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Saberes Invisiveis

maio 13, 2010

Hoje estou preparando uma aula sobre dualismo epistemológico. Tentarei examinar com meus alunos certos pares antitéticos que refletem preconceitos quando falamos de conhecimento. De uma lado temos mente, teoria, conhecimento; do outro lado, corpo, prática, habilidade. Estes segundos componentes dos pares com os quais pensamos o saber são desvalorizados. São vistos apenas como atividades que dependem dos primeiros.

Não vou aqui falar muito sobre pares antitéticos. Prefiro deixar registrado um texto que escrevi   para apresentar obra de um autor que precisa ser lido, Mike Rose. O nome do livro é O Saber no Trabalho. Se a tradução fosse minha, o título seria outro: O Saber do Tabalho ou o Saber do Trabalhador. Mas isso não importa muito. Importa dividir com vocês o texto que escrevi para apresentar o livro do Mike. Segue aqui o meu escrito:

APRESENTAÇÃO DO LIVRO “O SABER NO TRABALHO”, DE MIKE ROSE

De vez em quando, Neca Barato levava mulher e filhos para ver a obra. Mostrava detalhes do estuque bem feito, da aplicação uniforme de massa fina, dos azulejos assentados com perfeição, das inclinações quase imperceptíveis do piso do banheiro para que a água seguisse caminhos desejados, do prumo impecável das paredes. Seu Neca era um pedreiro que gostava de mostrar os resultados de seu trabalho. Tinha orgulho de sua obra. Ele me ensinou a ver inteligência num trabalho tido como atividade de gente rude, pouco educada e sem grandes conhecimentos. Neca Barato é meu pai.

Durante muito tempo evitei utilizar minhas origens de classe e minha convivência com os profissionais da construção civil em conversas com educadores, embora estes últimos usassem com muita freqüência a figura do pedreiro como exemplo de pessoa intelectualmente limitada. Mas quando mergulhei em estudos sobre o saber técnico de cabeleireiros, garçons, cozinheiros, auxiliares de enfermagem e outros trabalhadores do setor de serviços, julguei que era hora iluminar minhas investigações acadêmicas com as dimensões dos saberes sugeridos pelas obras que meu pai construía.

Começo esta apresentação com minha história pessoal porque O Saber no Trabalho é um livro marcado por experiências de vida parecidas com as minhas. O autor, Mike Rose, é filho de uma garçonete, profissão que nos Estados Unidos é tida como pouco exigente em termos cognitivos. Além disso, ele cresceu entre operários de uma grande ferrovia. E muitos aspectos que desenvolve em seu livro me fizeram compreender melhor o significado da obra como expressão de um saber que não se esgota na execução, mas que se vincula a dimensões axiológicas, estéticas e epistemológicas quase sempre ignoradas pelos educadores.

Os estudos de Rose sobre a profissão da garçonete são surpreendentes. Mostram um conhecimento invisível que só pode ser revelado por pesquisadores capazes de ver o trabalho da garçonete com sensibilidade e empatia, não apenas com as ferramentas supostamente impessoais de pesquisa em ciências sociais. Da conversa do autor com sua mãe emergem saberes de uma psicologia popular aprendida e aplicada em jogos sutis de relacionamento entre clientes e garçonetes; estratégias de planejamento que se estruturam a partir de demandas emergentes nas horas de maior movimento nos restaurantes, com ganho de eficiência no uso de tempo e espaço; capacidades de circular em áreas movimentas carregando com a devida elegância bandejas, pratos, xícaras e talheres; criação de expressões vocabulares que facilitam comunicação entre sala e cozinha; prodígios de memória no manejo de grande diversidade de pedidos e de perfis de clientes atendidos simultaneamente; julgamentos de como conduzir serviço e conversa com os clientes para assegurar maiores ganhos de gorjetas; habilidades de relacionamento entre companheiras e companheiros de trabalho para obter maior fluência no atendimento, e muito mais.

A riqueza cognitiva do ofício de garçonete tem equivalentes em saberes de cabeleireiras, marceneiros, soldadores, eletricistas e encanadores, outras profissões estudadas por Rose. Tem também uma mesma sina: é invisível aos olhos de observadores incapazes de ver o trabalho como desdobramento constante de atos de inteligência. Vale observar que a expressão conhecimento invisível é diferente de uma expressão muito utilizada por pesquisadores da área de educação e trabalho: conhecimento tácito. Este último é visto como um saber não verbalizado, mas que pode emergir a qualquer momento na vida do trabalhador. O primeiro é um saber do qual o trabalhador tem consciência,     de quem as mas que não é evidente para observadores incapazes de examinar as atividades produtivas a partir dos olhar de quem as faz. Essa invisibilidade do trabalho lembra uma outra invisibilidade, a de grupos humanos cuja existência é ignorada pelos poderosos. Lembra a invisibilidade do camponês índio do romance Garabombo, o Invisível, de Manuel Scorza.

O Saber do Trabalho desvela o conhecimento invisível presente em todas as profissões por meio de uma metodologia de pesquisa que não separa mão e cérebro, que não traz para encontros com os trabalhadores molduras interpretativas elaboradas previamente em gabinetes e laboratórios. A investigação de Mike Rose procura apreender o fazer-saber presente nos modos pelos quais os trabalhadores dão sentido às suas obras. Nesse caminho, o autor supera as insistentes dicotomias – teoria e prática, conhecimento e habilidade, saber e fazer – que caracterizam os modos hegemônicos de estudar educação e trabalho.

Fazer, saber, apreciar a obra e agir com responsabilidade profissional articulam-se num todo em cada atividade dos trabalhadores que Rose estuda. A história do aluno que refaz por motivos estéticos uma fiação correta, mas “feia”, que ficaria oculta no interior da parede de uma construção, revela essa articulação entre a técnica (fazer-saber) e as dimensões éticas (responsabilidade profissional) e estéticas (beleza da obra) no trabalho.  Tudo isso é entendido e aprendido como um único saber, definidor da identidade do profissional, revelando uma riqueza de conhecimentos imperceptíveis para quem não foi educado para apreciar obras bem feitas.

Rose sonha com uma educação democrática e com uma formação profissional que não separe mão e cérebro, ensino acadêmico e ensino técnico. Seu livro é referência indispensável para qualquer educador envolvido com formação profissional ou com educação geral de trabalhadores e seus filhos. O Saber no Trabalho abre uma janela importante para que possamos aprender com os trabalhadores. As investigações de Rose procuram entender os processos de fazer-saber formadores de identidades dos trabalhadores, individual e coletivamente. Elas não reduzem saber trabalhar a habilidades ou competências, a parcelas de conhecimento desvinculadas de compromissos sociais e da satisfação de produzir. Este livro de Mike Rose sugere pistas ainda pouco exploradas, mas muito promissoras, em termos de metodologias que privilegiem a obra como ponto de partida e de chegada em educação profissional.

Jarbas Novelino Barato