040. Dona Cypriana e o computador
FRANCA, DONA CYPRIANA E O COMPUTADOR
Jarbas Novelino Barato
Muitos leitores de Hipona conheceram a Franca da minha infância. Na época, a cidade ainda merecia o nome de Terra das Três Colinas. Aliás, o núcleo urbano ocupava apenas uma colina, aquela parte alta dominada pela imagem imponente da matriz. As outras colinas abrigavam dois bairros distantes, a Estação e a Santa Cruz, umas vilas que ainda não haviam decidido se eram roça ou cidade. Toda essa geografia acabou. As periferias francanas hoje já chegaram ao Espraiado, a Covas e ao território do outrora longíquo campo de aviação. Não há mais Hotel Francano, Cine São Luiz, Estalagem, Beco dos Aflitos ou Campo do Fulgêncio; já não é mais possível reconhecer a Franca do Imperador.
Além de mudanças radicais na paisagem e cenários urbanos, Franca não tem mais atores inesquecíveis da estirpe de um Toinzinho Dá Um Pulinho, Geraldo Pelotão, Joaninho Catraca e muitos outros personagens que faziam a alegria da molecada nas ruas de paralelepípedos da cidade quase imperial.
Sempre que posso, tento recuperar algumas memórias da Franca de minha infância. Um exemplo desse empenho é um pequeno texto que escrevi sobre multimídias e perspectivas educacionais. Alguém pode achar que isso é uma imitação do samba do crioulo doido (Saravá, Estanislaw!). Não é. O uso de computadores em educação tem muito a aprender com Dona Cypriana, a contadora de estórias mais genial que conheci. Se os amáveis leitores não acreditam, leiam “O Meio Não é a Mensagem”, minha homenagem agradecida a Dona Cypriana.
Cabe, antes de seguir em frente, uma nota de advertência. Uso e abuso do termo estória. Os puristas não vão gostar. Mas, prefiro-o a história, pois acho que estórias fabulosas não têm muito sabor com h. Além disso, acho que a História não pode ser confundida com sua prima mais velha, a estória de mitos e fábulas forjadores da alma humana.
O MEIO NÃO É A MENSAGEM
Na minha infância vivi na Santa Cruz, um bairro da Franca. Era início dos anos cinquenta e a periferia francana ainda não tinha água corrente e luz elétrica. Diversões de crianças e adultos eram muito diferentes dos lazeres de hoje. Não havia novela das oito, Xou da Xuxa, Sílvio Santos etc. Nosso acesso à cultura da imagem estava reduzido quase que exclusivamente aos números atrasados de “O Cruzeiro”, quando as pessoas de posse da cidade resolviam se livrar das revistas velhas. O acesso a livros estava circunscrito a cartilhas, a umas poucas obras didáticas do curso primário e ao catecismo que preparava para a primeira comunhão. A cultura predominante da Santa Cruz era a oral, exigindo sempre o contato cara a cara.
Na área mais pobre do bairro pobre, a Caixa D’Água, morava Dona Cypriana, caipira autêntica de pele amarela e longos cabelos negros. Mulher sem filhos, beirando os setenta, ela era um ídolo da criançada. A adoração que devotávamos à velha senhora devia-se a uma arte perdida: a arte de contar estórias. Num casebre de taipa da Caixa D’Água, quase todos os fins de tarde, um grupo de meninos e meninas, quietos e maravilhados, escutava estórias de príncipes e princesas, bichos falantes, bruxas, sacis, gigantes, Carlos Magno e outros heróis. Impressiona-me até hoje a beleza das narrativas, as palavras densas, os enredos engenhosos, o ritmo emocionante da “ação”, a caracterização inconfundível dos personagens das estórias contadas por Dona Cypriana.
Numa cultura predominantemente oral, as estórias, além de passarem valores, crenças e modos de ver o mundo, eram um exercício maravilhoso de imaginação. Dona Cypriana era uma artista e nós, seus ouvintes, aprendíamos com ela a sonhar e imaginar para muito além das duras condições de vida da Santa Cruz.
Mas a arte de contar estórias é, como disse, uma arte perdida. Dona Cypriana não seria hoje páreo para Xou da Xuxa ou para novelas das oito. A cultura oral subsiste, mas perdeu substância. As estórias orais de hoje, às vezes recuperadas em projetos pedagógicos bem intencionados, são apenas um simulacro da riqueza comunicativa das estórias profundamente enraizadas numa cultura em que a fala era o meio mais nobre de comunicação.
O fim das estórias orais mais densas e significativas já se anunciava nos meus tempos da Santa Cruz. Novas estórias, nas telas do cinema da cidade – O Cine São Luiz – ou nas páginas dos gibis, começaram a ganhar corações e mentes das crianças da periferia. Na matinê dos domingos, em vez de sonhar com príncipes e princesas, aprendíamos a torcer pelo mocinho de mais um faroeste e pelo herói de mais um seriado de aventuras dos “civilizados” na África. Em vez de Carlos Magno ou de animais falantes da fauna tupiniquim, começamos a idolatrar personagens como Cavaleiro Negro, Flecha Ligeira, Zorro, Tarzan, Capitão Marvel, Jim das Selvas e tantos outros. E nessa troca, perdemos e ganhamos. Perdemos imaginação. Perdemos o poder mágico de criar mundos sugeridos pela palavra. Ganhamos mais cultura da imagem indo ao cinema (um ganho já perdido para a cultura pouco envolvente de imagem televisiva). Ganhamos maior capacidade de uso da escrita lendo os velhos gibis, trocados a cada domingo no Cine São Luiz. E a cultura oral perdeu definitivamente a arte de Dona Cypriana.
Contar estórias não é uma arte perdida. Com os novos meios, a velhas estórias migram e passam a alimentar a produção de filmes, livros, gibis, revistas e outros tantos meios da Sociedade da Informação. Mas ao migrarem, as velhas estórias perdem e ganham. João e Maria, desenhados por Walt Disney ou representados por artistas de Hollywood, já não são mais João e Maria que reinventei ao ouvir Dona Cypriana. São personagens já “imaginados” antes que eu pudesse criá-los. Gostaria de analisar mais profundamente a arte de contar estórias para, entre outras coisas, tentar entender melhor a estética da oralidade, pois acredito que da minha infância para cá perdemos o senso de beleza da palavra falada. O falar agora é apenas um meio – muito pobre – de comunicação. Quando os gurus da cultura destacam a importância da informação, certamente não pensam em estórias ou em oralidade. Pensam em bancos de dados. Registros eletrônicos. Filmes. Fotos. Imagens. Sons gravados. Livros. Bibliotecas. Equipamentos. Redes eletrônicas.
As corporações que dominam os novos meios de comunicação desqualificam os velhos meios. É muito frequente, por exemplo, a afirmação feita por letrados de que a palavra escrita é mais clara, correta e completa que a palavra oral (Eu já cometi esse erro num trabalho sobre o uso didático do texto, nos idos de 79). Ao fazer isso, defensores do alfabeto e da imprensa, consciente ou inconscientemente, reduzem o valor comunicativo da fala. Eliminam da paisagem Dona Cypriana e todos ou outros artistas do discurso oral.
Comecei a escrever esta introdução com dois propósitos: ser breve e mostrar que o título da minha comunicação na 4ª Jornada de Informática e Educação – O Meio Não é a Mensagem – faz sentido. Cometi dois enganos: não estou sendo breve e, pelo que eu escrevi até agora, o título que escolhi não se sustenta.
Achei que a referência à Dona Cypriana, além de uma justa homenagem a analfabeta mais genial que conheci, seria um pequeno registro de certas circunstâncias da minha infância. Mas, ao elaborar minha experiência com as estórias orais, percebi que a arte da velhinha da Caixa D’Água tinha tudo a ver com a recente entrevista de George Lucas à uma revista de informática (Wired Feb. 1997, p. 160 e ss) ou que minhas lembranças sobre Dona Cypriana foram desencadeadas pela resposta do famoso cineasta à pergunta: “Você pensa que a digitalização muda muita coisa na produção cinematográfica?” Ao contrário do que muita gente pode supor, o comentário de Lucas foi o seguinte: “Digital é como dizer que tipo de câmara você irá usar? Uma Panavision ou uma Arriflex? Você irá escrever com uma caneta ou com um laptop? Ou seja, a digitalização nada muda” (p. 165). Por outro lado, na continuação da entrevista, Lucas afirma que a tecnologia tudo muda, sobretudo os modos pelos quais é possível contar uma estória no cinema. É claro que além de me fazer lembrar de Dona Cypriana, as provocações do cineasta me levaram a pensar num dos livros mais citados da década de sessenta (“Os Meios de Comunicação Como Extensão do Homem”, de Marshall Mcluhan) cujo capítulo de abertura é “O Meio é a Mensagem”.
Vou refrasear o parágrafo anterior, tentando ser claro e didático. Dois meses atrás eu estava procurando um título para minha comunicação na 4ª Jornada de Informática e Educação. Eu queria falar sobre o tema central do evento: redes eletrônicas de comunicação e rumos da educação. Mas não sabia que enfoque escolher. Cruzei então com a entrevista de George Lucas na revista Wired de fevereiro último e descobri que talvez fosse possível contestar o famoso bordão de Mcluhan: o meio é a mensagem. Essas duas possíveis referências me obrigaram a rever minhas convicções sobre possíveis relações entre meios e educação. E mais do que isto, desencadearam memórias gratificantes sobre minha experiência com a oralidade quando esta era o meio mais importante de comunicação em alguns grupos sociais.
De uma certa forma, registro neste texto uma coisa que está na moda. Mais do que uma introdução à minha comunicação, este escrito é uma tentativa de mostrar algumas facetas do processo de metacognição que precedeu a produção do meu roteiro de transparências. Tal roteiro, aparentemente bem organizado e sequenciado, é resultado de um pensar contraditório, mutante, inseguro, viajante. Toda esta narrativa indo de Dona Cypriana a Mcluhan, revelando dúvidas de como definir aspectos fundamentais da educação na Sociedade da Informação, lembra o pensar caótico do personagem de “Eu, O Supremo” do romancista paraguaio Raul Roa. A experiência humana, repensada continuamente pelos sujeitos de conhecimento, é muito diferente das informações bem comportadas e aparentemente estáveis que aparecem em livros, filmes e computadores.
Seria ótimo contrariar Mcluhan, mas o assalto dos novos meios contra a oralidade, com a perda de valores éticos e estéticos da velha cultura, parece dar razão ao inventor da aldeia global.
Volto a Dona Cypriana. As estórias maravilhosas da cultura oral foram uma forma exemplar de aproveitamento dos recursos tecnológicos da fala. Novas tecnologias da informação, ao ingressarem na arena, tentaram e conseguiram desqualificar o falar. E as novas e velhas estórias ganharam outros contornos éticos e estéticos em obras como as de um Cervantes ou de um Machado de Assis. Mas agora está em andamento uma nova batalha: os meios eletrônicos estão desqualificando a tecnologia da imprensa. Cinema e televisão já minaram a fortaleza do livro, gerando estórias mais aceitas que as belas formas escritas que a escola ainda tenta vender a seus fregueses. O assalto final está sendo conduzido pelo batalhão de elite das redes eletrônicas de informação (INTERNET, WEB). Mas a guerra não está decidida, as novíssimas tecnologias de informação ainda não produziram estórias equivalentes, do ponto de vista ético e estético, aos contos orais de Dona Cypriana.
Acho que minhas idas e vindas finalmente apontam um caminho quanto ao foco da minha comunicação; em vez do título original, cabe agora uma tematização cujo rótulo provisório deveria ser : ainda não há bons contadores de estória nos domínios das tecnologias da informação. Por enquanto a INTERNET não dispõe de nenhuma Dona Cypriana.
Quem chegou até aqui deve estar achando que fui assaltado por sentimentos de saudosismo incurável e de culturalismo solipsista (seja lá o que isto signifique). Pode ser verdade. Mas não posso deixar de insistir que um meio precisa de boas estórias para se propor como veículo de educação. Os veículos epistemológicos são as estórias que podemos contar, não o contorno da letra a, a captura de imagens da Madona em elementos sensíveis à luz, ou o armazenamento de múltiplas informações em chips e CD’s.
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agosto 19, 2011 às 11:00 pm |
[…] em nosso curso de filosofia no início dos anos sessenta do século passado, pode ser encontrado aqui, em Páginas deste Boteco. Caso o amável leitor não queira ler integralmente meu velho texto, cito aqui um trecho: Na área […]
junho 24, 2012 às 2:47 am |
Olá
Jarbas Novelino Barato
Meu nome é Fernando Rangel, tenho Hoje 53 anos, nasci em Franca e vivi por lá de 1958 a 1968 mais ou menos.
Vivi no beco dos aflitos, vendi picolé no Palmeiras Futebol Clube, meus avôs paternos moravam próximo a uma depressão chama de Buracão. Me lembro dos desfiles de sete de Setembro, do Cine São Luiz, das seções de cinema no asilo próximo ao Beco dos aflitos, enfim vivi um pouco da estória que você narra, mas me lembro como pinceladas desta época, em um tempo meu pai era zelador de um campo chamado comercial, nem sei se existe ainda. Na época muito pequeno ainda não era habitual tirar fotografias, por isto não as tenho.
Parabéns pelo Blog.
Fernando Rangel
xfernandorangel@gmail.com
São Paulo/SP