
Há dois anos, participei do VI Simpósio Trabalho e Educação, promovido pela Faculdade de Educação da UFMG. O evento, como qualquer outro do gênero, entregou, para os participantes, programa, informações escritas, um exemplar da revista T&E, crachá e caneta. Para que os simposistas pudessem carregar o material de modo confortável, o evento presenteou cada qual com um embornal de tecido.
A substituição de malinhas de plástico – algumas muito charmosas – por embornais de tecido é uma prática que está ficando comum em seminários, simpósios e congressos. Nos três últimos eventos de que participei, os embornais estavam lá. Alguns, mais simples, outros, sofisticados. Todos de tecido, ás vezes com alças de plástico.
Após os eventos, os embornais podem ser aproveitados para carregar mercadorias compradas em feiras e supermercados. Com as crescentes restrições às sacolas de plástico, eles irão se integrar a hábitos mais saudáveis de proteção ao meio ambiente. Uma salva de palmas para o retorno dos embornais.
Falo em retorno dos embornais, não em surgimento dos mesmos. Dona Queta, minha avó adotiva, costurava embornais. Deve ter aprendido isso com a mãe dela no final do século XIX. Na minha infância – anos cinqüenta do século passado – a gente usava embornais para carregar compras feitas na venda. Usava-os também para carregar o caldeirão de comida que seguia para a obra onde trabalhasse meu pai.
Os embornais eram coisa de pobre, geralmente feitos de tecido de “sacos de farinha”. Acho que preciso explicar isso. A farinha de trigo era – acho que ainda é – acondicionada em sacos de algodão rústico. Tais sacos, uma vez vazios, eram aproveitados como matéria prima pelos pobres. O tecido, muitas vezes tingido com umas pedrinhas azuis de anil, era utilizado para confeccionar roupa para as crianças. Tive alguns calções e camisas de tecido de saco de farinha. Como vêem, muito antes de toda a conversa sobre reciclagem, as classes populares já praticavam hábitos de aproveitamento de materiais disponíveis.
Não sei em que ano os embornais começaram a ser distribuídos em seminários e congressos. Meu embornal mais antigo, presente do meu amigo Bernie Dodge, é de 1998. Trata-se uma sacola reforçada, feita com algodão de qualidade, que foi entregue aos participantes da National Education Computing Conference de 1998 – NECC’98 San Diego. Cabe notar que esse embornal foi patrocinado pela Apple, uma empresa que ama designs bonitos.
Minha aposta é a de que os embornais ficarão cada vez mais comuns em eventos. Além disso, serão cada vez mais utilizados para carregar compras de feiras e desupermercados. Acho que os mesmos serão feitos inteiramente de tecidos orgânicos, principalmente de algodão e juta. Na minha casa, já temos uns cinco embornais que são utilizados para acondicionar as compras do dia-a-dia.
Estamos reintroduzindo uma velha tecnologia para substituir a avançada tecnologia dos sacos plásticos. Há quem ache que a mudança trará algum desconforto, pois o material descartável, ainda predominante para acomodar nossas compras, é mais prático que os embornais. Mas, ao que tudo indica, sacos plásticos estão em rota de desaparecimento. E já vão tarde.
Devo justificar comentário sobre volta dos embornais num blog cujo assunto principal é educação e tecnologia? Acho que não. Há leitores que dirão que sim. Não concordo com eles. Por isso tentarei mostrar porque os embornais ganharam lugar de destaque neste boteco.
Usos de tecnologia são determinados por muitos interesses. No geral, os interesses dos poderosos predominam. As coisas, porém, não são muito simples. Interesses de quem tem poder não são simpáticos. Por isso costumam ser disfarçados sob o manto da ciência ou da necessidade. No caso de usos dos computadores, justificativas de ordem científico-tecnológica para determinadas opções são muito comuns. Nós, leigos, costumamos aceitar os argumentos. Uma das coisas que sempre me perturbaram é a obsolescência de softwares. Já comprei Oregon Trail duas vezes. Minha última versão, adquirida há uns cinco anos, já não roda nas máquinas novas. Se eu quiser rever o software educacional de maior sucesso no planeta terei que comprar mais uma versão, atualizada. Os informatas se apressarão em me explicar que antigas configurações são incompatíveis com os novos sistemas. E mais: dirão que não havia alternativa para os sistemas hoje em uso.
A fatalidade tecnológica atrás apontada é uma balela. Novos sistemas são incompatíveis com antigos softwares porque os donos dos modelos em uso não quiseram investir em alternativas. Preferiram o caminho que privilegia o envelhecimento precoce de programas de computador. Não entro em detalhes técnicos, pois teria de mergulhar num tecniquês que me desagrada. Mas, se alguém duvida do que estou dizendo, convém recorrer a um especialista. O que acabo de dizer de modo muito simplificado é uma das teses centrais do livro You Are Not A Gadget, de Jaron Lanier, o pai da realidade virtual.
Deixo de lado o mundo dos computadores e me volto para sistemas tecnológicos de produção. Grandes projetos de industriais são planejados por especialistas – engenheiros, administradores, donos do capital – que afirmam que suas soluções são as mais eficientes. Trabalhadores que se engajam na produção, dizem os especialistas, carecem de saber necessário para planejar a produção. Nos anos setenta do século passado, essa suposta verdade foi contestada várias vezes. Numa das crises de desemprego, trabalhadores propuseram alternativas de produção que evitaria demissões e para colocar no mercado produtos socialmente relevantes. Entre as sugestões de mudanças profundas no uso de tecnologias, merece destaque o contra-plano dos trabalhadores da Lucas Aerospace.
Numa das crises do capitalismo (primeiros anos de 1970), férias coletivas, eliminação de horas extras e demissões eram os caminhos mais utilizados pelas empresas. A Lucas Aerospace, empresa de alta tecnologia, fabricante de equipamentos sofisticados para a aviação, começou a aplicar a receita tradicional. Os empregados resolveram mostrar que havia alternativas para evitar o desemprego: mudança na produção e processos tecnológicos para produzir equipamentos socialmente relevantes.
Há diversas fontes de informação sobre o contra-plano. Tenho em mãos uma delas: Une alternative au chômage: Le contre-plan de production des travaillers de Lucas Aerospace, artigo de Cecilia Casassus e Jon Clark, Revue Sociologie Du Travail, outubro/dezembro de 1978. Colho, ao acaso, alguns trecho que destaquei em leitura anos atrás:
- Apoiamos nossa ação na defesa do emprego, propondo intervenção [dos trabalhadores] na escolha dos produtos, das tecnologias e dos modos de organizar o trabalho.
- A pesquisa de produtos alternativos pelos trabalhadores da Lucas Aerospace representa uma virada original que evoca, por outro lado, uma crítica ao progresso tecnológico capitalista.
- Ele [o contra-plano] reivindica o direito ao emprego, mas também o direito de utilizar as ferramentas de produção e as qualificações da força de trabalho para produzir bens que beneficiarão a comunidade inteira.
- Nós decidimos ir além dessa absurda divisão que a sociedade impôs entre produtores e consumidores, que parece sugerir que existem duas nações, uma que trabalha em fábricas e escritórios, outra que vive em suas casas e na comunidade.
Chamo atenção para o último item. Dividimos a sociedade de hoje entre produtores e consumidores. Estes últimos parecem ser uns folgados, parece que não trabalham, parece que não produzem, só consomem. Sempre fico a me perguntar quem são os produtores nessa divisão tão marcada.
Volto ao tema central. Redigi este texto para provocar, pois há muita gente que não examina alternativas tecnológicas a partir de interesses sociais, sempre achando que o progresso é um avanço contínuo determinado pelo tecno-ciência. A volta do embornal parece indicar que a coisa não é bem assim.