Faz algum tempo que me vi humilhado por um terminal do Banco Bradesco. Eu precisava pagar contas de reforma feita em minha casa de praia. Para fazer o depósito, era necessário digitar diversos conjuntos de números. E comecei a apanhar num campo que exigia digitação de uma cadeia extensa de algarismos. Antes que eu chegasse ao fim, a tela mudava e vinha um aviso de que a operação não fora completada.
O que acontecia? Eu precisava ler os números no papel e digitá-los com cuidado no campo correspondente. Nessa operação, enfrentava dois problemas: (1) a vista cansada, (2) a lerdeza na digitação. O analista que planejou o programa previu um tempo máximo para preenchimento daquele maldito campo. E meu ritmo, infelizmente, ficava aquém da decisão do analista. Resultado: só consegui efetuar o depósito depois de muitas tentativas frustrantes, sempre reiniciando o processo inteiro.
O que aconteceu comigo é coisa comum. Em muitos usos de computadores, as operações estão programadas para serem realizadas dentro de certa faixa de tempo. Essa prática de processamento de dados tem como fundo a crença de que um dos aspectos que definem inteligência humana é a velocidade de resposta correta. Quanto mais rápida a resposta, mais inteligente é o respondente. Esse pressuposto é bastante utilizado em testes padronizados.
Volto ao meu caso diante de um terminal eletrônico do Bradesco. A decisão do analista certamente foi influenciada por um princípio de eficiência. Desde os tempos de Taylor, acredita-se que a rapidez na realização de uma operação ou tarefa é indicadora de eficiência. [Cumpre observar que Taylor não obteve muito sucesso nisso e foi demitido depois de alguns anos de experiências que não chegavam aos resultados que ele prometia, cf. Honoré, Elogio de La lentitud, 2005]. Essa crença, por exemplo, determina que consultas médicas nos convênios de saúde não podem ultrapassar tempo padrão, pouco importando dificuldades para se chegar a uma decisão sobre diagnóstico ou encaminhamento do paciente.
Crenças de que tempo de realização é um critério de eficiência estão disseminadas em nosso mundo. Qualquer demora em balcão de serviço é motivo para irritação.
No caso de programas de computadores, quem é lento fica intimidado. Acha que tem algum problema. Acha que é um imigrante que não entende o idioma local. Tenta adaptar-se, sempre assumindo a culpa pelo resultado desastroso ao utilizar sistemas digitais. Esse sentimento é reforçado por valores hegemônicos, aceitos sem crítica e promovidos continuamente pela mídia. Isso acontece muito com julgamentos que se fazem com relação a atitudes dos docentes diante de planos de utilização de computadores em educação. Numa outra ocasião quero examinar o mito de que falta aos docentes “letramento” digital.
Idiotas da eficiência diriam que meu caso com o terminal do Banco Bradesco tem uma única solução: adaptação ao sistema. Diriam que a eficiência dos novos tempos impõe a gente lerda como eu a obrigação de um treino para superar dificuldades. Esses idiotas jamais diriam que o depositante deveria merecer mais consideração. Eles ignoram que o que eu tentava fazer é uma operação que dá lucro para o banco. Afinal de contas, eu estava transferindo de minha conta, no Banco do Brasil, grana para uma conta corrente que iria fazer crescer a carteira de depósitos no Bradesco. Eu não estava fazendo qualquer favor ao banco, nem recebendo um benefício que justificasse esforço no sentido de aprender truques novos.
Preocupa-me, no caso que estou analisando, o conformismo de uma maioria que acha que devemos adaptar-nos, dando razão aos idiotas da eficiência. Está em jogo aqui uma concepção que entende que algumas características humanas, quando comparadas com virtudes do computador, são limitações lamentáveis. Não conseguimos, por exemplo, concentração contínua em qualquer operação que estejamos realizando. Isso pode resultar em acidentes. Em muitos desastres, isso é evidenciado quando se fala em erro humano. Vale observar que nossa espécie, por necessidades de sobrevivência, desenvolveu capacidade de observar simultaneamente diversas ocorrências ambientais. Isso é motivo de aparente distração, mas, é, por outro lado, um dos motivos pelos quais nossos avós de cem mil anos atrás não foram surpreendidos por predadores que poderiam eliminar os primeiros núcleos humanos, tornando improvável nossa existência hoje.
Para quem quiser examinar os supostos limites humanos mais profundamente, recomendo Things That Make Us Smart: Defending Humans Attributes in the Age of the Machine. Aqui no Boteco há tradução do primeiro capítulo dessa deliciosa obra de Donald Norman. Vejam-na em Uma tecnologia centrada nos seres humanos.
Para que os idiotas da eficiência não digam que preciso me informar sobre softwares, apresento aqui um encaminhamento técnico para resolver casos como o meu diante do caixa eletrônico do Bradesco.
Há um livro que todos os analistas de sistema e designers de interfaces precisam conhecer: Acting With Technology: Activity Theory and Interaction Design. Nessa obra, Victor Kaptelinin e Bonnie Nardi relatam diversas experiências de construção de programas de computadores que levam em conta o outro parceiro, gente. Tais programas levam em consideração como as pessoas funcionam, que necessidades tem, como projetam suas relações com a área de atividade para a qual o programa está sendo elaborado. Nessa abordagem, programas são feitos para pessoas em vez de estas terem de se adaptar a um software cujas características atendem apenas a conveniências de engenharia de computação ou interesses alheios a quem tipicamente vai utilizar o produto.
Utilizo inspiração de Kaptelinin e Nardi para esboçar plano de produção de um software para caixas eletrônicos.
Nossa memória, segundo estudo clássico de George Miller, lida bem com um número de dados que não ultrapasse o limite de sete itens. Por isso, num formulário eletrônico, não convém ter campos que exijam digitação de uma sequência de mais de sete números. Idiotas da eficiência se apressariam a dizer que alguns códigos tem cadeias de algarismos que ultrapassam o mágico número sete. Sei disso. Mas, não é preciso cobrar digitação contínua de tais cadeias. Aquelas sequências imensas de números podem ser divididas em conjuntos manejáveis de números. Uma cadeia de dezesseis números, por exemplo, pode ser dividida em três conjuntos de 6+6+4. Assim, em vez de um único campo, teríamos três. Aliás o senso comum já nos indica tal prática, sempre dividimos em conjuntos manejáveis listas de itens ou sequências de números. Basta reparar como as pessoas ditam um número de telefone para amigos.
Além de mudança no software, é aconselhável apresentar a informação também em chunks (parcelas manejáveis), se possível em unidades de leitura coincidentes com o campo de preenchimento na tela.
Mais mudanças podem (e devem) ser feitas. Uma delas refere-se ao tamanho dos formulários, dos campos e dos algarismos que aparecem na tela. Para pessoas com alguma dificuldade de visão como eu, o ideal é preencher formulários eletrônicos com letras e números corpo 16. Tudo fica mais nítido e claro.
Se os bancos acham a eficiência tão importante, poderíamos fazer um acordo: haveria alternativas, a tradicional (a única que temos agora) e a mais amigável (a que atende melhor a necessidades humanas). Na primeira, poder-se-ia manter limites de tempo. Na segunda, as pessoas poderiam levar o tempo de que precisam para dar conta do recado.
Eu poderia mais detalhar aspectos de design a serem considerados. Mas, acho que não preciso fazer isso para mostrar que é possível trabalhar com um princípio fundamental, o de que os programas devem ser feitos para atender necessidades das pessoas e não o contrário. Fazer o que estou propondo não exige nenhum conhecimento novo de programação. Exige apenas vontade de humanizar usos das tecnologias digitais da informação.
Para finalizar essa conversa, preciso voltar ao assunto inicial: rapidez. Nada justifica apressar pessoas com tempos que lhes são desconfortáveis. Superar nossas limitações biológicas exige sempre treinamento, exercício. Isso nada tem a ver com inteligência. Tem a ver com possibilidades de superar limites. Mas, para que dedicar tempo a preencher em tempo mais curto formulários de um caixa eletrônico? Há na vida coisas mais importantes que merecem nosso tempo. Além disso, há possibilidades concretas de construir interfaces computadores/gente que não nos obriguem a seguir o ritmo das máquinas.
Minhas observações neste post tem muito a ver com educação. Desconfio que a maior parte dos educadores ainda não se deu conta de que certas crenças sobre letramento digital são imposições de uma ideologia da eficiência.
A lentidão de adultos e velhos no uso de certos programas computacionais não é sinal de resistência ou ignorância. É apenas um indicador de que somos humanos.
Nota final. Para interessados no livro Acting With Technology, indico resenha que fiz dessa obra algum tempo atrás. Para tanto, cliquem aqui.