
Ando sem tempo e entusiasmo para escrever. Mas, há um registro de fato recente que não posso deixar para depois. A princípio, muitos poderão pensar que o texto que segue não cabe neste espaço onde os temas principais são blogues, educação e assuntos correlatos. Leitores que chegarem até o fim talvez entendam que o registro é pertinente.
Ontem estive na sede do Senac de São Paulo, instituição onde trabalhei durante trinta anos. Fui até lá para entregar um documento pessoal no setor de RH. Tratava-se de um papel relacionado com mudanças ocorridas num dos benefícios que a organização oferece para seus aposentados.
Na portaria do edifício, me dirigi ao balcão onde dois ou três funcionários controlam a entrada das pessoas. Apresentei-me. Disse que era um aposentado da casa e precisava entregar um documento pessoal no RH. O atendente me pediu para dizer com quem eu iria conversar e ligou para o setor correspondente. A seguir, me pediu número de RG. Passei-lhe minha carteira de identidade. O sistema revelou que eu já estava cadastrado e deve ter mostrado uma antiga foto minha feita por câmara acoplada ao computador que registra entrada dos visitantes. Mas, o moço não ficou contente com tais confirmações. Voltou a me perguntar qual era a razão de minha visita.
Voltei a informar o motivo que me trazia até a sede do Senac. Voltei a informar que era um ex-funcionário que trabalhara na casa por trinta anos. Nessa altura, o moço me pediu o envelope que eu trazia para verificação. Tratava-se de um envelope com logotipo do próprio Senac, contendo documentos de interesse pessoal. Recusei-me fazer o que ele pedia, pois achei que a solicitação extrapolava as funções dele. As coisas quase chegaram a um impasse. Temi não receber o crachá de visitante, peça necessária para transpor a catraca na entrada do saguão do prédio. Fui salvo por outro atendente que talvez já me tivesse visto no local anteriormente. Recebi finalmente o “passaporte” para circular pelo prédio.
Há muitas considerações que podem ser feitas sobre o episódio. Uma delas é a de que os aposentados, ao perderem sua identidade funcional, veem-se como gente estranha em locais onde trabalharam durante décadas. O tema é bastante comum. Por isso, não vou tomar tempo dos leitores com considerações sobre identidade e aposentadoria.
Horas depois do episódio caiu uma ficha sobre a qual quero falar um pouco. Trata-se da interatividade em conversas com velhos. Queremos contar histórias. Queremos que saibam quem somos. Mas os interlocutores não estão interessados. Preocupam-se apenas com informações de caráter funcional, necessárias para tocar o serviço.
Ao pensar sobre o ocorrido, lembrei-me de um dos capítulos de La Realidad Inventada; Como sabemos lo que creemos saber?, livro de filosofia, coordenado por Paul Watzlawick, que aborda questões relativas à construção da realidade. No capítulo Acerca de estar sano en um medio enfermo, David L. Rosenhan faz observações que talvez iluminem o episódio que acabo de narrar.
Rosenhan coordenou investigação na qual um grupo de pessoas “sãs” consegue ingressar em hospitais psiquiátricos diagnosticadas como ezquizofrênicas. Durante a internação tais pessoas testam diversas situações relacionadas com encontros entre profissionais de saúde e pacientes de hospitais psiquiátricos. Interessa aqui o experimento de como são consideradas as questões corriqueiras no âmbito de conversações entre profissionais e pacientes.
Questões simples, do dia-a-dia, se perguntadas por “loucos” são desconsideradas. Os profissionais de saúde dialogam com os pacientes apenas em contextos de conversas com fins terapeuticos. Em outros contextos, gente “sã” não dá bola para as falas dos “loucos”. Veja a seguir, um trecho sobre a experiência que relata conversas informais de pacientes com o médico.
O encontro se denvolve frequentemente da seguinte e estranha maneira: Pseudopaciente: “Desculpe por favor, Dr. X, pode me dizer quando posso visitar o jardim?” Médico: “Oi Dave, como vai?” [E segue andando sem esperar resposta]. (p.111)
A pergunta do paciente é ignorada e o médico não pára, continua seu caminho sem dar atenção ao perguntante. Para mostrar que os diálogos podem ser diferentes caso as perguntas sejam feitas por pessoas “normais”, Rosenhan narra encontro (com teor de conversa análogo ao de conversas tentadas por pseudopacientes no hospital psiquiátrico) acontecido nos jardins da Universidade de Stanford. Um “visitante” (pessoa “normal”) aborda um professor de mediciana apressado. Faz-lhe diversas perguntas. Apesar da pressa, o professor pára e fornece ao interlocutor respostas adequadas. Acontece, no caso, uma conversa na qual tudo o que o visitante diz é considerado e merece atenção por parte do professor.
Volto ao episódio ocorrido na recepçao do prédio do Senac. Minhas informações de pessoa idosa foram desconsideradas pelo atendente. Parece que as conversas dos velhos são ignoradas de modo muito parecido com a falta de atenção com que os profissionais veem as perguntas dos “loucos”. E isso deve nos preocupar em termos de educação. Num futuro próximo, mais que trinta por cento da população brasileira será constituída por pessoas com mais de sessenta anos. Essas pessoas, no geral, querem contar história, querem ser ouvidas. Não se contentam com conversas que ficam exclusivamente no nível das conveniências funcionais. Parece-me, portanto, que profissionais de serviços, precisam aprender a conversar com os idosos. Esse meu alerta é uma observação para os tecnófilos que andam tão aflitos com uma educação para o século XXI. Acho necessário falar de competências futuras de modo muito concreto; e uma dessas competências certamente será a de escutar os velhos com empatia. Desde já agradeço a boa disposição de jovens que souberem escutar com interesse minhas histórias de velho.
Não escrevi este post para criticar o moço do Senac. Mas, se a instituição quiser escutar um palpite de idoso que lá trabalhou durante trinta anos, sugiro que em treinamentos de atendentes de público seja considerada a necessidade de ouvir e entender os velhos.