
Estou reunindo referências e histórias para estudar ética, axiologia e trabalho. Algumas das histórias que podem ilustrar o assunto já apareceram, nos últimos dez anos, em alguns dos meus escritos. Por isso, recorri à memória para me lembrar de outros casos ilustrativos. Minha primeira lembrança nessa direção foi um caso acontecido no famoso Bar Léo.
Certo dia, quando estava no Bar Léo, alguém pediu um chope sem espuma. O velho garçom se recusou a atender ao pedido e informou: “chope bem tirado precisa ter colarinho, se o senhor quiser tomar chope sem espuma, procure outro estabelecimento”. Minha primeira reação ao ouvir a fala do garçom do Leo foi a de achar que o mesmo era muito mal educado. Depois achei o episódio divertido, pois o antigo profissional da casa tinha algumas manias que precisavam ser corrigidas. Afinal de contas, como diz a norma número 1 de serviço, o freguês sempre tem razão.
Tempos depois fiz outra leitura do episódio. O velho garçom do Léo estava informando que os profissionais da casa entendiam do riscado e por isso não faziam trabalho que contrariasse suas referências de qualidade. Para bons profissionais, a opinião dos fregueses nem sempre é referência para definir como preparar um prato, assar uma pizza, tirar um chope, preparar uma caipirinha. Cozinheiros, barmen e garçons que conhecem seu ofício não aceitam ser instruídos por leigos. Eles têm orgulho de sua profissão. Veem-na como uma arte que pode ser avaliada por iguais, não por curiosos, mesmo que estes últimos estejam na condição de poderosos clientes.
Quero agora examinar o caso com mais cuidado. O garçom do Léo, com muitos anos de ofício, tinha conhecimento técnico do que servia e via isso como um saber profissional. Romper com o padrão de um chope bem tirado significava para ele uma forma de desprezo por seu trabalho. Há nessa convicção um componente ético.
É bom reparar que as normas mercadológicas sugerem que o profissional atenda desejos do cliente, mesmo que para tanto seja preciso contrariar padrões de qualidade do trabalho. O garçom do Léo não aceitava tais normas. Para ele, o compromisso do profissional é com sua obra, não com o freguês. Este último pode ser ignorante quanto ao que é melhor na preparação de comidas e bebidas. Compete ao profissional alertá-lo sobre a apresentação de tudo o que integra o cardápio da casa.
O caso em foco nos mostra algo bem interessante: os valores assumidos por um profissional são definidos pela obra, não por desejos de quem pode por ela pagar. O compromisso fundamental de um profissional é fazer o que faz da maneira mais perfeita possível. É isso que resulta em “orgulho profissional”, ou seja, em obra bem feita. Há nesse jogo o que um dos meus professores de ética chamava de moral da responsabilidade. O cliente, indiretamente, é favorecido pelo compromisso que os profissionais têm com seu trabalho, mas não é ele o centro das preocupações de quem sabe seu ofício.
Saio do bar Léo por alguns momentos, mas não deixo de lado o objeto desta conversa: chope e ética. Há muitos anos, na periferia de Edimburgo, entrei num pub para tomar uma Guinness. Pedi o tradicional half pint. O lugar era decadente. Além de mim, apenas dois outros fregueses, operários ou aposentados, estavam na casa. Os móveis eram todos de madeira maciça, velha e gasta. Sob uma mesa, dois cães de rua dormiam sem serem incomodados. Eu era um intruso no lugar. Por ali não passavam turistas. O dono me alertou: vai demorar um pouco tirar o chope, o senhor pode se sentar e esperar. O alerta dele tinha um pouco a ver com a observação do garçom do Léo. O escocês, dono de um boteco tradicional da terra, queria me educar sobre a arte de apreciar um bom chope. Esperei um tempo, até que o dono do pub colocasse sobre o balcão um half pint de Guinness comme il faut.
Trago para cá o episódio de minhas andanças pela Escócia para estabelecer um contraponto com outro pedido de Guinness que fiz num bar de hotel em Londres. Fui atendido por uma mocinha que não conhecia o ofício. Fazia um bico nas férias de verão. Ela tirou o chope sem aquele cuidado profissional que você vê nos pubs tradicionais. Apenas usou a máquina, sem obedecer às fases de extração do precioso líquido, devagar, eliminando excesso de espuma, verificando a cremosidade da bebida. Ela queria colocar o mais rápido possível o chope na frente do freguês. O resultado final foi o de um half pint de Guinness meio choca, aguada, sem cremosidade.
A moça do bar do hotel não tinha compromisso com a obra. Achava que fazia seu serviço, enchendo o copo do freguês, sem qualquer cuidado. Ela não aprendeu a técnica de tirar um chope no capricho. Aprendeu apenas a operar a chopeira mecanicamente. Quem lhe ensinou não era um mestre. Não era alguém que articulasse, nos mesmos gestos, a técnica e a convicção de que profissionais não fazem serviço porco.
Insisto um pouco mais em análises sobre chope e ética. Os casos que conto aqui mostram o fazer bem feito moldando a identidade do profissional, pois este sabe e sente que é o que faz. A identidade do trabalhador não é um conjunto de convicções compostas por construtos mentais resultantes de um discurso moralista. A identidade do trabalhador é resultado da construção de valores que associam fazer e ser num mesmo ato.
Quando em educação profissional, a organização de ambientes de aprendizagem separa valores da ação, ou esvazia-se o conteúdo do trabalho ou estabelece-se uma situação de ensino de abstrações sem alma, pois o professor encarregado de promover valores por meio de discursos não tem qualquer compromisso com a ética do trabalho que os alunos estão aprendendo.
Este texto sobre chope e ética é uma primeira reflexão sobre ética, axiologia e trabalho. Se alguém quiser colaborar, com perguntas, críticas, esclarecimentos, casos e qualquer outra sugestão, agradeço.