052. Conhecimento e Verdade

Em 2007 mantive diversas conversações sobre epistemologia com minhas alunas do curso de pedagogia. Tentei mostrar a elas que o educador é, antes de tudo, um profissional do conhecimento. Nessa empreitada, andei buscando textos de filosofia que apresentassem as questões da verdade e do conhecimento de maneira acessível, sem perder profundidade. Um dos textos que encontrei é um escrito de Comte-Sponville, filósofo francês contemporâneo. Minha fonte: uma versão, em espanhol, que comprei na livraria Ateneo de BA. Traduzi e adpatei um capítulo do livrinho do Comte-Sponville para leitura e estudo de minhas alunas.

Acabo de rever o subsídio que produzi em 2007 e, cinco anos depois, acho que ele ainda é um bom ponto de partida para conversas sobre conhecimento e verdade. Reproduzo-o aqui, motivado por conversas que mantive no Face Book com meu amigo Eduardo Chaves e diversos outros amigos que comentaram um convite dele para discutir trecho de um artigo de Helio Schwartsman, na Folha de 06/07/2012, sobre o Bóson de Higgs.

O Conhecimento

 

 André Comte-Sponville

Os olhos não podem conhecer a natureza das coisas (Lucrécio)

Conhecer é pensar o que é. O conhecimento é certa relação – de conformidade, de semelhança, de adequação – entre o espírito e o mundo, entre sujeito e objeto. Assim conhecemos  nossos amigos, nosso bairro, nossa casa. O que há em nosso espírito, quando pensamos neles, corresponde aproximadamente ao que existe na realidade.

Este aproximadamente é o que distingue o conhecimento da verdade. Pois sobre nossos amigos, podemos nos equivocar. Sobre nosso bairro, nunca sabemos tudo. Inclusive sobre nossa própria casa, podemos ignorar muitas coisas. Quem pode jurar que ela não foi invadida por cupins? Ou que, pelo contrário, não está construída sobre um tesouro escondido? Não há conhecimento absoluto, conhecimento perfeito, conhecimento infinito. Você conhece o seu bairro? Naturalmente! Mas para conhecê-lo na sua totalidade, você teria de poder descrever todas e cada uma das ruas que nele existem, todos os edifícios de cada rua, todos os cantos e recantos de cada casa ou apartamento, todas e cada partícula de poeira, todos e cada um dos átomos de cada objeto lá encontrado… Como você poderia fazer isso? Você precisaria de uma ciência absoluta e de uma inteligência infinita; nem uma nem outra está ao nosso alcance.

Isso não quer dizer que nada conhecemos. Se fôssemos incapazes de conhecer alguma coisa, como saberíamos o que é conhecer e o que é ignorar? Neste campo, a pergunta de Montaigne é: o que existe de facto:

O que sei?

e a de Kant é: o que existe de iure:

 

O que posso saber, como e sob que condições?

Tais indagações filosóficas pressupõem uma verdade pelo menos possível. Se esta fosse totalmente impossível, como poderíamos raciocinar? E para que a filosofia? Para que a ciência? [Para que a educação sistemática?]

***

A verdade é o que é (veritas essendi: verdade do ser), ou aquilo que corresponde exatamente ao que é (veritas cognoscendi: verdade do conhecimento). Por isso nenhum conhecimento é a verdade: jamais conhecemos absolutamente o que existe, nem tudo o que existe. Só podemos conhecer por meio de nossos sentidos, de nossa razão, de nossas teorias Como poderia existir um conhecimento imediato se todo o conhecimento é por sua natureza mediação? O mais profundo (ou oculto) de nossos pensamentos tem a marca de nosso corpo, de nosso espírito, de nossa cultura. Toda idéia dentro de nós é humana, subjetiva, limitada; por isso não pode guardar correspondência absoluta com a inesgotável complexidade do real.

“Os olhos humanos podem perceber as coisas tão somente mediante suas formas de conhecimento”, afirmava Montaigne; e só podemos pensá-las, nos ensinará Kant, por meio de formas de nosso entendimento. Outros olhos nos mostrariam outras paisagens. Outro espírito pensaria de modo diferente. Outro cérebro provavelmente inventaria outra matemática, outra física, outra biologia… Como poderíamos conhecer as coisas como estas são em si mesmas, se conhecê-las é sempre percebê-las ou pensá-las como são para nós? Não temos nenhum acesso direto à verdade (só podemos conhecê-la por meio de nossa sensibilidade, de nossa razão, de nossos instrumentos de observação e medida, de nossos conceitos, de nossas teorias…), nenhum contato absoluto com o absoluto, nenhum acesso infinito ao infinito. Como poderíamos conhecê-los totalmente? Estamos separados do real pelos mesmos meios que nos permitem percebê-lo e compreendê-lo? Como iríamos conhecê-lo absolutamente? Somente há conhecimento para um sujeito. Como poderia o conhecimento, inclusive o científico, ser perfeitamente objetivo?

***

Conhecimento e verdade são, pois, dois conceitos muito diferentes. Mas estão relacionados. Nenhum conhecimento é a verdade; mas um conhecimento que nada tivesse a ver com a verdade já não seria conhecimento algum (seria delírio, erro, uma ilusão…). Nenhum conhecimento é absoluto; mas só é conhecimento – e não meramente crença ou opinião – em virtude da parte de absoluto que comporta ou permite.

Consideremos, por exemplo, o movimento da Terra em torno do Sol. Ninguém pode conhecê-lo absolutamente, totalmente, perfeitamente. Mas sabemos que esse movimento existe, e que é um movimento de rotação. As teorias de Copérnico e de Newton, mesmo que relativas (pois se tratam de teorias), são mais verdadeiras e mais certas – e portanto mais absolutas – que as de Hiparco e Ptolomeu. E, paralelamente, a Teoria da relatividade é mais absoluta (e não mais relativa, como se acredita por causa de seu nome) que a mecânica celeste do século XVIII, a qual ela (a Teoria da relatividade) explica, e não o contrário. O fato de que todo conhecimento seja relativo não significa que todos os saberes não sejam válidos. O progresso de Newton a Einstein é tão indiscutível como o de Ptolomeu a Newton.

Por isso há uma história das ciências, e por isso esta história é ao mesmo tempo normativa e irreversível: porque contrapõe o mais verdadeiro ao menos verdadeiro, e porque jamais recai em erros compreendidos e refutados.  Isso é o que mostram, cada um a seu modo, Bachelard e Popper. Nenhuma ciência é definitiva. Mas, como diz Bachelard, a história das ciências “é a mais irreversível de todas as histórias”, uma vez que nela o progresso é demonstrável e demonstrado, porque isso “constitui a própria dinâmica da cultura científica”. Nenhuma teoria é absolutamente verdadeira, nem sequer absolutamente verificável, Mas, por tratar-se de uma teoria científica, é possível confrontá-la com a experiência, contrastá-la, falseá-la, como diz Popper, ou, falando de uma outra maneira, mostrar, quando for o caso, sua falsidade. As teorias que passam por este tipo de provas substituem as que não conseguem tal proeza, integrando as teorias mais antigas e superando-as. Este processo é uma espécie de seleção cultural das teorias (no mesmo sentido em que Darwin fala de uma seleção das espécies), graças à qual as ciências progridem – não de certeza em certeza, como às vezes se acredita, mas por “aprofundamento e correções”, como dizia Cavaillès, ou, nas palavras de Popper, por “ensaio e eliminação de erros”. Nesse sentido, uma teoria científica sempre é parcial, provisória, relativa. Embora não possamos rechaçá-las todas, nem preferir a ignorância ou a superstição – pois isso seria renunciar o conhecer . O progresso das ciências, tão espetacular, tão indiscutível, confirma tanto a relatividade das ciências (uma ciência absoluta não poderia progredir) como sua verdade ao menos parcial (se em nossas ciências não houvesse nada verdadeiro, tão pouco poderíamos progredir ou não seriam ciência).

***

Apesar de tudo, temos de evitar confundir conhecimento e ciência, ou reduzir aquele a esta. Você conhece seu endereço, sua data de nascimento, seus vizinhos, seus amigos, seus gostos, milhares de coisas que nenhuma ciência lhe ensina ou garante. A percepção já é um saber, a experiência já é um saber, apesar de sua vagueza (estamos aqui naquilo que Spinoza denominava conhecimento de primeiro grau), sem a qual a ciência não seria possível. A expressão “verdade científica” não é pois um pleonasmo: há verdades não científicas, e teorias científicas que um dia se revelarão não verdadeiras. Imagina, por exemplo, que você deve testemunhar num tribunal…  Lá não lhe pedem para que você demonstre cientificamente tal ou qual ponto, pedem-lhe apenas que diga o que você acredita, ou melhor, o que você sabe. Você pode se enganar? É claro que sim! Por isso é desejável (nos julgamentos) contar com uma pluralidade de testemunhas. Mas essa mesma pluralidade só tem sentido se existir a suposição de uma verdade; caso contrário, não haveria justiça.  Se não tivéssemos acesso algum à verdade, ou se esta não existisse, que diferença haveria entre um inocente e um culpado? Entre um testemunho e uma calúnia? Entre a justiça e um erro judicial? E por que teríamos de combater os mentirosos, os obscurantistas, os enganadores?

O essencial, neste ponto, é não confundir ceticismo com a sofística. Ser cético, como o foram Montaigne e Hume, é pensar que nada é certo, e que há muitas boas razões para isso. Denomina-se certeza aquilo de que não se pode duvidar. Mas o que prova esta impossibilidade? Durante milênios os homens estiveram certíssimos de que a Terra era imóvel, e nem por isso ela deixou de se mover… Uma certeza seria um conhecimento demonstrado. Mas nossas demonstrações só são confiáveis se nossa razão o é. E como provar que ela o é se a prova acontece por meio dela?  “Para julgar as aparências que recebemos dos objetos –escreve Montaigne – precisaríamos de um instrumento de juízo; para verificar este instrumento , precisaríamos de uma demonstração; para verificar esta demonstração, um instrumento; e assim entramos num círculo.” É o círculo do conhecimento, que proíbe este de ser absoluto. Podemos dele sair? Só poderíamos fazê-lo por meio da razão ou da experiência; mas nem um nem outra nos permite: a experiência, porque depende dos sentidos; a razão, porque depende dela mesma. “Uma vez que os sentidos, cheios de incertezas, não podem resolver nossa disputa – continua Montaigne – é necessário que haja a razão; mas nenhuma razão poderá se estabelecer sem outra razão; e assim retrocedemos até o infinito.” Nossa única escolha é o círculo ou a regressão ao infinito; o que equivale a dizer que não temos escolha: o que torna possível o conhecimento (os sentidos, a razão, o juízo) proíbe elegê-lo como certeza.

È Formidável a fórmula de Jules Lequier: Quando acreditamos com a mais firme fé que possuímos a verdade, devemos saber que acreditamos, não acreditar que sabemos”. Tal afirmação homenageia Hume e a tolerância.

É formidável a fórmula de Marcel Conche a propósito de Montaigne. Sem dúvida algumas de nossas certezas nos parecem legítimas (certezas absolutamente fundadas), mas “ a certeza das certezas de direito não é nunca mas que uma certeza de fato”. Do que devemos concluir, com rigor, que a mais sólida das certezas não prova nada: não há provas absolutamente conclusivas.

Temos de renunciar o pensamento? De modo algum. “Talvez existam demonstrações verdadeiras – dizia Pascal – mas é incerto”. Isso, com efeito, não se demonstra – posto que toda demonstração o pressupõe. A proposição Há demonstrações verdadeiras é uma proposição indemonstrável. A proposição As matemáticas são verdadeiras não pode ser demonstrada matematicamente. A proposição As ciências experimentais são verdadeiras não pode ser verificada experimentalmente. Mas isso não impede que nos dediquemos à matemática, à física ou à biologia, nem nos impede de pensar que uma demonstração ou uma experiência é mais válida e melhor que uma simples opinião. A idéia de que tudo é incerto não é razão para deixarmos de buscar a verdade. Pois também é incerto que tudo seja incerto, prossegue Pascal, e isso é o que dá razão aos céticos mesmo que estes sejam proibidos de prová-lo. Essas posições homenageiam os Pirro e Montaigne. O ceticismo não é o contrário do racionalismo; é um racionalismo lúcido e levado ao extremo – até o ponto em que a razão não pode deixar de duvidar de sua aparente certeza – pois o que prova uma aparência?

A sofística é outra coisa. Ela não coloca em xeque a certeza. Coloca em xeque a verdade. Nem Montaigne nem Hume escreveram algo parecido. Como poderiam filosofar, e por que o fariam, se pensassem de tal modo? O ceticismo é o contrário do dogmatismo; a sofística, o contrário do racionalismo, ou seja, da filosofia.  Se não houvesse nada verdadeiro, o que seria de nossa razão?  Como poderíamos discutir, argumentar, conhecer? “Cada qual tem a sua verdade?” Se assim fosse não haveria verdade alguma, pois esta só é válida se universal. É possível, por exemplo, que talvez só você saiba que está lendo este texto neste momento. Mas isso é universalmente verdadeiro; ninguém pode negá-lo, em nenhuma parte do mundo, em nenhuma época, sem ser um ignorante ou um mentiroso. Nesse sentido, como dizia Alain, “o universal é o lugar do pensamento”, fato que nos faz a todos iguais, pelo menos de direito, diante do verdadeiro. A verdade não pertence a ninguém; por isso pertence por direito a todos. A verdade não obedece; por isso é livre e libertadora.

Certamente é impossível demonstrar que os sofistas estão equivocados (pois toda demonstração pressupõe pelo menos a idéia de verdade); mas o que não se pode pensar, pelo menos em nome da coerência, é que tenham razão. Se não houvesse verdade, não seria verdade que não há verdade. Se tudo fosse falso, como pretendia Nietzsche, seria falso que tudo é falso. Por isso a sofística é contraditória (coisa que o ceticismo não é) e se destrói a si mesma como filosofia. Os sofistas não se preocupam com o problema. Que lhes importa contradizerem-se? Que têm eles a ver com a filosofia? Mas para os filósofos, desde Sócrates, o problema é preocupante. E os filósofos têm lá suas razões, que são as próprias razões de amor à verdade. Se nada é verdadeiro, pode-se pensar qualquer coisa, o que é muito cômodo para os sofistas; mas então já não se pode pensar absolutamente nada, o que é mortífero para a filosofia.

Chamo de sofística a todo pensamento que se submete a algo distinto do que parece verdadeiro, ou que submete a verdade a algo diferente dela mesma (por exemplo, a força, o interesse, o desejo, a ideologia…). O conhecimento é o que nos distingue dela no plano teórico, como a sinceridade no plano prático. Pois se nada fosse verdadeiro nem falso, não haveria diferença alguma entre conhecimento e ignorância, nem entre sinceridade e mentira. As ciências não poderiam sobreviver, nem a moral, nem a democracia. Se tudo é falso, tudo é permitido: pode-se falsificar as experiências ou demonstrações (posto que nenhuma é válida), equiparar a superstição com as ciências (posto que nenhuma verdade as distingue), condenar a um inocente (posto que não há nenhuma diferença entre testemunho falso e verdadeiro), negar as verdades históricas firmemente estabelecidas (posto que são falsas como todas as demais), deixar os criminosos em liberdade (posto que o sendo eles na verdade não o são…), rechaçar a validade de toda a votação (posto que uma votação só é válida se o resultado for verdadeiramente conhecido). Quem não vê os perigos que a sofística desencadeia? Se qualquer pensar for válido, pode-se fazer qualquer coisa. A sofística conduz ao niilismo, como o niilismo conduz à barbárie.

***

Isso é o que confere ao saber seu alcance espiritual e civilizador. “O que é a Ilustração?”, perguntava Kant. A saída do homem de sua menoridade – era a resposta do grande filósofo. A da menoridade só se sai mediante o conhecimento. “Sapere aude! Atreve-te a saber! Assuma como valor servir-te de teu próprio entendimento. Este é o lema da Ilustração”. Embora sem jamais ser moralizador (conhecer não é julgar, julgar não é conhecer), todo conhecimento é uma lição de moral; porque nenhuma moral é possível sem ele, nem contra ele.

Por essa razão é preciso buscar a verdade, como dizia Platão, “com toda alma” – e muito provavelmente a alma é isto: busca da verdade.

E também por essa razão jamais deixaremos de buscar. Não porque esta busca não nos leve a nenhum conhecimento, o que é muito improvável, mas porque nunca se conhece tudo. O grande Aristóteles, com seu habitual sentido de equilíbrio, disse com muito acerto: “A busca da verdade é ao mesmo tempo fácil e difícil; ninguém pode alcançá-la absolutamente, ninguém pode dela carecer completamente”.

É isso que nos permite estar sempre aprendendo, e que tira a razão tanto dos dogmáticos (que pretendem ser donos absolutos da verdade) como dos sofistas (que pretendem que a verdade não existe ou que está inteiramente fora de nosso alcance).

Entre a ignorância absoluta e o saber absoluto, há um lugar para o conhecimento e para o progresso do conhecimento. Bom trabalho para todos!

Original: Comte-Sponville, André.  El conociemento. In Invitación a la Filosofia, Buenos Aires: Paidós, 2004. Tradução e adaptação: Jarbas Novelino Barato, 2007.

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4 Respostas to “052. Conhecimento e Verdade”

  1. ahashimoto2012A Says:

    Gostaria de convidá-lo a dar uma espiada em uma proposta para uma abordagem diferente do conceito de conhecimento e sua relação com o conceito de verdade.
    Ela está em: [ sofilosofando.wordpress.com ]

    Alberto Hashimoto

  2. neves Says:

    gostei do site

  3. Bruna Rodrigues Says:

    Olá tem uma questão que preciso responder todo conhecimento para ser aceita como verdade tem que passar pelo crivo da razão

  4. carlos robeg Says:

    ….e o conhecimento dito apriorístico? Verdades lógicas desnecessárias de prova que envolvam meios físicos, atemporais, como explicaria?

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