Tecnologias digitais e inteligência 2

Publiquei no último post um artigo de Steven Pinker sobre relações entre usos da Internet e inteligência humana. A matéria guarda relação com assuntos quentes como:

  • multitarefa, a alegada capacidade dos jovens em processar simultanemanete diversas fontes de informação,
  • geração Y, uma suposta geração cuja estrutura de pensamento, dados usos das novas mídias, é substanciamente diferente da estrutura de pensamento das gerações anteriores,
  • psicologia evolutiva, a teoria que sugere que nossas estruturas mentais já estão prontas desde o berço, uma vez que surgiram como efeito da evolução,
  • determinismo genético, doutrina que diminui consideravelmente papel de influências sociais sobre o comportamento humano.

Os assuntos quentes a que me referi no parágrafo anterior geralmente são vistos pela rama nos círculos dos tecnófilos, gente tão entusiasmada por máquinas e equipamentos que não tem tempo para considerar dimensões sociais, psicológicas, culturais e sociais da vida humana. Minha conversa neste post tem como alvo justamente os tecnófilos. Acho que faço um esforço vão. Por motivos explicados por Nicholas Carr no texto que segue, essa gente não vai ler nada do que está escrito aqui. Paciência.

O texto de Pinker, publicado anteriormente, contesta idéias de Nicholas Carr. Assim que saiu o artigo do professor de Harvard, Nicholas elaborou uma réplica. É possível que Pinker retruque (espero que não, pois não poderei ir traduzindo em tempo hábil a interessantre polêmica entre essas duas feras). No geral, concordo com Carr. Hora dessas publico um texto com minhas opiniões sobre o assunto. No momento, convém considerar as reflexões de Nicholas Carr. Elas aparecem a seguir, numa tradução que fiz num domingo de muitos jogos da Copa.

Steven Pinker and the Internet

June 12, 2010

Como alguém que apreciou bastante os livros de Steven Pinker e com eles muito aprendeu, fiquei desapontado ao ver o psicólogo da Harvard escrever, na edição de sexta do New York Times, uma coluna [column] sobre as verdadeiras preocupações das pessoas com a influência da Internet nas suas mentes e vidas intelectuais. Pinker parece desconsiderar evidências indicando que nosso uso intensivo da Net e mídias eletrônicas com ela relacionadas esteja talvez reduzindo a profundidade e rigor de nosso pensamento. O professor de Harvard vai longe, chegando a afirmar que tal mídia é “a única coisa que irá nos manter inteligentes”. E a evidência que ele oferece para apoiar sua afirmação precipitada consiste basicamente em opiniões e anedotas, inclusive uma piada muito boa de Woody Allen.

Uma coisa que não me surpreendeu foi a tentativa pinkeriana de rebaixar a importância da neuroplasticidade. Ao mesmo tempo em que ele reconhece que nossos cérebros se adaptam a mudanças ambientais, incluindo (pode se inferir) o uso de mídias e de outras ferramentas, fica implícito no seu texto que precisamos nos preocupar com as conseqüências dessas adaptações. Como todo tipo de coisas influencia o cérebro, ele argumenta de um modo estranho que não precisamos nos preocupar com as maneiras como qualquer coisa influencia o cérebro. Pinker, é bom ressaltar aqui, tem uma agenda oculta no caso. O crescente volume de pesquisas sobre a notável capacidade do cérebro adulto para se adaptar, mesmo no nível celular, às mudanças circunstanciais e às novas experiências desafia a fé de Pinker na psicologia evolutiva e na genética comportamental. Quanto mais adaptável for o cérebro, menos estaremos nós agindo de acordo com padrões comportamentais impostos por nossa herança genética.

Em Adapting Minds, crítica épica ao ramo popular da psicologia evolutiva esposada por Pinker e outros, David J. Buller argumenta que a evolução não “planejou um cérebro que consiste em numerosas adaptações prefabricadas”, como sugere Pinker, mas é muito mais um órgão capaz de “se adaptar às demandas do ambiente local através do tempo de vida de um indivíduo, e algumas vezes no período de dias, formando estruturas especiais para fazer frente a tais demandas “.  Para entender o desenvolvimento do pensamento humano, e a influência das influências externas sobre esse pensamento, precisamos levar em conta o arranjo genético fundamental do cérebro – chamado de capacidades de processamento de informações básicas por Pinker – e o modo pelo qual nossa constituição genética facilita mudanças em processo no arranjo cerebral.

No tópico neuroplasticidade, Pinker sugere que fala em nome de todos os neurocientistas. Ao se confrontar com sugestões de que “a experiência pode mudar o cérebro”, ele escreve que “os neurocientistas levantam as sobrancelhas”. Preocupo-me quando um cientista sugere que sua visão sobre um tema controverso é compartilhada por todos os seus colegas. Fico me perguntando também se Pinker leu as reportagens [reports ] sobre os efeitos cognitivos da Net  publicadas no Times semana passada., nas quais diversos pesquisadores importantes  do cérebro revelam visões que conflitam com a dele. Aqui estão alguns exemplos:

“A tecnologia está reestruturando nossos cérebros”, disse Nora Volkow, diretora da agência National Institute of Drug Abuse e uma das mais importantes cientistas do cérebro em todo o mundo.

A continua interatividade é uma das características mais significativas de mudanças no mundo humano, disse Adam Gazzaley, um neurocientisata da University of California, San Francisco. “Estamos expondo nossos cérebros a um ambiente e pedindo-lhes para fazer coisas cuja natureza necessariamente não corresponde às capacidades que desenvolvemos evolutivamente”, disse ele. “Já sabemos quais são as conseqüências”…

Clifford Nass, professor de Standford, diz que estudos de sua universidade [sobre multitarefas mediáticas] são importantes porque mostram efeitos (cognitivos) duradouros das multitarefas. “A parte amedrontadora é a pessoas como Kord [sujeito de uma das pesquisas] vêem-se impossibilitadas de anular suas tendências multitarefas quando estão executando tarefas que não as exigem.

Num ensaio [essay] curto, publicado semana passada no website do Times, Russell A. Poldrack,  diretor do Imaging Research Center e professor de psicologia e neurobiologia na University of Texas at Austin, escreveu: “Nossa pesquisa  mostrou que as multitarefas podem ter um efeito pernicioso sobre a aprendizagem, mudando de tal maneira os sistemas cerebrais envolvidos que, mesmo que alguém possa aprender em situações de multitarefas, a natureza da aprendizagem é alterada para ficar menos flexível. Esse efeito é particularmente preocupante, dado o crescente uso de diferentes aparelhos pelas crianças durante o estudo”.

Como aponto em meu novo livro, The Shallows, outros investigadores da mente também acreditam, ou pelo menos manifestam preocupação, de que o uso de mídias digitais está causando efeitos profundos, não necessariamente benéficos, em nossas maneiras de pensar. Cito, por exemplo, o eminente neurocientista Michael Merzenich, que vem estudando a capacidade de adaptação do cérebro dos primatas desde os anos de 1960. Ele acredita que os humanos estão sendo “remodelados” significativamente pelo uso da Net e outras mídias modernas.  Maryanne Wolf, uma psicóloga do desenvolvimento da Universidade de Tufts, teme que a mudança da leitura de imersão. baseada em páginas, para leituras com alto teor de distração, baseadas em telas, possa impedir o desenvolvimento de circuitos neuronais especializados para tornar possível leitura profunda, ricamente interpretativa. Podemos nos converter em meros “decodificadores” do texto.

Pinker pode discordar de todos esses pontos de vista, mas ignorá-los é um erro.

Pinker também luta contra um espantalho. Em vez de discutir os argumentos de seus opositores, ele os reduz a caricaturas com o objetivo de desqualificá-los. Ele escreve, por exemplo, que ”a existência da neuroplasticidade não significa que o cérebro é uma massa informe de argila moldada pela experiência”. Quem exatamente Pinker acredita que está propondo tal idéia – John Locke? Não conheço ninguém que esteja propondo que o cérebro é uma massa sem forma de argila. O que estão dizendo é que o cérebro, embora seja obviamente um produto da evolução assim como qualquer outra parte de nosso corpo, não está geneticamente fechado em modos rígidos de pensar e agir. Mudanças em nossos hábitos de pensamento ecoam através dos caminhos neurais, para o bem e para o mal.

Em outros casos, Pinker utiliza generalizações para encobrir sutilezas. Á certa altura ele escreve: “se os meios eletrônicos fossem prejudiciais para a inteligência, a qualidade da ciência deveria estar afundando”. A inteligência humana assume muitas formas. Os meios eletrônicos podem melhorar certos aspectos de nossa inteligência (a habilidade para identificar padrões de cores em conjuntos de dados visuais, por exemplo, ou descobrir fatos pertinentes, ou colaborar à distância) e ao mesmo tempo desagregar outros (a habilidade para refletir sobre nossas experiências, ou capacidade para nos expressarmos numa linguagem sutil, ou ler narrativas complexas criticamente). Declarar que a “inteligência” pode ser medida por um único sistema é uma forma de obscurecer em vez de iluminar.

Pinker observa que “décadas de televisão, rádios portáteis e vídeos de rock foram também décadas nas quais os níveis de QI cresceram continuamente”. Na verdade, como o cientista político James Flynn documentou originalmente, os resultados gerais de QI vem crescendo de modo constante desde os inícios de 1900, por isso devemos ficar preocupados quando se vincula esta tendência de longo prazo com a recente popularidade de qualquer tecnologia específica ou mídia. Além disso, como o próprio Flynn teve o cuidado de apontar, a melhoria do QI é grandemente atribuída a crescimento nas medidas de acuidade e abstração na solução de problemas, tais como na rotação de formas geométricas, na identificação de semelhanças entre objetos dessemelhantes, e no arranjo de formas em sequências  lógicas. Essas habilidades certamente são muito importantes, mas, como descrevo em The Shallows, medidas de outros componentes da inteligência, como habilidade verbal, vocabulário, aritmética básica, memorização, leitura crítica e conhecimento geral, ficaram estagnadas ou estão em declínio. Ao advertir que não é adequado chegar a conclusões amplas sobre inteligência com base no crescimento das mediadas de QI, Flynn escreveu, em seu livro   What Is Intelligence?, “Como as pessoas podem ficar mais inteligentes sem ter um vocabulário mais amplo, sem armazenar mais amplamente informação geral, sem ter grande habilidade para resolver problemas aritméticos?”.

Pinker deixa a ciência e volta-se para as humanidades, sugerindo que a vida cultural nunca foi tão rica, uma conseqüência, aparentemente, das maravilhas das mídias digitais. Como evidência disso, ele chama a atenção para o número de histórias aparecidas no website Arts & Letters Daily. Basta dizer que outros indicadores sobre profundidade e riqueza da vida cultural mostram justamente o contrário.

Pinker faz também diversas observações que, embora acuradas, negam a verdade central de seu argumento. Ele escreve, por exemplo, que “os efeitos da experiência são altamente específicos para a própria experiência. Se você treinar pessoas para fazer alguma coisa (reconhecer formas, resolver quebra-cabeças de matemática, encontrar palavras ocultas), elas se tornam muito boas na habilidade treinada, mas o resto continua inalterado”. Bem, é isso mesmo, e é por essa razão que muitos de nós estamos profundamente preocupados com a devoção cada vez maior da sociedade para com a Net e outras mídias baseadas em tela. (O americano médio agora passa mais que oito horas por dia com os olhos voltados para telas, enquanto dedica apenas cerca de vinte minutes diários lendo livros ou outros materiais impressos). Não é difícil concluir, ou pelo menos suspeitar, que nós estamos estreitando o escopo das nossas experiências intelectuais. Nós estamos nos treinando, por meio de repetição, a sermos ágeis leitores superficiais, esquadrinhadores e processadores de mensagens – habilidades importantes, sem duvida. Mas, perpetuamente distraídos e interrompidos, não estamos nos treinando para modos mais silenciosos, mais atentos de pensar por meio de contemplação, reflexão, introspecção, leitura profunda, e assim por diante.

E há mais isso no texto de Pinker: “Multitarefas genuínas também foram marcadas como um mito, desfeito não apenas por estudos de laboratório, mas também pela visão familiar de uma van esportiva ondulando entre a faixas da estrada enquanto o motorista bate papo no seu celular”. É precisamente isto. Por essa razão muitos especialistas em mujltitarefas estão preocupados com a prevalência das mesmas. As pessoas podem pensar, na medida em que fazem malabarismos com emails, textos, twittes, atualizações, buscas no Google, olhadas em páginas da web, e várias outras tarefas mediáticas, que estão usando de modo competente diversas coisas ao mesmo tempo, mas o que estão realmente fazendo é altenar constantemente diferentes tarefas, e pagando os custos cognitivos que acompanham essa gangorra mental. Como Steven Yantis, professor de psicologia e ciências do cérebro em John Hopkins, disse [told] no Times:

Além do custo da mudança, cada vez que vai e volta de uma tarefa para outra, você precisa se recordar onde estava na tarefa anterior, e no que estava pensando.  Se as tarefas forem complexas, é possível que você esqueça alguns aspectos do que estava pensando antes de mudar, o que requer que você revisite algum aspecto da tarefa que talvez já estivesse resolvido (por exemplo, você talvez tenha que reler o último parágrafo de um texto que estava lendo). Pensamento profundo a respeito de um tópico complexo pode se tornar quase que impossível.

O fato de que as pessoas batem papo ao celular enquanto dirigem perigosamente não deve nos tornar menos preocupados com relação aos efeitos cognitivos das distrações da mídia; isso deve nos deixar mais preocupados [NT: além de nos deixar com muito medo quanto à segurança no trânsito].

E depois há esta outra pérola no texto de Pinker: “Hábitos de profunda reflexão não surgem naturalmente, pois exigem pesquisa bem estruturada e pensamento rigoroso”. Exatamente. E há outra causa para preocupação. Nossos hábitos mentais mais valiosos – os hábitos de pensamento profundo e focado – precisam ser aprendidos, e para aprendê-los é preciso praticá-los, regular e atenciosamente. E é isso que nossas vidas continuamente conectadas e de constante distração estão nos roubando: o encorajamento e a oportunidade de praticar introspecção e outros modos de pensamento contemplativo. Mesmo a pesquisa formal está assumindo a forma de “poder de navegação”, em vez de estudo minucioso e atento. Patricia Greenfield, professora de psicologia do desenvolvimento na UCLA, advertiu, num artigo publicado na Science ano passado, que nosso crescente uso de mídias baseadas em tela parece estar enfraquecendo “nossos processos cognitivos superiores”, incluindo “vocabulário abstrato, reflexões bem fundamentadas, solução de problemas indutivos, pensamento crítico e imaginação”.

Devemos celebrar, junto com Steven Pinker, os muitos benefícios que a Net e tecnologias com ela relacionadas nos trouxeram. Certamente me alegrei com esses benefícios nos últimos vinte anos. E precisamos prestar atenção no conselho de buscar “estratégias de autocontrole” para escapar das qualidades de distração e propensão para criar dependência das novas mídias.  Mas não devemos compartilhar a complacência de Pinker quando se trata dos efeitos perniciosos da Net, e certamente não devemos ignorar a enorme evidência de tais efeitos.

Não tenho dúvida de que Pinker um dia vai escrever uma crítica convincente, bem pensada e equilibrada de ceticismo quanto à Internet. Aguardo ansiosamente para ler tal artigo.

LINK DE BONUS: Caso não tenha ficado claro, confesso minha convicção de que as declarações mais agressivas da psicologia evolutiva são redutivistas, não convincentes e até ofensivas. Para uma consideração incisiva e até mesmo brutal sobre os limites do ponto de vista de Pinker, especialmente no campo cultural, recomendo a resenha [review] de The Blank Slate, feita por Louis Menand e publicada em 2002 na New Yorker. Sou um tipo de connoisseur de frases ferinas , e Menand  cunhou uma muito boa: “A insistência em depreciar a eficácia da socialização leva Pinker a absurdos que ele  desfila com uma festividade que seria charmosa se sua auto-estima não fosse tão hiper-desenvolvida.

Posted by nick at June 12, 2010 07:11 PM

3 Respostas to “Tecnologias digitais e inteligência 2”

  1. A Internet é uma Meretriz? « Boteco Escola Says:

    […] Tecnologias digitais  e inteligência 2 […]

  2. bields84 Says:

    que belo post! Mto legal seu blog,

    se você quiser posso colocar um post seu em meu blog com seu nome e link do teu blog!

    Mais uma vez parabens pelo blog de altissimo nivel!

    dá uma passada lá no meu!
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    abraços!

  3. bields84 Says:

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    biel

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