A matéria conversa com Nicholas Carr, autor de um artigo que fez furor no planeta Web: Is Google Making us Stupid? Recentemente o linguista Steven Pinker botou mais lenha na fogueira, escrevendo um artigo que contesta as ideias de Carr. Traduzi o texto de Steven Pinker e o publiquei no post:
E houve tréplica. Carr não deixou barato. Escreveu uma resposta quase que imediata para o artigo de Pinker. Fiz também a tradução dessa continuidade do debate. Você pode ver o texto do Carr em:
A tradução, que ora divulgo, é mais uma perspectiva que convém considerar, pois além de uma suposta influência negativa da Internet em nosso cérebro (a tese de Carr), há quem celebre supostos benefícios, proclamando as virtudes cognitivas da geração Y. O autor do artigo traduzido por minha filha sugere um caminho de equílibrio, lembranndo que a evolução não acontece em saltos abruptos, mas é fruto de um longo processo. Paro por aqui. É melhor dar a você a oportunidade de ler já essa matéria de título intrigante: A Internet não é uma Meretriz.
Internet, a meretriz de nossos tempos
A meretriz dos nossos tempos é a Internet, assim como os computadores. Seu poder de sedução é tanto que ela nos tira de nossas obrigações familiares e de trabalho. O computador dissipa. Ele é o objeto que chama inexoravelmente a nossa atenção, drena nossas energias, dispersa nossas forças. Seu uso frequente transforma nossos espíritos em vastos pântanos nos quais nos atolamos um pouco mais a cada dia.
Aquilo que somos como homens devemos intimamente aos objetos. Nós não somos aquilo que somos porque nós somos animais desnaturados insuficientemente adaptados ao nosso ambiente. Nós nos desenvolvemos cultura e técnica, e adaptamos o mundo à nossa inadaptação.
A invenção da ferramenta foi o ponto de partida de uma cascata de mudanças: a ferramenta levou os primeiros hominídeos a adotar a postura vertical, o que liberou espaço para o cérebro dento da caixa craniana. A mandíbula se desenvolveu, permitindo a linguagem articulada e a explosão de técnicas de memória: as estórias, as gravuras rupestres, a escrita, enfim. Essas modificações foram muito lentas e invenções de novas ferramentas levaram milhões de anos para, de fato, produzir esse tipo de modificação.
Portanto, eu fico desconfiado da ideia de que os computadores já tenham produzido grandes mudanças na organização de nossos cérebros, já que eles não têm nem um século de existência e que apenas um indivíduo em cada sete os utiliza no mundo. Eu acho improvável que os circuitos neuronais desenvolvidos em milhões de anos possam ser colocados em questão pelo Facebook, ou pelo World of Warcraft.
Eu desconfio da ideia de que a Web estaria recabeando nossos cérebros.
A Internet nos deixa mais burros?
Aqui há um erro duplo: o primeiro é o etnocentismo. Ele considera que todo mundo vive as mesmas coisas, quando, na verdade, o nosso uso de máquinas diz respeito apenas a um punhado de pessoas. Nós não temos todos os iPhones e outros Blackberrys à mão, nós não estamos todos no Twitter, não estamos todos hiperconectados à Internet.
O segundo erro é temporal: se é verdade que na Internet, como na cultura dos países industrializados do Norte, as coisas acontecem cada vez mais rápido, isso não quer dizer que as mudanças que os computadores provocam também sejam rápidas.
Nós estamos hoje na iminência de alguma coisa e os computadores têm um seu papel nisso. Depois de termos prolongado nossos corpos com as ferramentas, nós acabamos lançando nosso sistema nervoso “como uma rede sobre o conjunto do globo” (McLuhan, Pour comprendre les média). A desmaterialização trazida por essa técnica carrega e traduz mudanças profundas das quais nós percebemos apenas as premissas.
Na introdução de seu último livro, Nicholas Carr cita uma série de experiências sobre as quais ele apóia seu argumento final: a parte imagética do cérebro de internautas experientes é diferente daquela dos novatos, mas depois de cinco horas de treinamento, as imagens dos cérebros dos dois grupos tornam-se as mesmas; a memória daquilo que foi lido é melhor do que a memória daquilo que foi apresentado num vídeo e, de maneira geral, nós retemos menos aquilo que está numa tela em comparação com o que está no papel.
A partir disso, ele tira a conclusão dramática: maravilhados pelos tesouros da internet, nós nos tornamos cegos aos estragos que podemos fazer na nossa vida intelectual e até mesmo na nossa cultura. Nicholas Carr resgata uma parte da argumentação do famoso texto “O Google nos torna idiotas?” Com talento, ele descreveu como que, a partir do momento em que Nietzsche teve nas mãos uma das primeiras máquinas de escrever, a escrita do filósofo começou a mudar. Nietzsche teria passado de prosas longas a sentenças curtas. Esse exemplo é suficiente para que Nicholas Carr conclua que a máquina teve um impacto sobre o pensamento do filósofo e que esse pensamento ficou mais pobre, também por causa da máquina.
Mas nós podemos medir a riqueza de um pensamento por seu número de caracteres? Proust seria Proust por causa do tamanho de suas frases? Seria o tamanho do Mahâbhârata o que faz dele um grande texto? O Haicai não deveria ser considerado válido porque é curto demais?
Nós podemos nos perguntar por que um filósofo como Nietzsche se interessou por uma máquina e podemos nos perguntar se essa máquina não foi muito mais uma ajuda que uma desvantagem na formação de seu pensamento. Dizendo de outra maneira, as máquinas de ontem não nos deixaram mais burros que as máquinas de hoje.
A caneta nunca foi virgem
É evidente que os objetos têm uma influência sobre nossas vidas físicas. Mas a caneta nunca foi uma virgem, a gráfica não foi uma meretriz, nem o computador é um perigo para a cultura…a não ser nas nossas representações.
A gráfica, no início suspeita de promover a circulação de edições fora das normas vigentes, escapando do controle eclesiástico, e de inscrever o saber nas línguas correntes, foi em seguida, muito elogiada por essas mesmas razões. A invenção de papéis para impressão permitiu uma uniformização dos textos e foi então que o manuscrito começou a ser visto como suspeito de conter mais erros. Depois, a cópia foi novamente vista como suspeita: limpa demais, perfeita demais, muito distante da escrita do autor. Em uma palavra, industrializada e, portanto, muito distante das idiossincrasias criadoras. Assim, o manuscrito e a impressão foram, a cada momento, elogiados e criticados, por razões similares.
O mesmo acontece com os computadores. Eles são tanto nossos confidentes, quanto nossos assistentes de trabalho ou nossos carrascos. Eles não o são em si mesmos. Eles o são porque nós pensamos neles como tal, conscientemente e, às vezes, inconscientemente. Tomando a expressão de Sherry Turkle, eles são objetos evocadores: espelhos modernos nos quais Psiqué se olha. Tanto os esplendores que algumas pessoas enxergam nos computadores como os medos de outros que vêem a máquina como um monstro são reflexos do esplendor e da monstruosidade que nossas psiques abrigam.
A ordem e o caos
Nicholas Carr tem razão de apontar a oposição entre aquilo que ele chama de leituras lentas e difrações que nós podemos observar online. Mas ele erra ao superestimar as primeiras em detrimento das segundas. Essas são duas posições que só têm valor quando comparadas uma com a outra; nós podemos resumi-las em duas palavras: ordem e caos.
Nós precisamos da ordem para ordenar nossos pensamentos. Para isso, nós nos apoiamos numa série de dispositivos: rituais, estilos de frases.
Mas nós também precisamos de uma dose de caos para poder criar, para fazer aparecer a surpresa e para sermos capazes de acolhê-la. “É preciso ter o caos dentro de si para parir uma estrela que dança”, dizia Nietzsche. Sem essa parte de desordem, a ordem não é nada mais que um estereótipo estéril. Sem a parte da ordem, o caos não passa de dispersão.
Quando a dinastia Han construiu o império chinês, ela decidiu que os textos seriam gravados na pedra. Anteriormente, os textos eram escritos em tabuletas feitas de bambu ligadas por cordinhas. Quando essas cordinhas se rompiam, o texto se dividia em fragmentos esparsos. A inscrição na pedra resolvia esse problema e dava a todos os professores o mesmo texto. No Ocidente, o processo de cópia estava a cargo dos monges, sujeito a erros, o que sem dúvida contribuiu para desenvolver o gosto pela interpretação e pelo comentário. A Europa buscava o texto por trás do texto, e o reconstituía, indício por indício, enquanto que a China se apoiou durante centenas de anos sobre textos imutáveis.
Até mesmo o livro não é isento dos estigmas do texto numérico que tanto inquieta Nicholas Carr. Um livro nunca está isolado, ele faz parte de um conjunto (romance, texto científico, poema…) no qual ele respeita ou transgride os cânones. O livro cita outros textos, explicitamente ou implicitamente: o que é a citação, senão o equivalente à nossa “embed” numérica? O que é uma grade e matérias, senão o equivalente à coluna de linha internas de nossos blogues? Um livro sempre nos conduz aos espaços fora dele, porque a leitura é, por essência, hipertextual.
Podemos tranquilizar Nicholas Carr? A internet não é uma doença auto-imune da nossa cultura. As máquinas de hoje têm como origem pensamentos de ontem. Elas não trazem novas formas de pensar, mas antecipam maneiras de pensar que já existiam.
O choque do digital
Nós somos testemunhas do conflito de duas tecnologias: a escrita e a digital, com essa complicação de que a digital é uma técnica nova. O digital não se beneficia do longo aprendizado da escrita e do papel.
Nós ainda temos que domesticar as matérias digitais para fazer delas matérias sobre as quais pensar. Esse trabalho está em curso nas nossas sociedades, e, evidentemente, ele provoca mudanças e questões que podemos mensurar pela intensidade do trabalho legislativo em torno da internet. Exigir que a internet forneça os mesmos serviços que a escrita é esquecer que foram necessários três séculos para que a escrita e a leitura se democratizassem suficientemente num saber de massa. Seria preciso também esquecer que isso não foi feito sem conflitos.
Nós estamos hoje sob os efeitos de choque que as técnicas digitais produzem. É preciso que nós não as subestimemos. O choque é profundo e brutal. Sem dúvidas, algumas formas desaparecerão, da mesma maneira que o texto impresso reduziu ao silêncio certas formas de pensamento que o antecederam.
Na memória do Ocidente, isso pode ser antigo, mas na África a chegada da escrita está ainda no horizonte das memórias. Para as civilizações africanas, a princípio o livro foi uma ferida, porque ele derrotou as formas e hierarquias da oralidade. Ele foi considerado, primeiramente, como o lugar da “arte de vencer sem ter a razão” (Cheikh Hamidou Kane); ele era um atalho para economizar nas escutas anteriormente lentas e profundas.
Na internet, nós somos todos africanos.
Yann Leroux
Artigo inicialmente publicado no “Psi et Geek”, blog de Yann Leroux.
Tradução: Taís Cardoso Barato, São Paulo, 18/07/2010