Algumas pessoas, ao verem a definição dos blogs como lugares de encontro para conversas, imaginam que a prosa em tais espaços deve ter a consistência de diálogos como os das obras de Platão. Pensam que os comentários a posts devem centrar-se exclusivamente no assunto sugerido, sem desvios, sem papo furado. Mas a prosa humana produzida com naturalidade não tem essa rigidez acadêmica. É desorganizada, é dispersiva. Faço essa observação por dois motivos: 1. tempos atrás alguém me chamava a atenção (equivocadamente) para a pobre qualidade das conversas na maioria dos blogs; 2. uma leitura recente me mostrou que o entendimento da conversa como uma prática bem comportada é um erro que nos impede de apreciar a riqueza dinâmica da comunicação humana sem amarras e controles.
Para maior compreensão, passo a falar um pouco sobre o segundo motivo. Acabei de ler a tradução para o português do ótimo The Mind at Work (O Saber no Trabalho), do educador Mike Rose. A versão brasileira da obra deverá aparecer no Brasil até o final do ano graças a uma iniciativa da Editora Senac.sp, com uma apresentação deste escrevente. Assim que o livro aparecer na praça, dou um alô aqui no Boteco.
Num trecho do escrito de Mike Rose aparecem diversas considerações sobre a conversa que passo a destacar. Depois de comentar a atenção dos aprendizes para com a obra e o encanto das ferramentas como meios capazes de expressar intenções e desejos de realização humana, o autor observa:
Antes de deixar de lado esta discussão sobre o emprego de ferramentas, quero refletir sobre um elemento aparentemente não relacionado no vocabulário de trabalho usado na sala de aula do Sr. Devries [professor de carpintaria e marcenaria], um que é sempre tão presente, que muitas vezes deixa de ser mencionado: a conversa. As discussões tradicionais sobre tecnologia tendem, de várias maneiras, a separar o técnico e o social – e, com o social, o papel da linguagem. O que fica muito claro na oficina, porém, é a íntima conexão entre emprego de ferramentas, o trabalho em madeira, e a fala. A eletricista e poetisa Susan Eisenberg captura bem o fenômeno: “Trabalho e papo fuindo lado a lado/ como fios em conduite bem instalado”.
No trecho, Rose está falando de modos de comunicação que muitas vezes definimos com “papo furado” e desprezamos enquanto expressão de saberes humanos significativos. Mas essa nossa visão comum está equivocada. O papo furado é muito rico, embora sem qualquer daquelas estruturas dos diálogos que viraram literatura. Um pouco mais à frente, as observações sobre conversa continuam assim em O Saber no Trabalho:
Se pudéssemos gravar um dia inteiro da conversa informal da sala do Sr. Devries […] teríamos uma ampla variedade de tipos de assuntos: fofocas, caçoadas, comentários sobre acontecimentos do dia, manifestações de expectativas, planos e objetivos, crônicas da vida doméstica.Uma boa parte deles em tom grosseiro e agressivo. O que me chama a atenção, porém, é como essa conversa informal […] funciona como um canal aberto, rico de possibilidades cognitivas; o modo como a informação, os processos e os segredos do ofício vão e voltam nas caçoadas, nas fantasias, nas piadas sujas.
Ao finalizar suas observações sobre as conversas que rolaram na oficina de Devries nas ocasiões em que esteve observando o trabalho dos alunos de carpintaria, Mike Rose oferece a seguinte observação sintética:
E há ocasiões em que o propósito da conversa não é tão direto, mas, mesmo assim, serve a uma função cognitiva.
O que quero com tantas citações? Basicamente, quero sugerir que a metáfora dos blogs como espaço de conversação pode ser bastante enriquecida com as observações de Rose sobre as conversas fiadas dos alunos-trabalhadores em suas comunicações na oficina e campo de estágio. O que ele aprendeu na ocasião foi que o papo informal, não regulado, é um veículo natural para compartilhar saberes e sentimentos sem as amarras de falas sérias com objetivos previamente definidos. E daí? O desafio de blogueiros, no caso, é o de abrir espaço para que a conversa flua naturalmente, sem compromissos de falar certo, mas apenas de falar para ser ouvido, para comunicar-se. Se alcançarmos tal meta, nossos blogs não serão textos certinhos e bonitinhos, mas registros de falas autênticas do mais puro papo furado.