado são as situações que serão mostradas aos alunos para que estes vejam que é importante fazer o que propõe o Desafio. Se conseguirmos provocar interesse, os alunos estudarão o tema cientes da importância de se prepararem bem para realizar a tarefa que será proposta.
A escola que eles querem.
agosto 4, 2014De vez em quando alguns políticos criam projetos de lei para colocar novas disciplinas nas escolas. Um desses projetos é o Projeto de Lei nº 2 de 2012 do Senado, tornando obrigatória em todas a as séries o ensino fundamental a disciplina Cidadania Moral e Ética. Penso que uma boa ilustração para tal proposta é um desenho de FRATO que reproduzo logo abaixo.
Sociedade da informação. Da informação… Da informação…
agosto 4, 2014Os educadores usam com certo entusiasmo a expressão Sociedade da Informação. E costumam achar que a fartura de informação que há na Web faz com que a escola perca cada vez mais sentido. Para mim, este modo de ver o que anda acontecendo em nosso mundo é um equívoco. A fartura de informação não gera necessariamente mais conhecimento. Alan Kay, cientista da computação, já chamava atenção para isso num artigo que publicou em Scientic American em 1995. Kay observava que com tanta informação disponível as pessoas estão cada vez mais incapazes de dizer o que há por trás da informação. Perderam o rumo dos significados.
Análise interessante sobre o fenômeno foi feita por Jodi Dean em Blog Theory. Em 2011 escrevi resenha do livro de Dean. Na resenha, tento enfatizar alguns dos pontos que a autora considera importantes nas práticas comunicativas na Web. Ela, como Kay e muitos outros autores, chama atenção para aspectos que deveriam ser analisados pelos educadores.
Não pretendo resumir a resenha que fiz. Acho que ela não faz inteira justiça a toda a riqueza do livro de Jodi Dean. Não cabe, portanto, reduzir mais ainda considerações sobre a obra. Por esse motivo, resolvi trazer para cá o texto integral da resenha, esperando assim oferecer uma boa referência para julgar os rumos da Sociedade da Informação.
Dean, Jodi. Blog Theory: Feedback and capture in the circuits of drive. Malden, MA: Polity Press, 2010, 153 p.
Novas tecnologias da informação e comunicação – NTIC’s ganham espaço cada vez maior na vida cotidiana. Essas tecnologias são vistas como avanços desejáveis, pois os ganhos que trazem em termos ampliação do conhecimento são imensos. Tal interpretação do papel das NTIC’s tem uma dupla face. De um lado, ela entende que a produção e acumulação de saberes é processo contínuo e cumulativo. De outro lado, ela ressalta a necessidade de se adotar as mudanças que as mais recentes tecnologias trazem. Comentários nos meios de comunicação e em produções acadêmicas tendem à tecnofilia. Ao mesmo tempo, a aceitação entusiasmada das NTIC’s tem muitos traços de ingenuidade.
O pensamento hegemônico sobre as novas tecnologias da informação e comunicação sugere que sociedade e indivíduos têm conhecimento cada vez maior, que a educação dará um salto de qualidade, e que a prática política ganhou grandes espaços de exercício da liberdade. Tais conclusões não são fruto de análises aprofundadas das NTIC’s. São, muito mais, conseqüências de crenças que ignoram qualquer análise crítica dos novos meios de comunicação.
Blog Theory, obra de Jodi Dean, contesta o pensamento hegemônico. Examina o fenômeno dos blogs, tentando perceber o significado dessa prática comunicativa na sociedade e para os blogueiros individualmente. A autora, porém, não se restringe aos blogs. Na verdade, realiza uma análise mais ampla, incluindo em seu estudo outras práticas comunicativas que ganharam espaço expressivo na Web.
A intenção de Dean é a de analisar criticamente as NTIC’s a partir de uma tradição que busca entender o significado e impactos sociais das tecnologias, assim como a maneira pela qual as forças hegemônicas se apropriam das ferramentas de comunicação. Ela procura superar o nível das aparências para desvelar o que está acontecendo no plano coletivo e individual. Há mudanças. Mas, que mudanças estão acontecendo em modos de ver a vida, no plano dos valores, na vida política, no plano epistemológico? Respostas e a essas perguntas balizam o caminho percorrido por Dean.
A autora reconhece que análises críticas da NTIC’s não é tarefa fácil. A atualidade das análises é efêmera, pois as novas redes de comunicação são turbulentas, sempre mutantes. Muitos de seus aspectos definidores desaparecem em pouco tempo. A obsolescência de equipamentos e ferramentas é extremamente acelerada. Por esses motivos, livros que abordem criticamente os novos meios de comunicação correm risco de ficarem desatualizados assim que chegarem às livrarias. Por outro lado, utilizar a própria Web para registrar aspectos críticos em blogs e outros ambientes de publicação digital é providência vã, pois a conteúdo não merecerá devida atenção.
Dean mostra que os livros desempenham papel importante na elaboração e registro de análises críticas. Sugere que as mídias digitais não conseguem substituí-los em tal função. Conclui que eles continuam a ser o veículo mais adequado para articular análises que evidenciem as conseqüências mais profundas das NTIC’s.
O funcionamento da Internet, segundo a autora, mostra a emergência do capitalismo da comunicação. Esse fenômeno vem recebendo diversos nomes, com destaque para Sociedade da Informação. Mas, quase sempre, os analistas ignoram o capital como o maior interessado na produção, circulação e uso de uma commodity intangível que vem mudando relações entre as pessoas, formação de identidade, modos de ver o mundo. Para Jodi Dean “o capitalismo marca a estranha convergência da democracia e do capitalismo em redes de comunicações e mídias de diversão” (p.4).
Para mostrar desdobramentos ideológicos do ambiente mediático de nossos dias, Dean examina como movimentos de esquerda com raízes nos anos de 1960, acreditando em virtudes intrínsecas das redes de comunicação, acabaram caindo em armadilhas e passaram a defender valores que criticavam. Para ela, este é o caso, por exemplo, dos novos comunalistas. Estes, ao abraçarem promessas libertárias da Internet, aliaram-se aos adversários de outrora – as forças armadas, o capital, a burocracia – promovendo idéias neoliberais e justificando flexibilização do trabalho e outras decorrências de um capitalismo dentro do qual se entranha a comunicação.
As observações de Jodi Dean sobre aspectos ideológicos promovidos no e pelo uso das redes digitais nada tem a ver com teorias conspiratórias. A autora examina as práticas comunicativas correntes e nelas encontra características que não são evidentes para usuários e entusiastas das novas mídias. A autora busca caracterizar que cultura e sociedade estão sendo construídas naquilo que se convencionou chamar de Sociedade da Informação.
Na produção e circulação de informações, a autora vê um fenômeno que precisa ser considerado, o fenômeno da reflexibilidade. Este fenômeno, em síntese, é caracterizado por uma circularidade na qual informação gera mais informação sem qualquer referência a realidades que não integrem as redes digitais. No plano individual, a reflexibilidade gera comportamentos análogos aos da obsessão pelo jogo. Utilizadores de redes sociais entram num circuito que não privilegia conteúdos, mas, o constante uso de veículos de informação.
Nos planos axiológicos e epistemológicos, Jodi Dean sugere que a utilização das novas mídias caminha na direção do declínio da eficiência simbólica. Ou seja, as pessoas deixam de ter uma referência sólida para julgar informação. Vale tudo. Em blogs e outros meios de expressão digital, acredita-se que todas as opiniões são válidas. A tendência reforça traços de relativismo que já presentes na cultura ocidental antes do advento das redes digitais. No caso dos valores, há um esvaziamento de referências aceitas coletivamente. No caso da ciência, há uma crença de que todo e qualquer saber é equivalente. O resultado dessas maneiras de ver é o de que banalidades sem fundamento e afirmações ancoradas em investigações sistemáticas em nada diferem. São informações que entram no circuito, reivindicando tratamento igualitário.
Predomina na rede digital impulso para o uso, não importando outros fins. A lógica do sistema é a de um consumo cada vez mais avassalador de informações, não pelo valor intrínseco destas últimas, mas pelo sentimento de participar de um processo informativo que não cessa. A comunicação constante é uma obrigação. Mais ainda: uma obsessão. É preciso comunicar-se, não importa para que, nem o que comunicar.
Dean consagra um capítulo inteiro à questão do afeto (Affective Networks). A autora observa:
O capitalismo da comunicação nos manda divertir, ao mesmo tempo ele nos adverte que não estamos nos divertindo o bastante, ou tão bem como os outros. Nossa diversão permanece frágil, arriscada. (p. 92)
A ordem para nos divertir aparece de diversas formas. Uma delas é a de sentir-se membro de uma comunidade que, segundo a autora, “é uma comunidade sem comunidade”. Contraditoriamente, as redes facilitam a superação do isolamento, embora as pessoas continuem isoladas. Outra forma é a da repetição. Faz-se a mesma coisa o tempo todo. Não importa o significado do que é repetido. Importa sempre a repetição, num ritmo cada vez mais envolvente. Repetição e redundância é o nome do jogo. Isso já era característico nos meios de comunicação de massa que chegaram um pouco mais cedo que as redes digitais. Essa circunstância foi e é largamente utilizada em publicidade na TV. Convém, mais uma vez, recorrer ao texto da autora:
A dimensão aditiva da comunicação pela comunicação marca um excesso. Esse excesso não é novo significado ou perspectiva. Ele não se refere a um novo conteúdo. Em vez disso, ele advém da repetição, da agitação ou emoção por mais. Na duplicação reflexiva da comunicação, a diversão incorporada à comunicação pela comunicação desaloja intenção, conteúdo, e significado. O extra na repetição é diversão, a diversão que é capturada no impulso e na diversão expropriada pelo capitalismo da comunicação. (p.116).
A meta, como já se disse, é a de usar a rede. E usá-la à exaustão. O discurso ideológico justifica tal uso com promessa de mais conhecimento. Mas, conforme diz a autora “quanto mais conhecimento incorporamos, menos sabemos”. Na verdade, o que predomina é a circulação de informação, não a sua apropriação pelos usuários. Uma das conseqüências disso é a falta de ação. Em vez de agir, busca-se mais informação. Os resultados encontrados não satisfazem. Por isso mais informações são procuradas. Esse processo não tem fim. E estar nele é fonte de prazer. A produção de informação com características de reflexibilidade é uma criação dos usuários. Eles acabam produzindo o ambiente em que vivem. As conexões estabelecidas no interior do sistema configuram as pessoas. Gerar informação, consumi-la, reproduzi-la, dentro de um loop, substitui busca de sentido, de significado, é tudo que se quer.
Apesar do título de seu livro, Dean não tem como foco os blogs, mas as práticas mediáticas que se tornaram comuns com a chegada dos recursos digitais. O livro, porém, tem um capítulo dedicado aos blogs. A autora faz menção às características técnicas dos diários eletrônicos. Examina as analogias mais comuns que são utilizadas para defini-los. Ela, porém, não se prende a visões mais tradicionais. Para além de aparências óbvias de blogs como diários eletrônicos ou formas de expressão de um novo jornalismo, Jodi Dean mostra como a prática deles está a serviço da expressão da subjetividade.
A autora vai buscar nas práticas epistolares do antigo Império Romano, assistida por estudos realizados por Michel Foucault, analogias para iluminar o sentido da escrita em diários eletrônicos. Revela que as correspondências produzidas pelos latinos tinham acima de tudo características de auto-escrita. A arte de escrever cartas era vista como um elemento de reflexão. Neste sentido, importava pouco o que comunicar. Importava o próprio exercício de produzir as cartas, mesmo que estas não fossem enviadas aos seus destinatários. Essa é uma descoberta intrigante. O ato, a prática era mais importante que o escrito. E é isto o que acontece com os blogs. Valem para eles as observações feitas para todo o sistema de comunicação digital. Os blogs são uma alternativa de ingresso na ciranda interminável de gerar e consumir informação, pouco importando o conteúdo. Eles também concretizam o sentimento de participação no qual se acentua a dimensão afetiva. Não são, assim, diferentes de qualquer outro formato que facilita a participação dos usuários na Web.
Blog Theory é um livro denso e exigente. A autora, para desenvolver seus argumentos, recorre a uma ampla literatura influenciada principalmente por Lacan. Cada capítulo da obra mereceria uma resenha própria para que não se perdessem elementos importantes das análises feitas por Dean. Porém, os registros aqui feitos são suficientes para situar a obra e sua importância em áreas relacionadas com informação e comunicação.
Importa assinalar como Blog Theory sugere novos modos de ver NTIC’s em educação. O estudo de Dean mostra que aproveitamentos de qualidades aparentes da Web para finalidades pedagógicas não podem acontecer de modo ingênuo. O predomínio de práticas de comunicação pela comunicação é um traço que deveria merecer análises críticas dos educadores. Usos educacionais das NTIC’s, caso ignorem uma visão crítica, irão apenas facilitar ingresso dos alunos em circuitos comunicativos que desconsideram conteúdos e significados.Jarbas Novelino Barato. Professor. Mestre em Tecnologia Educacional pela San Diego State University (SDSU). Doutor em educação pela UNICAMP.