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Inteligência e Rapidez

fevereiro 29, 2012

Faz algum tempo que me vi humilhado por um terminal do Banco Bradesco. Eu precisava pagar contas de reforma feita em minha casa de praia. Para fazer o depósito, era necessário digitar diversos conjuntos de números. E comecei a apanhar num campo que exigia digitação de uma cadeia extensa de algarismos. Antes que eu chegasse ao fim, a tela mudava e vinha um aviso de que a operação não fora completada.

O que acontecia? Eu precisava ler os números no papel e digitá-los com cuidado no campo correspondente. Nessa operação, enfrentava dois problemas: (1) a vista cansada, (2) a lerdeza na digitação. O analista que planejou o programa previu um tempo máximo para preenchimento daquele maldito campo. E meu ritmo, infelizmente, ficava aquém da decisão do analista. Resultado: só consegui efetuar o depósito depois de muitas tentativas frustrantes, sempre reiniciando o processo inteiro.

O que aconteceu comigo é coisa comum. Em muitos usos de computadores, as operações estão programadas para serem realizadas dentro de certa faixa de tempo. Essa prática de processamento de dados tem como fundo a crença de que um dos aspectos que definem inteligência humana é a velocidade de resposta correta. Quanto mais rápida a resposta, mais inteligente é o respondente. Esse pressuposto é bastante utilizado em testes padronizados.

Volto ao meu caso diante de um terminal eletrônico do Bradesco. A decisão do analista certamente foi influenciada por um princípio de eficiência. Desde os tempos de Taylor, acredita-se que a rapidez na realização de uma operação ou tarefa é indicadora de eficiência. [Cumpre observar que Taylor não obteve muito sucesso nisso e foi demitido depois de alguns anos de experiências que não chegavam aos resultados que ele prometia, cf. Honoré, Elogio de La lentitud, 2005]. Essa crença, por exemplo, determina que consultas médicas nos convênios de saúde não podem ultrapassar tempo padrão, pouco importando dificuldades para se chegar a uma decisão sobre diagnóstico ou encaminhamento do paciente.

Crenças de que tempo de realização é um critério de eficiência estão disseminadas em nosso mundo. Qualquer demora em balcão de serviço é motivo para irritação.

No caso de programas de computadores, quem é lento fica intimidado. Acha que tem algum problema. Acha que é um imigrante que não entende o idioma local. Tenta adaptar-se, sempre assumindo a culpa pelo resultado desastroso ao utilizar sistemas digitais. Esse sentimento é reforçado por valores hegemônicos, aceitos sem crítica e promovidos continuamente pela mídia. Isso acontece muito com julgamentos que se fazem com relação a atitudes dos docentes diante de planos de utilização de computadores em educação. Numa outra ocasião quero examinar o mito de que falta aos docentes “letramento” digital.

Idiotas da eficiência diriam que meu caso com o terminal do Banco Bradesco tem uma única solução: adaptação ao sistema. Diriam que a eficiência dos novos tempos impõe a gente lerda como eu a obrigação de um treino para superar dificuldades. Esses idiotas jamais diriam que o depositante deveria merecer mais consideração. Eles ignoram que o que eu tentava fazer é uma operação que dá lucro para o banco. Afinal de contas, eu estava transferindo de minha conta, no Banco do Brasil, grana para uma conta corrente que iria fazer crescer a carteira de depósitos no Bradesco. Eu não estava fazendo qualquer favor ao banco, nem recebendo um benefício que justificasse esforço no sentido de aprender truques novos.

Preocupa-me, no caso que estou analisando, o conformismo de uma maioria que acha que devemos adaptar-nos, dando razão aos idiotas da eficiência. Está em jogo aqui uma concepção que entende que algumas características humanas, quando comparadas com virtudes do computador, são limitações lamentáveis. Não conseguimos, por exemplo, concentração contínua em qualquer operação que estejamos realizando. Isso pode resultar em acidentes. Em muitos desastres, isso é evidenciado quando se fala em erro humano. Vale observar que nossa espécie, por necessidades de sobrevivência, desenvolveu capacidade de observar simultaneamente diversas ocorrências ambientais. Isso é motivo de aparente distração, mas, é, por outro lado, um dos motivos pelos quais nossos avós de cem mil anos atrás não foram surpreendidos por predadores que poderiam eliminar os primeiros núcleos humanos, tornando improvável nossa existência hoje.

Para quem quiser examinar os supostos limites humanos  mais profundamente, recomendo Things That Make Us Smart: Defending Humans Attributes in the Age of the Machine. Aqui no Boteco há tradução do primeiro capítulo dessa deliciosa obra de Donald Norman. Vejam-na em  Uma tecnologia centrada nos seres humanos.

Para que os idiotas da eficiência não digam que preciso me informar sobre softwares, apresento aqui um encaminhamento técnico para resolver casos como o meu diante do caixa eletrônico do Bradesco.

Há um livro que todos os analistas de sistema e designers de interfaces precisam conhecer: Acting With Technology: Activity Theory and Interaction Design. Nessa obra, Victor Kaptelinin e Bonnie Nardi relatam diversas experiências de construção de programas de computadores que levam em conta o outro parceiro, gente. Tais programas levam em consideração como as pessoas funcionam, que necessidades tem, como projetam suas relações com a área de atividade para a qual o programa está sendo elaborado. Nessa abordagem, programas são feitos para pessoas em vez de estas terem de se adaptar a um software cujas características atendem apenas a conveniências de engenharia de computação ou interesses alheios a quem tipicamente vai utilizar o produto.

Utilizo inspiração de Kaptelinin e Nardi para esboçar plano de produção de um software para caixas eletrônicos.

Nossa memória, segundo estudo clássico de George Miller, lida bem com um número de dados que não ultrapasse o limite de sete itens. Por isso, num formulário eletrônico, não convém ter campos que exijam digitação de uma sequência de mais de sete números. Idiotas da eficiência se apressariam a dizer que alguns códigos tem cadeias de algarismos que ultrapassam o mágico número sete. Sei disso. Mas, não é preciso cobrar digitação contínua de tais cadeias. Aquelas sequências imensas de números podem ser divididas em conjuntos manejáveis de números. Uma cadeia de dezesseis números, por exemplo, pode ser dividida em três conjuntos de 6+6+4. Assim, em vez de um único campo, teríamos três. Aliás o senso comum já nos indica tal prática, sempre dividimos em conjuntos manejáveis listas de itens ou sequências de números. Basta reparar como as pessoas ditam um número de telefone para amigos.

Além de mudança no software, é aconselhável apresentar a informação também em chunks (parcelas manejáveis), se possível em unidades de leitura coincidentes com o campo de preenchimento na tela.

Mais mudanças podem (e devem) ser feitas. Uma delas refere-se ao tamanho dos formulários, dos campos e dos algarismos que aparecem na tela. Para pessoas com alguma dificuldade de visão como eu, o ideal é preencher formulários eletrônicos com letras e números corpo 16. Tudo fica mais nítido e claro.

Se os bancos acham a eficiência tão importante, poderíamos fazer um acordo: haveria alternativas, a tradicional (a única que temos agora) e a mais amigável (a que atende melhor a necessidades humanas). Na primeira, poder-se-ia manter limites de tempo. Na segunda, as pessoas poderiam levar o tempo de que precisam para dar conta do recado.

Eu poderia mais detalhar aspectos de design a serem considerados. Mas, acho que não preciso fazer isso para mostrar que é possível trabalhar com um princípio fundamental, o de que os programas devem ser feitos para atender necessidades das pessoas e não o contrário. Fazer o que estou propondo não exige nenhum conhecimento novo de programação. Exige apenas vontade de humanizar usos das tecnologias digitais da informação.

Para finalizar essa conversa, preciso voltar ao assunto inicial: rapidez. Nada justifica apressar pessoas com tempos que lhes são desconfortáveis. Superar nossas limitações biológicas exige sempre treinamento, exercício. Isso nada tem a ver com inteligência. Tem a ver com possibilidades de superar limites. Mas, para que dedicar tempo a preencher em tempo mais curto formulários de um caixa eletrônico? Há na vida coisas mais importantes que merecem nosso tempo. Além disso, há possibilidades concretas de construir interfaces computadores/gente que não nos obriguem a seguir o ritmo das máquinas.

Minhas observações neste post tem muito a ver com educação. Desconfio que a maior parte dos educadores ainda não se deu conta de que certas crenças sobre letramento digital são imposições de uma ideologia da eficiência.

A lentidão de adultos e velhos no uso de certos programas computacionais não é sinal de resistência ou ignorância. É apenas um indicador de que somos humanos.

Nota final. Para interessados no  livro Acting With Technology, indico resenha que fiz dessa obra algum tempo atrás. Para tanto, cliquem aqui.

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Motivação e Aprendizagem

fevereiro 26, 2012

John Keller criou um modelo de motivação, ARCS, que até hoje tem grande influência em projetos de tecnologia educacional. Soube do modelo nos finais dos anos de 1970 por causa de uma pergunta que me fizeram. No final da década, eu coordenava um projeto de centros de auto-instrução no Senac.sp. Nosso trabalho teve relativo sucesso. Alguém da academia soube do que fazíamos e me procurou para uma conversa. No papo, essa pessoa cujo nome não me lembro, perguntou se estávamos utilizando o modelo Keller. Fez isso com certa pompa e circunstância. Explicou-nos que tal modelo era objeto de estudo de um pesquisador ou pesquisadora da Unesp que estava trabalhando com auto-instrução. Respondi que não, pois sequer conhecíamos o modelo Keller.

Quem me fez a referida pergunta não conhecia bem o modelo proposto por Keller. A indagação foi feita muito mais para revelar preocupação com fundamentos pedagógicos. Ou seja, a perguntadora colocava nossa experiência na parede por falta de fundamentação teórica, embora nosso trabalho estivesse alcançando resultados consistentes. Hoje sei disso. E sei mais: a proposta de Keller tem a ver com Instructional Design, não com uma forma particular de organizar a instrução (instrução personalizada, como era o caso de nossa experiência na época). Ela pode ser aplicada em qualquer contexto e formato de projetos instrucionais. [estou usando aqui uma linguagem que não é muito do gosto de educadores; eles não gostam da palavra instrução, preferem educação; talvez não saibam que do ponto de vista etimológico instrução tenha muito mais nobreza que educação; mas, isso é papo para um post específico].

Anos depois li alguns artigos sobre o modelo de Keller (o ARCS model). E me lembro de uma conversa incidental sobre o mesmo modelo num dos meus papos com Bernie Dodge. Faz bastante tempo que referências sobre John Keller sumiram do meu cotidiano. Hoje, por acaso, voltei a me encontrar com o modelo, graças ao webseminar conduzido pelo Bernie ano passado na SDSU. Cópia completa do webseminar está na internet. Puxei o vídeo correspondente para cá.

No webseminário, Bernie observa que alguns de seus alunos estão lendo o livro mais recente de John Keller sobre ARCS. Encomendei meu exemplar. Interessados poderão encontrar referência sobre o mesmo em:

Para pessoas que ainda não ouviram falar sobre o modelo de Keller ou querem refrescar a memória sobre o mesmo, fiz uma tradução/adaptação de texto da internet que apresenta uma síntese do mesmo.

MODELO ARCS DE MOTIVAÇÃO PARA INSTRUÇÃO

Sumário: De acordo com o Modelo ARCS de John Keller, há quatro passos para promover e sustentar a motivação no processo de aprendizagem: Atenção, Relevância, Confiança, Satisfação.

Criador: John Keller

Palavras Chaves: Atenção, Relevância, Confiança, Satisfação (ARCS)

ARCS Model of Motivational Design (Keller)

1. Atenção

  • Segundo Keller a atenção pode ser obtida de duas maneiras: (1) Estimulação da percepção – use surpresa ou incerteza para ganhar interesse. Use eventos novos, surpreendentes, incongruentes e incertos; ou (2) Estimulação inquisitiva -estimule curiosidade, propondo questões e problemas desafiadores para serem resolvidos.
  • Métodos para ganhar a atenção dos aprendentes incluem o uso de:
    • Participação Ativa – Adote estratégias como jogos, dramatizações e outras atividades similares para envolver os aprendentes com o material ou com o assunto a ser estudado.
    • Variabilidade– Para melhor reforçar materiais e levar em conta diferenças individuais em estilos de aprendizagem, use vários métodos na apresentação do material (use duas ou mais formas de apresentação como: vídeos, softwares, textos, exposições orais curtas, mini-discussões em grupo etc.).
    • Humor –Mantenha interesse com o uso de pequenas doses de humor (mas, não exagere, humor em excesso provoca distração).
    • Contradição e Conflito – Uma abordagem de advogado do diabo na qual as afirmações são formuladas pró e contra as experiências prévias dos aprendentes.
    • Exemplos Específicos – Use estímulos visuais, estórias, ou biografia.
    • Indagação – Coloque questões ou problemas para os aprendentes resolverem, usando, por exemplo, atividades de brainstorm.

2. Relevância

  • Estabeleça relevância com finalidade de ampliar a motivação dos aprendentes. Para tanto, use linguagem concreta com a qual os aprendentes estão familiarizados. As seis mais importantes estratégias descritas por Keller são:
    • Experiência – Diga aos aprendentes como a nova aprendizagem se relaciona com suas habilidades prévias. Aprendemos melhor quando construímos novos saberes com base em saberes prévios.
    • Vantagem – Que utilidade tem a matéria para mim hoje?
    • Utilidade Futura – Que utilidade a material terá para mim amanhã?
    • Resposta a Necessidades – Aproveite as dinâmicas de realização, de enfrentamento de riscos, de poder, de pertença a um grupo social.
    • Modelo – Antes de mais nada, “seja o que você quer que eles façam!” Outras estratégias incluem conferencistas convidados, vídeos e auxílio de aprendentes que dominaram o assunto mais cedo como tutores.
    • Escolha – Permita que os aprendentes  usem diferentes métodos para realizar seus trabalhos.

3. Confiança

  • Ajude os aprendentes a entender suas possibilidades de sucesso. Se sentirem que não podem atingir os objetivos ou que o custo (tempo e esforço) é muito alto, a motivação deles vai decrescer.
  • Forneça informação sobre objetivos e pré-requisitos – Ajude os aprendentes a avaliar a probabilidade de sucesso apresentando exigências de desempenho e critérios de avaliação.
  • Trabalhe com metas de sucesso que sejam significativas.
  • Desenvolva os Aprendentes  – Trabalhe para que pequenos níveis de crescimento aconteçam durante o processo de aprendizagem. [Medida necessária para que os aprendentes percebam crescimento incremental antes de chegar ao resultado final]
  • Feedback – Forneça feedback e dê apoio aos aprendentes para que estes formem percepções pessoais de sucesso.
  • Controle dos Aprendentes – Os aprendentes precisam sentir algum nível de controle sobre sua aprendizagem e avaliação da mesma. Eles precisam acreditar que seu sucesso é um resultado direto da quantidade de esforço que eles dedicam ao aprender.

4. Satisfação

  • A aprendizagem precisa ser recompensadora ou satisfatória de alguma forma, seja pelo sentimento de conquista, seja pelo elogio obtido por um avanço, seja por mero contentamento.
  • Faça com que os aprendentes sintam como a habilidade em foco é útil ou benéfica, fornecendo oportunidades para uso do novo conhecimento adquirido em contextos autênticos.
  • Forneça feedback e reforço. Quando os aprendentes apreciam o resultado, eles ficarão motivados para aprender. Satisfação é baseada em motivação, que pode ser intrínseca ou extrínseca.
  • Não seja indulgente com os aprendentes, recompensando excessivamente tarefas fáceis.

Para saber mais:

  • Keller, J. M. (1983). Motivational design of instruction. In C. M. Reigeluth (Ed.), Instructional-design theories and models: An overview of their current status. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates.
  • Keller, J. M. (1984). The use of the ARCS model of motivation in teacher training. In K. Shaw & A. J. Trott (Eds.), Aspects of Educational Technology Volume XVII: staff Development and Career Updating. London: Kogan Page.
  • Keller, J. M. (1987). Development and use of the ARCS model of motivational design. Journal of Instructional Development, 10(3), 2-10. John Keller’s Official ARCS Model Website.

Alegria de viver

fevereiro 25, 2012

A Grécia ocupa diariamente os noticiários. Governos europeus, sobretudo da Alemanha e França, estão impondo ao país uma ditadura do capitalismo financeiro. Pagarão os trabalhadores. Pagarão os mais pobres. Dona Democracia sai de cena na terra em que nasceu. Muito triste.

Mas, os gregos amam a vida. Aqui vai um jeito grego de sentir-se vivo. Com entusiasmo.

Este post está classificado com os tags Recreio e Liberdade. Entendam recreio no seu sentido helênico de skolé, a palavra que depois virou escola em nossas línguas ocidentais, mas perdendo as dimensões de lazer e prazer originais. Em alegria e am0r à vida , os gregos continuam a fazer escola.

Cabe aqui um complemento. Diante das iniciativas que escravizarão a Grécia para atender a interesses do credores, é preciso escutar vozes discordantes. Uma delas é a de Mikis Theodorakis, grande músico grego. Vejam o que ele diz, em trechos de carta aberta publicada em seu blog.

Carta Aberta de Mikis Theodorakis sobre o assassinato da Grécia.

Admirável tecnologia pode ser um engano

fevereiro 22, 2012

Nosso interesse tem muito a ver com admiração. Mais que isso: nossa visão de mundo e nossos valores tem a ver com admiração.

Há admirações que acabam revelando grandes ignorâncias. Preocupa-me muito, nesse sentido, admiração irrestrita que cerca muitos dos produtos de tecnologia em nosso mundo. Esse tipo de admiração elimina história e inteligência do cenário. Há gente que fala de gadgets eletrônicos como se os mesmos tivessem caído do céu. Muitas vezes, ao ouvir comentários sobre maravilhas tecnológicas, fico com a impressão de que os maravilhados comentaristas agem como se as novidades do mundo digital fossem produtos de alienígenas.

A admiração ignorante desconhece longos caminhos que os produtos tecnológicos percorrem até se converterem em mercadorias travestidas de “necessidades” em nosso mundo. Isso alimenta um consumo irracional. Dificilmente encontramos produtos realmente revolucionários. Na maior parte das vezes somos convencidos de supostas originalidades por uma propaganda sutil, mas enganosa. A questão não é nova. O Salmista, bem antes da era cristã, viu-se obrigado a advertir de que não há nada de novo na face da terra. Acho que essa observação de Salomão sugere que olhemos para a história em cortes de longo prazo. Nada desses imediatismos que parecem indicar que tudo muda em ritmo cada vez mais acelerado.

A admiração ignorante de produtos tecnológicos desconhece o que é mais admirável, o engenho humano. Em educação isso é desastroso. Em vez de se voltar para os seres capazes de inventar coisas fantásticas, muitos educadores voltam-se para as invenções. Há nesse sentido, uma mudança de foco, pergunta-se como as tecnologias mudarão as pessoas, não como as pessoas podem mudar tecnologias. Justifica-se assim depedência. Elimina-se autonomia. E mais, deixa-se de perceber que certas resistências a tecnologias são uma maneira de chamar atenção para dimensões importantes do humano.

O que escrevi até agora, sem qualquer censura e buscando escandalizar admiradores deslumbrados de novas tecnologias, foi inspirado por uma nota de leitura. Há tempos, li Santo Agostinho: Uma Biografia, de Peter Brown. Na página 205 do livro fiz uma marcação. É um parágrafo no qual Peter Brown cita um trecho das Confissões. O autor usa tal trecho para falar de admirações ignorantes. Copio o destaque feito por Brown e acho que não preciso comentar a observação de Agostinho sobre desvios da admiração:

Ficam os homens boquiabertos com os picos das montanhas, as ondas alterosas do mar, a vasta correnteza dos rios, a amplidão do oceano e os movimentos dos astros; mas se deixam passar despercebidos, não se deslumbram com eles mesmos. (p. 205)

Substituam mar, oceano, rios e astros por celulares, internet, scratch, ipads etc. (sempre a última versão, naturalmente!) e terão a exata medida do que eu estou querendo discutir neste post.

Testes e avaliação da educação

fevereiro 22, 2012

Nos Estados Unidos, uma educação voltada exclusivamente para testes padronizados domina o cenário. Ao examinar o que vem ocorrendo, podemos concluir que a única finalidade da educação em terras do Tio Sam é obter boas notas nos testes padronizados.

O que vem ocorrendo é um sério desvio. Testes padronizados, um indicador útil para diagnóstico de como anda a educação num dado momento e lugar, passaram a ser a única medida  para avaliar alunos, escola e professores. A situação já tem cores kafkianas. Um vídeo, crítico e irônico, mostra o que rola naquelas paragens. Vejam a  conversa entre uma professora e uma avaliador que não aceita qualquer outra informação que não seja resultado das notas em testes:

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Escola Nova: um passo à frente

fevereiro 22, 2012

Costumo fazer notas de leitura em meus livros de estudo com a intenção de aprofundar aspectos que me chamam atenção. Mas, sempre me falta tempo para voltar às notas e aprofundar a matéria. Com isso, muitas coisas anotadas passam apenas a integrar meus conhecimentos tácitos. Mas, para meus interlocutores, algumas de minhas referências não ficam evidentes. Vou divulgar neste Boteco Escola algumas dessas minhas notas de leitura.

Começo com uma nota que fiz ao ler Common Knowledge: : The Development of Understanding in the Classroom, obra de Derek Edwards e Neil Mercer. Nas página  35-36, os autores fazem uma observação importante sobre Escola Nova e perspectiva sócio-construtivista (a la Vigotsky). À margem da observação, fiz a seguinte nota de leitura: Ensino & Aprendizagem: educação tradicional, educação progressista (Escola Nova) e comunicação….  O trecho marcado sugere, com muita clareza, necessidade de superar crença da Escola Nova: a educação centrada no aluno. Essa crença é poderosa e continua a ser um dos artigos de fé dos educadores progressistas. E muita gente acha que ela é um dos pilares do construtivismo, ignorando suas raízes escolanovistas. Uma das consequências disso é uma epistemologia equivocada que entende o saber como algo exclusivamente individual e subjetivo.

No parágrafo anterior esbocei o tema que gostaria de elaborar a partir de minha nota de leitura. Teria de dispor de mais tempo para tanto. Mas, enquanto não embarco num texto mais elaborado, divulgo aqui a observação de Edwards e Mercer para incentivar conversas sobre o assunto.

Ao relatar pesquisas que fizeram sobre a implementação de uma reforma educacional supostamente inspirada por Piaget, os autores fazem o seguinte comentário:

… a ideologia de ensino esposada pelos professores que observamos é puramente um fenômeno local. Os princípios centrail dessa ideologia, onde quer que seja praticada,  são aqueles da educação progressista ou educação ‘aberta’ [Escola Nova]. E, como veremos, esses princípios incorporam alguns pressupostos psicológicos particulares e questionáveis.

Convém ressaltar neste ponto do livro que não estaremos propondo nenhuma crítica  à educação progressista [Escola Nova] para argumentar a favor dos métodos didáticos tradicionais. O movimento progressista estava correto em seus argumentos a favor do engajamento ativo dos alunos em sua própria educação. O que precisamos defender é um terceiro passo, na direção de um modelo cultural-comunicativo da educação.  Ao rejeitar o modelo tradicional e ao enfatizar o desenvolvimento cognitivo das crianças, o movimento progressista desconsiderou a importância da transmissão cultural. O que precisamos é de um entendimento da educação como um processo no qual as crianças são ajudadas e guiadas na direção de uma participaçãpo ativa e criativa em sua cultura. A visão tradicional estava voltada para o ensino, e progressista para a aprendizagem. Precisamos de uma nova síntese, na qual educação seja vista como desenvolvimento de um saber coparticipativo. (p. 35-36)

Internet, liberdade e censura

fevereiro 20, 2012

 

Há uns dois anos tive que aguardar um longo período para fazer entrevistas numa pesquisa que realizei numa faculdade. Gentilmente, uma das coordenadoras me cedeu uma sala para que eu pudesse usar a internet. Quis escrever um post no meu blog. Não foi possível. Quis verificar mensagens novas no meu twitter. Não foi possível. Em ambos os casos apareceu na tela um Protection Alert, comandado por um cão de guarda. Tal sistema protetor tinha algumas informações que resolvi ler. Uma das mensagens dizia que o twitter é um Social Networking (rede social). Motivo suficiente para ser censurado naquela escola. Como o protetor tinha um link para Social Networking fui conferir. Aprendi então que “redes sociais da internet podem conter material ofensivo”.

Narro outro episódio. Carta Capital na Escola publicou uma reportagem sobre WebGincanas, modelo de uso da internet que desenvolvi com meus alunos. Certo dia na universidade eu quis ver a reportagem em versão digital.  Não consegui. A cada tentativa era informado que estava acontecendo um erro. Achei estranho, pois outras buscas na internet estavam funcionando normalmente. Demorei a entender o que estava acontecendo: o título da matéria procurada – Saberes em Jogo – contém uma palavra proibida. O bloqueador da universidade não deixa ninguém ler qualquer texto que tenha a palavra jogo. Problema sério para alunos de educação física. Em pesquisas sobre muitos esportes, eles precisam de permissão especial dos gestores da segurança de sistemas na universidade. Nesses casos, depois de muita burocracia, são destinadas aos pesquisadores algumas máquinas sem os bloqueios usuais.

Como é que as pessoas justificam esses atos de censura? Há duas explicações mais utilizadas. Uma tem a ver com disciplina intelectual. Outra, com moralidade. No primeiro caso, os censores dizem que a internet nas escolas deve ser usada apenas para atividades de estudo. No segundo caso, os censores dizem que é preciso proteger crianças e jovens contra os perigos de gente que usa a internet para explorar a inocência de nossos filhos. Acho que a censura promovida pelos bloqueadores não atinge nenhum dos objetivos propostos.

Examinemos o argumento da disciplina. A internet é um ambiente que pode dar margem a muita dispersão. Num laboratório de informática, quando professores propõem alguma atividade com apoio da rede mundial de computadores, é comum ver alunos navegando por sites que nada têm a ver com a matéria estudada. Já vi isso em toda parte, dos cursos de pós-graduação a aulas no ensino fundamental. A possibilidade de dispersão parece justificar bloqueio a redes sociais e a sítios dedicados a distração e lazer. Mas, os bloqueios não resolvem o problema; os alunos, se quiserem, sempre encontram meios de usar a internet de maneira dispersiva.

O segundo argumento parece mais sólido. Já ouvimos muitas histórias de como pessoas mal intencionadas utilizam a internet para corromper crianças e jovens. Crimes relacionados com sexo e drogas são as ocorrências mais freqüentes que os censores utilizam para justificar bloqueios em computadores das escolas. Mas a providência é inócua. O uso criminoso da internet não acontece em situações de uso público dos computadores.

A meu ver, num e noutro caso, escolas jogam dinheiro fora quando compram sistemas de bloqueio da internet. Esta, porém, não é minha preocupação principal. Preocupa-me a aceitação da censura no ambiente escolar. Algumas coisas que aprendemos nas escolas passam muito mais por meio do ambiente que por meio dos discursos feitos pelos educadores. Assim, um ambiente de censura passa para professores e alunos a mensagem tácita de que a comunidade escolar não merece viver em liberdade. O aluno de educação física que precisa de permissão especial para pesquisar jogos na internet aprende que a escola não confia nele. O aluno de ensino fundamental que vê seu twitter bloqueado aprende que ele é incapaz de fazer escolhas sem proteção contínua de adultos.

Volto à questão da disciplina nos estudos. Quando professores levam alunos ao laboratório de informática para pesquisas na internet, sem qualquer plano de trabalho consistente, a dispersão será inevitável. Bloqueio, como já disse não é solução no caso. A solução passa por propostas bem estruturadas de uso da internet para pesquisa. WebGincanas e WebQuests bem feitas, por exemplo, são muito mais efetivas que a censura a sites supostamente dispersivos. E, acima de tudo, a decisão de estudar é do aluno. A censura não ajuda ninguém a se dedicar à pesquisa. Aprender é um ato de liberdade.

A questão da moralidade é mais delicada. Proteger as crianças contra todo tipo de ameaça é uma tese aceita pela maioria dos adultos. Mas, crianças e jovens querem muitas vezes tomar decisões sem supervisão de pais ou professores. E esse desejo não é um capricho. É expressão de um sentimento de que a moralidade é fruto de escolhas livres.

Em qualquer dos casos comentados, parece-me que o caminho da liberdade é muito mais educativo que a censura à internet nas escolas.

 

Alfabetização Digital

fevereiro 20, 2012

No final do ano passado, fiz uma comunicação em evento promovido pela Universidad del Trabajo del Uruguay (UTU). O tema central do encontro dos educadores da UTU era alfabetização. Não a alfabetização em seu sentido original, mas a alfabetização em linguagens nos campos da ciência e da tecnologia. Me coube falar sobre alfabetização digital. Escrevi um paper que aborda em termos mais sitemáticos o que falei. Não posso divulgá-lo, pois a UTU ainda não o publicou. Posso, porém, colocar aqui o resumo que enviei aos meus amigos uruguaios antes de elaborar a versão completa da minha comunicação.

Para os interessados, segue cópia do meu resumo.

ALFABETIZAÇÃO E O DISCURSO TECNOLÓGICO DIGITAL. (Jarbas Novelino Barato). Resumo de artigo/apresentação.

No final dos anos de 1970, os computadores pessoais começaram a ser utilizados por cidadãos comuns.  O uso dos computadores exigia domínio do DOS (Disk Operating System) de cada tipo de máquina. Na época, evoluiu o entendimento de que era preciso universalizar um saber informático comum para facilitar acesso aos benefícios da popularização das tecnologias digitais. Em alguns casos, foi preciso dominar certos tipos de programação para possibilitar usos de pacotes em áreas como desenho, estatística, educação.

Nessa primeira fase predominou um entendimento de que a alfabetização tecnológica necessária acontecia no campo da sintaxe. O que se propunha era uma preparação para que as pessoas dominassem certas estruturas e regras de organização do discurso computacional. Mas, não ficavam claros limites entre domínio profissional da nova tecnologia domínio básico da mesma por parte do cidadão comum.

Com o avanço constante de interfaces mais amigáveis dos computadores, a dimensão sintática foi perdendo relevância. Com as novas interfaces, o usuário não precisava mais de interagir com computadores por meio de comandos (utilizando certas linguagens de metaprogramação). Surgiram meios de interação supostamente intuitivos para a comunicação homem/máquina. Janelas, ícones e menus passaram a ser ferramentas cujo funcionamento foi incorporado rapidamente pelos usuários. Mas, apesar da mudança, a natureza do problema ainda ficou no campo da sintaxe

De 1995 para cá houve uma alteração significativa, a internet mostrou que as novas tecnologias implicavam em mudanças profundas no tratamento, disseminação e uso de informação. Os aspectos sintáticos, ainda presentes, deixaram de ser importantes. Questões de aspecto semântico entraram em cena. Neste ponto ficou evidenciado que não enfrentamos apenas uma questão de cunho sintático. O que está em jogo é uma radical mudança de significados. Estamos, com diria Paulo Freire, diante de uma nova “leitura de mundo”. O impacto da tecnologia digital não se reduz a problemas de domínio de estruturas e regras de comunicação.

No plano da semântica, as questões do discurso ficam mais difíceis. As tecnologias digitais estão provocando mudanças de visão do mundo. Mas que mudanças são essas? Parece que a mudança fundamental vem ocorrendo com relação aos significados de informação e conhecimento. Facilidades de produção, disseminação e uso de informações estão criando comportamentos e crenças que precisam ser examinados, pois nem sempre há consciência das alterações que estão ocorrendo. Teme-se, como já reparou Alan Kay em 1995, que estejamos construindo uma sociedade muito informada, mas, com pouco conhecimento.

O cenário que temos hoje sugere que a categoria “conscientização”, em sua acepção freiriana, deve ser o foco de nossas conversas sobre alfabetização relacionada com o discurso produzido pelas tecnologias digitais.

Como escrever oficialês

fevereiro 18, 2012

Em tecnologia educacional, um pressuposto básico é o de que profissionais do ramo escrevam bem, bonito, claro. Tive algum treino nisso em meu distante mestrado na San Diego State University. E acho até que fiquei muito severo em julgamentos sobre meus textos e textos alheios. Além disso, fui atingindo por incurável ojeriza ao jeitão acadêmico de escrever. Teses de doutorado, no geral, são textos detestáveis. Em parte a culpa é de quem escreve. Em parte a culpa é de um sistema que treina pessoas para escrever de maneira obscura,  com a desculpa de que é preciso ser científico.

Mas textos obscuros não são privilégio da academia. Na área empresarial, relatórios internos e diagnósticos de consultorias externas são literatura da pior espécie. Fui obrigado a ler muita coisa assim em meus tempos de gestor.

Certa vez, num papo  descopromissado, meu amigo Sinval de Itacarambi Leão, diretor da revista Imprensa, assim definiu consultores de empresas: “[eles] são uns caga-tintas”. Muita razão tinha o Sinval, embora não tivesse lido tantos textos de consultores como eu.

Ao rearrumar velhos papéis, encontrei um material precioso sobre produção de textos para projetos, relatórios, propostas etc. É um subsídio que fazia parte do hand-out de Edech 454, elaborado por Brock Allen, meu amigo e professor de  Educational Technology. Foi escrito no começo dos anos ointenta do século passado, mas ainda é muito atual. Como não consegui traduzir o original, mantendo o mesmo tom irônico e bem humorado, publico-o aqui em inglês. Acho que boa parte dos leitores, mesmo que não saiba muito inglês, vai apreciar essa ótima crítica ao oficialês na escrita.

HOW TO WRITE “OFFICIAL”

By Gerald Grove

  1.   Start with a simple statement: We quit. Why? Nobody knew how to program the computer.
  2.  Put it in the passive voice and dilute the responsibility: It was decided to quit.
  3. Expand with terminology that does not add meaning: It was decided to terminate.
  4. Build on noun strings: It was decided to terminate project processes.
  5. Add a qualifier of uncertain relation to the original statement: On account of the status of the computer, it was decided to terminate project processes.
  6.  Add noun strings and terminology to the qualifier: On account of the status of the computer program assessment planning development effort, it was decided to terminate project processes.
  7. Separate related words: On account of the status of the computer program assessment planning development effort, it was decided to terminate until a later date project processes.
  8. Equivocate: On account of the uncertain status of the computer program assessment planning development effort, it was proposed and tentatively accepted to terminate until later date project processes.
  9. Obfuscate:  Due uncertainties in the status of the computer program assessment planning development effort, proposals were carefully considered and tentatively adopted to suspend temporarily until a later date project processes.
  10. Cover your tracks, make yourself look good: Due to unavoidable uncertainties in the status of the computer program assessment planning development effort, a number of contingency proposals were carefully considered and one was tentatively adopted to suspend on a temporary basis until a later date those project processes deemed unessential to the expeditious fulfillment of contract requirements.

Livros maravilhosos

fevereiro 17, 2012

Aqui está um vídeo obrigatório para todas as pessoas que amam livros. Dispenso comentários, e recomendo com muita insistência: não deixem de ver.

Nota pós publicação. O vídeo original que divulguei estava no Vimeo. Depois do Oscar, o acesso naquele ambiente ficou restrito. Por isso, retirei daqui a primeira indicação e a substitui por uma versão no Youtube. Há alguma perda de qualidade, mas a material continua ótimo.