Nos últimos dias a weblândia foi invadida por uma banda barulhenta de blogueiros, tuiteiros e outros, comentando um erro ortográfico da filha da Xuxa. A menina escreveu em seu twitter algo mais ou menos assim:
- Vou gravar sena com cobra.
A ortografia oficial para “unidade de ação de uma peça” (Houaiss) é cena, não sena como a menina grafou. Um erro banal, comum, explicável. Crianças de dez anos de idade, se ousarem escrever, escorregam com frequência nas muitas cascas de banana da ortografia da última flor do Lácio. Suponho que escorregariam em qualquer idioma. Ortografia é um sistema de convenções que exige memorização da “escrita correta”. Mesmo adultos, bem escolados, de vez em quando não sabem como grafar certas palavras. Se você nunca viu a grafia de serótina, uma das horas canônicas, aposto que não saberia se a dita cuja se escreve com c ou com s. Será que sabe com certeza se o correto é ierático ou hierático? Se nunca ouviu este sinônimo de sagrado, é quase certo que não saberia se o h deve ou não entrar na história. Falar nisso, uma dica: hierático tem a mesma raiz que hieróglifo. Logo, o h é de lei nesse caso. Peço que me perdoe a erudição boba. Quis apenas mostrar que não há terra firme para nos dar certeza de como um termo desconhecido (para nós) deve ser escrito.
Na weblândia a maior parte dos comentários revelou censura à educação da filha da Xuxa. Os comentaristas posaram de intelectuais e disseram que grafar cena com s é um escândalo educacional. Essas críticas revelam um entendimento equivocado do que é boa educação. Revelam o que chamo de “síndrome da escolinha do Golias”, um modo de pensar que reduz a aprendizagem escolar à memorização de datas, nomes, definições, e correção ortográfica. Ou seja, toda escola caricaturada na TV mostra professores conferindo armazenagem de informação, não entendimento. Este último, aliás, é um processo arisco em cenas de espetáculo circense ou televisivo. Cabe notar que a mesma concepção de saber predomina em programas sobre “conhecimentos”. Aquele segmento folclórico de um dos dos velhos shows do SS, pergunte aos universitários, conferia exclusivamente memorização de informações. Os críticos da filha da Xuxa fizeram seus comentários com base nessa concepção do saber.
Não venho aqui defender a Xuxa. Aliás, a explicação que ela deu para a escorregada de sua pimpolha foi infeliz. A velha rainha dos baixinhos disse que sua herdeira tem dificuldades com o vernáculo porque foi alfabetizada em inglês. Nada a ver. Ela é simplesmente uma criança de dez anos. Comete erros de ortografia como qualquer outra criança na mesma faixa etária. O episódio indicou apenas que a ortografia derruba muita gente. Derruba muito mais crianças que ainda não foram expostas durante tempo suficiente a informações escritas para incorporarem repertório expressivo de “escrita correta” das palavras. Para mim, o pior da história foi a crítica de gente que se acha intelectual porque supostamente sabe grafar com correção. O pior da história foi a reafirmação de uma concepção educacional que acha que aprender é empanturrar-se de informação cujo sentido é ignorado por essa gente que se sente bem educada.
No mesmo período, dois outros acontecimentos ocuparam muito espaço em blogs e twitters: Vanusa cantando o hino nacional num evento público, e vídeo de uma professora baiana em dança erótica numa boate. No primeiro caso, em VT divulgado no Youtube, a estrela da velha jovem guarda tropeça na letra e melodia do hino nacional. Espetáculo deprimente de pessoa com algum problema decorrente de excesso de medicação ou álcool (prefiro a primeira versão). Os comentários de gente que viu o feio espetáculo são aterradores. Alguns comentaristas chegaram a propor fuzilamento da pobre cantante por causa de suposto desrespeito a um símbolo nacional. No caso da professora baiana, dois desdobramentas: ela perdeu o emprego, e os comentaristas de sua aventura dançante, divulgada via Web, manifestam um moralismo assutador (além de gracinhas machistas). As patriotadas dos comentaristas do vídeo de Vanusa mostram uma gente severa com os outros, e que defendem (cinicamente) símbolo nacional que não tem lá grande prestígio (falar nisso, a letra do nosso hino é quase que uma ofensa ao idioma de Camões…). A conclusão da grande maioria dos comentaristas de que a professora dançarina não pode dar aulas para crianças é no mínimo ofensiva ao direito de ter vida pessoal fora do ambiente de trabalho (professoras não precisam ser santas freirinhas para exercerem com dignidade seu ofício, e o que fazem em ambientes adultos não prejudica per se sua atuação docente).
As reações aos três episódio me deixaram preocupados. Elas mostram gente cujas convicções são fossilizadas. No caso da filha da Xuxa, os comentários havidos mostram uma concepção enviesada do que é educação, além de uma severidade em julgamento de erros ortográficos que só pode ser fruto de uma cultura cuja profundidade não vai além da primeira camada de verniz. No caso da Vanusa, há completa ausência de uma virtude cada vez mais necessária, compaixão, além de manifestações patrioteiras que colocam símbolos nacionais acima das pessoas. Finalmente, no caso da professorinha baiana, os moralistas de plantão se apressam em condenar pessoa que não conhecem, além de censurarem a vida pessoal de uma docente em nome de princípios equivocados do que é o ofício do magistério.