059. Sherlock: Um Ambiente de Aprendizagem
Participei de uma grande aventura: a construção do software Sherlock. Aprendi muito. Contribui bastante com a empreitada.
Há cerca de nove anos, escrevi uma memória sobre tal aventura. Meu escrito ficou incompleto e nunca foi publicado. Agora, numa varrição dos meus guardados, vi o escrito de novo. Fiz um pequeno acréscimo e resolvi compartilhá-lo com os amigos. Aqui vai o tal:
Sherlock: Um Ambiente de Aprendizagem
Jarbas Novelino Barato
Corria o ano de 1988. Carlos Seabra, um dos membros do PIE (Projeto de Informática e Educação do Senac São Paulo) chegou de um congresso com uma grande novidade: um pesquisador gringo da Universidade Federal de Pernambuco (UFP) tinha criado um programa genial para trabalho com textos, o Sherlock. Ficamos naquela de ver para crer. A equipe do PIE estava acostumada com os entusiasmos exagerados do Seabra. Examinamos a novidade com a devida prudência. No fim demos razão a nosso companheiro de equipe: a proposta do gringo era mesmo genial. Mas o software (o programa de computador) que fazia o Sherlock funcionar não era nada amigável. Ou seja, usar a primeira versão do Sherlock desenvolvido por David Carraher e sua equipe exigia um bom conhecimento do sistema operacional (DOS) dos computadores pessoais da época. Assim, apesar de toda a atração das idéias do Professor Carraher, a gente achava que as dificuldades de operar o software criado pelo pessoal da Universidade Federal de Pernambuco fariam com que os educadores comuns desistissem de trabalhar com o Sherlock. Resolvemos por isso, em conjunto com educadores do núcleo de informática e educação da FDE (Fundação do Desenvolvimento da Educação), órgão da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, investir num plano de criação de uma nova versão do citado software, tendo como meta uma interface (o ambiente de relação entre usuário e computador) que facilitasse o uso da proposta do professor da UFP. Começou assim uma parceria que durou muitos anos e resultou em duas versões do Sherlock que fizeram grande sucesso nas escolas de São Paulo e outras partes do país (calcula-se que trinta mil cópias das duas primeiras versões do software foram distribuídas na rede estadual de ensino do Estado de São Paulo; além de algumas centenas de cópias utilizadas pelo Senac e escolas privadas).
Para desenvolver a tal versão amigável do Sherlock realizamos muitos encontros com David Carraher . Em tais encontros discutíamos, além da parte técnica de desenvolvimento do software, muitas idéias relacionadas com os fundamentos de uso do Sherlock. Nosso entusiasmo crescente com a ferramenta gerou um grande número sugestões de uso. Além disso, discutimos muito a questão de como os leitores desvelam o texto em busca de sentido e significado.
Nas páginas que seguem procuro recuperar alguns dos pontos de nossas conversas com o criador do Sherlock. E faço isso sem preocupação de produzir um estudo acadêmico, nem de “resgatar” com exatidão os temas discutidos. Procuro apenas registrar idéias que foram surgindo no percurso. É claro que erros prováveis e imprecisões devem ser atribuídos à minha memória falha ou falta de capacidade de reproduzir toda a riqueza dos muitos diálogos da equipe do PIE e da FDE com o professor David Carraher. Espero, porém, que apesar de prováveis falhas e enganos, os comentários que seguem tenham alguma utilidade para os usuários da mais recente versão do Sherlock, publicada pela Editora Senac-sp em 2004.
A Gramática Natural
Por volta dos seis ou sete anos, as crianças já dominam praticamente toda a gramática de sua língua nativa. Essa , segundo os lingüistas, é uma façanha intelectual notável. A estrutura de qualquer idioma é extremamente complexa. Por que então a maior parte das pessoas odeia a gramática que lhe foi ensinada nas escolas?
A gramática dominada por crianças em idade pré-escolar não é constituída por regras formais explícitas e por um vocabulário esotérico. Ela funciona como algo natural que não precisa ser ensinado. As crianças aprendem-na sem esforço aparente. A gramática ensinada nas escolas, pelo contrário, é artificial e de difícil aprendizagem. Essa situação estranha acontece porque os sistemas educacionais enfrentam muitas dificuldades para reconhecer, utilizar e trabalhar com os conhecimentos que as crianças já dominam antes de chegar às escolas. Culpa dos educadores? Provavelmente não. Articular conhecimento prévio com o conhecimento a ser aprendido não é uma tarefa banal. Exige muito dos profissionais de educação. Uma das exigências, no caso, é a de ativar as capacidades metacognitivas dos aprendizes. Ou seja, a de ajudar quem aprende a tomar consciência de seus próprios conhecimentos, de suas capacidades cognitivas, de suas estratégias de aprendizagem. A gramática aprendida na primeira infância, assim como muitas outras coisas que nos capacitam a levar a vida em nosso mundo, é inconsciente. Em outras palavras, nós não temos idéia do quanto sabemos, nem de como funciona nosso sistema de saber. Pensar sobre o próprio saber (metacognição) é uma arte que requer muita técnica e ferramentas especiais.
Metacognição e o Sherlock
David Carraher, cientista do conhecimento, que viveu durante muitos anos no Brasil e hoje trabalha num centro de pesquisas em Boston, está sempre envolvido com problemas de metacognição. Em seus estudos e propostas, David procura encontrar caminhos para ajudar os aprendizes a pensarem sobre seu conhecimento pessoal. Um dos desses caminhos é o Sherlock, um software educacional que oferece muitas oportunidades para o uso da gramática inconsciente aprendida na infância.
O Sherlock é muito simples. Trata-se de um ambiente onde é possível produzir um texto com lacunas ou com palavras embaralhadas. Para o aprendiz, o desafio é o de recuperar as palavras retiradas do texto original (lacunas) ou descobrir a palavra original em cada conjunto de letras embaralhadas. Além disso, há no ambiente algumas ajudas (identificação de categoria da palavra procurada, dicas ou definições, exposição rápida do texto original) para as pessoas que julgarem o desafio muito difícil. Todas essas características convertem os textos editados no Sherlock num jogo interessante.
Como é que algo tão simples como lacunas ou palavras embaralhadas desperta interesse? A chave para uma resposta é o espírito investigativo que mora em todas as pessoas. Um texto editado no Sherlock tem certo mistério; mas um mistério que pode ser resolvido, pois texto e contexto estão repletos de pistas que um bom investigador pode utilizar. Provavelmente você já leu palavras ausentes de algum escrito mal revisado, ou ‘viu’ letras que não estavam escritas no original. Esse mecanismo é natural: para entender um texto com alguma falha, quase todos os leitores são capazes de realizar semelhante façanha (providenciar inconscientemente letras ou palavras para dar sentido ao texto). E para tanto, todos nós usamos a gramática aprendida nos primeiros anos de vida.
Voltando á Gramática
É bom explicar um pouco mais essa gramática “natural” da qual se falou até aqui. Qualquer língua possui um conjunto de regras gerais de como organizar as palavras para que estas tenham sentido. Tais regras acontecem em diversos níveis. Não podemos terminar palavras com a letra p em português. E muitas outras combinações de letras não são permitidas em nosso idioma. Nesse nível, utilizamos regras de ortografia (a escrita correta). As palavras precisam ser organizadas em certa ordem. Precisam também de estar ligadas por meio de certos elementos para que a comunicação seja inteligível. Soa estranho para falantes do português algo como: ”um sapatos par”. É quase certo que a maioria das pessoas corrija essa combinação estranha e diga que o correto deve ser: “um par de sapatos”. E para fazer isso, ninguém precisa estudar gramática na escola. Antes de seguir em frente, é bom notar que a correção de “um sapatos par” envolveu duas coisas: reordenação das palavras e acréscimo do elemento de ligação “de”. Tudo isso é aparentemente simples. Mas cientistas do conhecimento, envolvidos em projetos para produzir programas de computador que entendam a fala dos homens, experimentam grandes dificuldades para ensinar uma máquina a ordenar com correção “um sapatos par”. É por causa de tais dificuldades que os textos traduzidos automaticamente por programas computacionais, muitas vezes, são bastante engraçados. Nesse nível, estamos falando de sintaxe (as normas gerais de como organizar as palavras em nosso idioma). Finalmente há um outro nível, o da semântica (as normas gerais sobre o sentido ou significado de palavras e expressões em nosso idioma). Ao entreouvir nos corredores de uma universidade a frase “viu aquele gato do Direito?”, pouca gente iria concluir que a menina que disse tal frase estava falando de um felino doméstico. Geralmente felinos domésticos não estudam Direito. O gato da frase deve ser, com certeza, um jovem humano bastante atraente. Resumo da história: regras inconscientes de ortografia, sintaxe e semântica são usadas com muita facilidade por quase todos os nativos de qualquer idioma para um bom entendimento em comunicações lingüísticas. É essa competência humana que faz do Sherlock um jogo que vale a pena ser jogado.
As Atrações do Sherlock
Lacunas ou palavras embaralhadas num texto editado no Sherlock convidam o aprendiz a usar sua gramática “natural” em todos os níveis, de acordo com os problemas que vá encontrando pelo caminho. Numa frase como “um par ____ sapatos”, quase todos os leitores vão dizer que falta um de para ligar o par com os sapatos. Os conhecimentos de sintaxe oferecem pistas bastante claras para qualquer sherlock que estiver resolvendo o problema. Mas há questões mais complicadas. Numa frase como “o pastor _______ o rebanho”, que palavra pode substituir a lacuna existente? Quase certamente, um detetive das palavras saberá que a lacuna deve ser ocupada por um verbo. Mas qual? E o problema pode ser bastante difícil se o investigador não souber que tanger o rebanho é uma das atividades de um pastor. Ou seja, o uso da gramática “natural” continua a facilitar a investigação do detetive, mas a ausência de um vocabulário mais rico pode complicar as coisas. Neste ponto, talvez o investigador do texto precise de algum socorro (uma dica de vocabulário, por exemplo, pode ajudar o detetive a chegar à solução “o pastor tange o rebanho”.). Toda essa explicação possivelmente deixa claro que o ambiente do Sherlock pode oferecer oportunidades para aprendizagens muito dinâmicas.
Voltemos ao tema metacognição. É bastante provável que, ao utilizar estratégias baseadas naquela gramática “natural” e inconsciente, aprendida na infância, o detetive das palavras vá percebendo o conteúdo de seus conhecimentos, assim como de seus modos de pensar. Essa é a principal pretensão do Sherlock: formar pensadores que tenham consciência de seu próprio pensar. Quais as vantagens disso? São muitas. Tomar consciência da gramática “natural” ajuda a s pessoas a entenderem melhor a gramática acadêmica que se ensina nas escolas. Ajuda o pensador a melhor entender os textos que encontra pela frente.Desenvolve capacidades de análise muito necessárias em termos de domínio de uma matéria ou disciplina. Melhora a auto-estima de quem descobre que sabe muito mais do que imaginava. Faz com que as pessoas comecem a se ver como senhoras de seu idioma, não como gente dominada por discursos que não entende (nota). Além disso, abre o apetite dos detetives para outras aventuras investigativas. Tudo isso, provavelmente, vai ajudar os aprendizes a melhorarem seus desempenhos nos campos da leitura e da redação.
Detetive das Palavras
Ao criar o Sherlock, David imaginou que o software seria uma ferramenta intelectual para que os aprendizes desenvolvessem uma boa compreensão da gramática escolar. Com o tempo, foi percebendo que sua criação era muito mais ampla que o alvo inicial. Um detetive das palavras não é apenas um bom gramático. O exercício da investigação melhora sua capacidade de entender textos e, por conseqüência, sua capacidade de estudar qualquer matéria. Além disso, as dimensões lúdicas do Sherlock podem ser utilizadas com sucesso na abordagem de muitos assuntos que, em ambientes tradicionais, têm pouca vida. Uma aplicação interessante do Sherlock é, por exemplo, a possibilidade de usar textos com lacunas para iniciar discussões sobre assuntos que envolvem julgamento de valores. Uma comunicação direta sobre racismo, por exemplo, dificilmente coloca em jogo as opiniões, preconceitos e valores dos destinatários. A mensagem bate e volta ou, com diziam as velhas avós, entra por um ouvido e sai pelo outro. Mudar modos de ver o mundo, como observa Gardner (nota), é difícil. As pessoas não se envolvem com os textos que contrariam seus modos de pensar. Possivelmente, abordagens metacognitivas podem alterar essa resistência à mudança, pois o detetive das palavras reexamina suas crenças quando começa a perceber como funciona o seu pensar. Essa questão mereceu demoradas discussões de David com a equipe que produziu, no Senac de São Paulo, a primeira versão do Sherlock. E abriu novas possibilidades de uso do software. Assim, além de usos no campo de comunicação e expressão, O Sherlock é uma ferramenta intelectual que pode dar bons frutos no estudo de ciências sociais, ética, ciência política, marketing etc.
Nós e os Outros
Cabe aqui uma explicação sobre o uso do Sherlock em estudos de temas que envolvem valores. Um texto trabalhado no caso deve ser algo que retrate modos de pensar dos “outros”. Por exemplo: modos de pensar de um racista. Qual a razão disso? Na maior parte das vezes, não revelamos diretamente nossas crenças, valores, convicções. Pouca gente reconheceria publicamente sentimentos racistas. Nossos valores, positivos ou negativos, têm certa sutileza e precisam ser “lidos” em atitudes e ações, não no discurso. Por isso a proposta de recuperação, via Sherlock, de um texto que retrata “os outros”. Examinar o racismo alheio não é traumático. Assim, recuperar palavras num texto que retrata um racista não é um desfio intransponível. E é, uma investigação na qual certas pistas relembrariam a famosa frase de Sherlock Holmes: “elementar, caro Watson!” Nesse clima lúdico, a emergência de mecanismos metacognitivos pode sugerir que, muitas vezes, o pensar alheio é muito parecido com o pensar do investigador. Possivelmente, o investigador perceberá que certos traços de racismo não estão muito longe de seu modo de pensar. Isso, quase certamente, oferecerá oportunidades para uma reflexão sobre atitudes e convicções relacionadas com um tema tão espinhoso. Essa linha de uso do Sherlock pode ser uma boa solução para abordar alguns problemas da ética profissional, da ciência política, da história etc.
A estratégia de ver, nos outros, coisas que talvez existam em nós é, como se disse, um exemplo de possibilidade de uso do software criado por David Carraher. Tal exemplo, mais que alternativa de uso do Sherlock, mostra um caminho de trabalho com textos em diversas disciplinas. É bom reparar, por isso, que os usuários do software em análise devem estar atentos para as diversas alternativas de utilização de textos em tramas de aprendizagem.
Ler e Entender
A leitura pode ser examinada de duas formas. Uma delas é aquela que se preocupa com a aprendizagem dos mecanismos do ato de ler. Inicialmente esse campo de aprendizagem foi o alvo do Sherlock. Mas leitura não envolve apenas o aprender a ler, envolve também o aprender disciplinas cujo principal fonte de informação é o texto.Essa é a segunda forma que precisa ser examinada por educadores de todos os níveis. Interpretar textos é um desafio para alunos do ensino fundamental , secundário e universitário. O número de pessoas que supostamente aprenderam a ler e escrever, mas que enfrentam dificuldades para entender textos que fazem parte da vida cotidiana, é muito grande (nota baseada em Adams, 1980). Há, por isso, necessidade de ferramentas que possam ajudar gente com algum déficit em leitura a superar suas limitações. Educadores que procuram caminhos nesse sentido podem ter o Sherlock como um bom aliado.
Ler e entender depende, em parte, de certas habilidades metacognitivas. Muita gente desenvolve tais habilidades nos longos anos de vida escolar (com ou apesar da educação que recebem). Muita gente, depois de freqüentar os bancos escolares por mais de uma década, não consegue desvendar estrutura e significado de textos com a necessária facilidade. Para este último grupo, parece que o remédio não é a repetição das fórmulas escolares do ensino de idioma nativo (nesse campo, a introdução do ensino de português em cursos superiores, por exemplo, não apresentou grandes progressos). Por isso, é preciso utilizar abordagens que possam auxiliar os educadores a aproveitarem a gramática “natural” como chave do entendimento na leitura.
Ferramentas Intelectuais
Mais de uma vez, mencionou-se aqui o conceito de “ferramenta intelectual”. Chegou a hora de dar um pouco mais de atenção a esse conceito. A maior parte dos softwares educacionais são materiais didáticos organizados para ensinar algum conteúdo específico. Essa tendência, como observa George Miller (nota), está baseada em imitações dos modelos didáticos já existentes. Nessa direção, o computador é utilizado para reproduzir velhos truques da escola. São comuns, por exemplo, os softwares educacionais que propõem exercícios para os alunos resolverem. São também muito conhecidos os programas que respondem perguntas dos aprendizes. Há ainda softwares que nada mais são que quadros negros eletrônicos. Há, finalmente, certos programas que podem ser caracterizados como apostilas eletrônicas. Esses modos de usar o computador em educação não introduzem mudanças significativas no campo do ensino e da aprendizagem. Fazem, como dizem os espanhóis, “más de lo mismo”. São, quase sempre, modos de transmitir conteúdos, pouco preocupados com os caminhos que as pessoas percorrem para aprender. Por todas essas razões, David Carraher costuma insistir na necessidade da criação de ferramentas intelectuais quando se pensa em produzir softwares educacionais. As ferramentas intelectuais são instrumentos que permitem que os educadores trabalhem estratégias de aprendizagem que as pessoas utilizam naturalmente (em ambientes não escolares). Tais estratégias de aprendizagem dependem de desafios. A gramática “natural”, por exemplo, é desenvolvida a partir de necessidades de comunicação (desafios correspondentes às duas perguntas: “como posso entender o que estão dizendo?” e “como posso falar de modo que os outros me entendam?”). Para tanto, usamos ferramentas que fazem parte do conjunto dos equipamentos comuns a todos os seres humanos. Softwares educacionais criados na perspectiva de ferramentas intelectuais procuram colocar em funcionamento um ou mais desses equipamentos que ”já vêm de fábrica”.
Possivelmente já nascemos com a capacidade de criar idiomas (nota). Por isso, o desenvolvimento rápido e impressionante da linguagem nas crianças flui tão naturalmente. Sem qualquer ensino, nossas crianças aprendem com facilidade uma estrutura de relações simbólicas que os mais brilhantes cientistas do conhecimento ainda não conseguem explicar muito bem. E, como já ficou registrado diversas vezes aqui, toda essa façanha é inconsciente. Por isso é difícil maravilhar-se com a constante reconstrução de nosso idioma por nossas crianças. Admirar a fascinante construção do idioma nativo é um privilégio de lingüistas. Mas algumas dimensões dessa fantástica capacidade humana podem ficar evidenciadas a partir do uso de ferramentas intelectuais que “abrem” o nosso conhecimento lingüístico. Isso pode gerar algumas alternativas interessantes de ensino e aprendizagem.
Uma das finalidades educacionais em alta é a do desenvolvimento de habilidades cognitivas. A meta é muito bonita, mas o caminho não é uma estrada pronta e bem mapeada. (nota, Mercer & …). Professores e alunos precisam construí-la a partir de aventuras interessantes de aprendizagem. E, para isso, precisam de boas ferramentas. Aqui mora, talvez, o principal desafio para instructional designers e outros especialistas em educação.
Professores Autores
Ferramentas facilitam o trabalho, a produção. Mas não fazem o serviço pelo profissional. Uma bela caixa de excelentes ferramentas não converte um curioso em marceneiro respeitável. Um bom profissional em qualquer arte é alguém que conhece bem o seu ofício. Isso parece “verdad a Pero Gullo” (verdade que está na cara). Mas a aparências enganam. No reino das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTIC’s), cresce a crença de que as ferramentas vêm em primeiro lugar. Por essa razão, Thoreau, escritor do século XIX (nota Norman ou Postman), observa que os homens estão se tornando ferramentas de suas próprias ferramentas. Em tom jocoso e um pouco arrogante, os informatas gostam de dizer que um dos grandes problemas de funcionamento dos computadores são os periféricos de carne e osso, encarregados da leitura de telas e digitação de alguns dados. Essa é uma versão atual e menos profunda do dito de Thoreau. Há alguma verdade nisso? Parece que sim. No campo da educação, a primazia da ferramenta aparece retratada no seguinte dito cruel: “os professores de hoje são complementos do material didático”. Talvez o tal dito não seja inteiramente justo, mas ele reflete o pensamento da indústria dos livros didáticos e de muitas autoridades educacionais.
Na contramão da primazia das ferramentas caminha um movimento que valoriza a ação humana de quem sabe fazer. Nesse caso, a primazia é a da atividade intencional e planejada. Esse movimento não nega as ferramentas, mas as vê como componentes do trabalho de alguém capaz de ser autor de uma obra. Aliás, é preciso lembrar que as ferramentas ampliam e limitam as possibilidades de realização da obra.
A idéia de autoria casa-se muito bem com a concepção do Sherlock. O Software de David Carraher não tem conteúdo. É um ambiente onde os conteúdos podem ser organizados em formatos de textos com lacunas ou palavras embaralhadas. Quem escolhe e organiza os textos? O professor. Por isso, em bons usos do Sherlock, a autoria da proposta de trabalho é do docente. Esse uso planejado da ferramenta exige que o mestre proponha atividades de acordo com certas intenções didáticas. No caminho, há um bom número de perguntas a serem respondidas: que texto escolher?, que pistas fornecer?, quais palavras deverão ser ocultadas e por que?, quais as prováveis estratégias cognitivas os alunos irão utilizar?, há palavras que, talvez, não pertençam ao universo vocabular dos alunos?, etc. Tudo isso exige um profissional que domina a matéria, conhece os alunos, sabe manejar técnicas de ensino e seja capaz de dinamizar o trabalho com o Sherlock. Assim, ao contrário de softwares que apresentam conteúdos previamente selecionados por especialistas (circunstância que aparentemente pode dispensar necessidade de docentes), a ferramenta criada pelo Professor Carraher supõe uma atividade criação (de autoria) do docente.
Não é aqui o lugar conveniente para uma análise extensiva da questão dos recursos didáticos. É preciso, porém, fazer alguns registros sobre a matéria para que se compreenda melhor a idéia de softwares educacionais como ferramentas intelectuais. Os computadores têm muitas características interessantes. Uma delas é a de poderem imitar quase tudo: nichos ecológicos, pianos, psicólogos rogerianos, jogadores de xadrez, cozinheiros, campos de batalha, etc. etc. Em educação, são comuns as imitações computadorizadas de apostilas, livros, baterias de exercícios, coleção de slides etc. Imitações são um bom uso de computadores? Não há uma resposta imediata para essa questão. Cabe sempre um mas. Imitações são um desafio computacional atraente para analistas e programadores. Mas, o resultado final pode ser algo irrelevante ou inteiramente fora de propósito. Nesse último sentido, por exemplo, num artigo clássico já citado aqui, George Miller (nota) repara que é teoricamente possível imitar o farfalhar de todas as folhas de uma floresta. Mas, para que? A tediosa computação exigida para tanto não produziria qualquer ganho humano em termos de prazer, conhecimento ou aprendizagem. O resultado seria, nas palavras de Miller, apenas uma imensa blasfêmia computacional.
Voltemos à questão da autoria. Às vezes fica a impressão de que os próprios professores vêem a si próprios como repetidores de obras alheias. Esse modo de pensar justifica a ideologia de mídias pedagógicas que poderiam substituir docentes com boas vantagens financeiras e informativas.Como diz um dito corrente nos meios educacionais: “merece ser substituído por uma máquina o professor que acredita em tal possibilidade”.
Numa palestra em 1998, o educador português Vitor Teodoro declarou que os professores precisam voltar a serem intelectuais. Essa declaração pode ser lida de muitas formas. A primeira delas é a de que os professores, em quase todos os países, foram proletarizados. Mas a proletarização não ficou apenas nos salários, ela esvaziou a formação dos mestres. Comparados com os docentes de cem anos atrás, nossos professores sabem muito menos.
O Sherlock, como disse, é um software vazio de conteúdo. Nele, o tratamento do conteúdo é uma criação do professor. Ou, dito de outra forma, para cada uso, o software do David exige um autor ou autores associados.
Conclusões
Voltei a este texto muitos anos depois que ele foi redigido. A ideia era publicá-lo como artigo. Mas, por motivo que me escapa oito anos passados, não cheguei ao fim. Além disso, o Sherlock já não roda nos computadores de hoje, uma vez que depois de 2004 não houve mais investimentos para atualizá-lo.
Resolvi redigir esta conclusão explicativa para divulgar um escrito que ficou arquivado por muito tempo entre meus guardados. Julguei que seria bom tornar públicas minhas reflexões sobre o Sherlock a partir de memórias de conversas tidas com o David Carraher. Além disso, ao recuperar este escrito é uma forma de homenagear o bom trabalho de minha ótima equipe do PIE.
Finalmente, apesar do Sherloc estar inativo nos dias de hoje, muitas das ideias que discutimos em sua construção e uso ainda são atuais. Destaco duas delas: a exemplificação concreta de desenvolvimento de metacognição, a convicção de que é preciso abordar leitura e escrita com base na gramática natural que todo ser humano já traz de fábrica.
Este texto permanece em sua forma de rascunho. Por isso, algumas indicações de notas não aparecerão como referências. Eu poderia até recuperar as referências que utilizei, mas, não acho isso necessário. Como não segue para publicação, o escrito pode continuar com sua cara de rascunho inacabado.
fevereiro 26, 2013 às 2:29 pm |
[…] 059. Sherlock: Um ambiente de aprendizagem […]
fevereiro 22, 2016 às 3:04 pm |
Jarbas Novelino Barato relata aqui, de forma clara, o trabalho de transformar um protótipo de software educativo, no caso, Sherlock, que elaborei inicialmente em colaboração com Paulo Henrique Borba e André Luís Santos, em versão destinada a utilização em salas de aula. Foi sob sua gerência e iniciativa, no Senac-SP, que sua talentosa equipe (Fernando Moraes Fonseca, Arthur Heinrich, Sonia Zaitune, e Carlos Seabra) realizou tal transformação. Estou abismado, até hoje, com criatividade e seriedade do seu trabalho e considero-me privilegiado por ter tido tantas conversas animadas com Jarbas e sua equipe ao longo do projeto Sherlock.
No mesmo post, Jarbas faz uma série de observações perspicazes sobre a concepção e uso de Sherlock. Por exemplo, ele nota que:
“É bastante provável que, ao utilizar estratégias baseadas naquela gramática ‘natural’ e inconsciente, aprendida na infância, o detetive das palavras vá percebendo o conteúdo de seus conhecimentos, assim como de seus modos de pensar. Essa é a principal pretensão do Sherlock: formar pensadores que tenham consciência de seu próprio pensar.”
Quanto ao futuro de Sherlock, Jarbas nota que “Sherlock já não roda nos computadores de hoje uma vez que depois de 2004 não houve mais investimentos para atualizá-lo”. Se houver interesse em elaborar uma nova versão de Sherlock, apoiarei com entusiasmo esta ideia.
dezembro 16, 2016 às 8:49 pm |
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