No distante 1966, João Edênio Valle, um dos melhores professores que tive, fez uma pergunta aparentemente casual em classe : “que percentual de acertos teria o relato de uma testemunha ocular de um acidente?” As respostas variaram bastante. Mas, todos nós, influenciados por impressões de senso comum, chutamos valores maiores que cinquenta por cento. Aprendemos que valor real andava pela casa dos dez por cento. E mais, Edênio nos informou que mesmo um policial bem treinado não ultrapassaria os vinte por cento de de descrições acuradas dos fatos.
A lembrança do episódio que acabo de narrar me veio ao ler a resenha Can’t Remember What I Forgot: The Good News from the Front Lines of Memory Research, comentando obra de Sue Halpern, e publicada no The New York Review of Books de 17 de dezembro de 2008. O livro de Halpern é um trabalho investigativo sobre avanços científicos recentes sobre o mal de Alzheimer. Michael Greenberg, na introdução da resenha procura situar a importância da memória para todos nós. Memória, diz ele, “é toda uma rede de experiências e associações das quais construímos quem somos, quem são os outros, e o que esperamos deles e de nós mesmos”. Tal definição sugere que memória é consciência, porque o que o cérebro faz o tempo todo e em todas as suas operações é lembrar. Cito uma passagem mais longa do texto de Green:
… no interior de nossas memórias há vestígios de nossas vidas sensoriais e emocionais, uma rede íntima de recordações, única para cada um de nós. O neurossistema no qual essa cascata de memória acorre com seus ramos, transmissores, e gaps engenhosamente encobertos têm uma qualidade de improviso que parece espelhar a imprevisibilidade do próprio pensamento. Ela (a memória) é um lugar efêmero que que muda na medida em que mudam nossas experiências, de tal modo que somos incapazes de relembrar duas vezes o mesmo evento exatamente da mesma maneira.
No livro de Halpern há relato de uma experiência feita pela Cambridge Psychological Society. Membros da organização foram desafiados a lembrarem detalhes de uma reunião havida duas semanas antes. Em média, as pessoas se lembraram de cerca de oito por cento do que havia acontecido. E das coisas lembradas muitas estavam incorretas, “temperadas por eventos que nunca aconteceram ou que aconteceram em outras circusntâncias”. Esse experimento informal confirma o que aprendi com João Edênio na metade dos anos sessenta.
A memória real, a memória com a qual funcionamos é bastante diferente da memória definida de acordo com o senso comum. Esta última é vista como atividade de reprodução fiel ou quase fiel de experiências e informações. Em 1975, no clássico Explorations on Cognition, Rumelhart e Norman, já nos alertavam que nossa memória não funciona com gravadores ou fitas de vídeo. Para mostrar isso, os autores promoveram um pequeno experimento entre alunos residentes nos alojamentos da Universidade da Califórnia em San Diego (UCDS). Os estudantes foram convidados a desenhar esquematicamente a planta dos apartamentos onde viviam. Quase todas as produções dos alunos mostravam apartamentos com varandas que se projetavam para fora das paredes externas do edifício. Mas as varandas dos alojamentos da UCSD não se projetam para fora, estão no corpo interno do edifício. Como explicar o “erro” gente que morava a mais de seis meses nos alojamentos? Rumelhart e Norman recorrem a um modelo de como construímos esquemas mentais para guardar informações. Tais esquemas se servem de padrões que tentam captar certas características comuns de objetos eventos. No caso, uma característica comum das varandas é a projeção para fora das paredes do edifício. Dito de uma outra forma: os alunos impuseram sua visão de mundo aos modelos de plantas que construíram sobre seus alojamentos. Suas memórias mudaram a realidade para adequá-la aos padrões comuns de varandas.
O que guardamos na memória é resultado de operações que filtram experiências e informações com as quais entramos em contato. Uma das características dos filtros utilizados é a tentativa de economizar espaço de armazenamento, classificando fatos e eventos de acordo com categorias já conhecidas, ou com padrões. Nossas memórias são, portanto, sempre resultado de interpretações ou, para usar um termo da moda, de construções pessoais da realidade.
O conceito de memória que estou tentando descrever aqui não é novo. Um dos psicológos mais importantes do século XX, Frederic C. Bartlett, realizou estudos importantes sobre o tema nos anos de 1930 em Cambridge. Sua obra fundamental em psicologia social chama-se Remembering e ainda é atualíssima.
A definição de memória nos termos propostos pela pesquisa científica é de suma importância para a educação. Ela certamente tem desdobramentos em termos metodológicos. Professores e materiais didáticos precisam considerar os modos de funcionamento da memória humana. E uma das coisas perturbadoras que vejo no caso referem-se à necessidade de contrariar a “natureza” em algumas circunstâncias de ensino. Deixada à sua própria sorte, a memória humana pode interpretar certas coisas na direção do senso comum. E isso é um baita problema no ensino da ciência, por exemplo. Os padrões normais de interpretação dos fenômenos (físicos, históricos, sociais) tendem a confirmar visões de mundo que nada têm de científicas. Isso coloca um alerta importante para a tão propalada necessidade de considerar o “conhecimento prévio” do aluno. Muitas vezes,o conhecimento prévio é noção de senso comum que precisa ser superada para a elaboração de um saber científico. E mais, algumas interpretações do construtivismo, decretando que o aluno deve construir sem qualquer influência “seu conhecimento”, parecem desconhecer completamente a natureza da memória humana. Um dos grandes problemas da aprendizagem é o de que certos saberes contrariam o funcionamento comum de nossa memória.
Resta comentar uma outra visão de memória associada a questões educacionais. No geral, quando falamos de memória, pensamos em reprodução fiel de informações (a criticada decoreba). A maior parte dos educadores abomina memorização de informações. Acho tal radicalismo um erro. Em diversas circunstâncias da vida há necessidade de recuperar rapidamente informação bem armazenada pois não há tempo ou não fica bem consultar um manual ou a internet. Pensem no primeiro caso num piloto de avião que tem de tomar decisões imediatas numa situação de risco. Pensem no segundo caso num médico realizando um processo comum de consulta. Se o piloto for atrás de informação, em vez de usar as que domina, talvez não haja tempo para tomar decisões. No caso do médico, se este recorrer a um manual para procedimentos comuns de consulta, o paciente ficará com a impressão de que o profissional não tem segurança. Alguém dirá, com toda razão, que não gostamos de decorar informações. É verdade. Mais uma vez estamos diante de uma necessidade que contraria o funcionamento normal da memória humana. E para superar a “natureza” é preciso esforço e embarque em atividades que trazem certo desconforto. Sobre o tema, acho conveniente citar passagem de livro que estou lendo no momento, The Crafstsman, da Richard Sennett:
Precisamos ver com suspeita afirmações sobre talento inato, sem treinamento. “Eu poderia escrever um belo romance se tivesse tempo”, ou “se eu pudesse dispor de um tempinho…” são normalmente fantasias narcisistas. Repetir continuamente uma ação, pelo contrário, permite-nos auto-crítica. A educação moderna teme a aprendizagem repetitiva, rotulando-a de entorpecedora da mente. Com medo de aborrecer as crianças, ávido por apresentar estimulação sempre nova, o professor iluminado pode evitar a rotina – mas priva as crianças da experiência de estudarem suas próprias práticas e de modulá-las por dentro. (p.37-38)
A figura do senhor que aparece neste post é uma foto de Fredric C Bartlett, um dos três maiores psicólogos do século XX. Ela foi retirada do arquivo Bartlett da Universidade de Cambridge.