028. Saberes invisíveis

O saber invisível
Autor de livro sobre a inteligência envolvida no

trabalho de profissionais como cabeleireiros e garçons

diz que é preciso encontrar maneiras menos

simplistas de classificar o conhecimento

Por Jarbas Novelino Barato

Revista senac.sp – Especial 60 anos

Em 2004, o professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles Mike Rose publicou um livro que mostra com paixão a inteligência escondida em trabalhos como os de garçonete, soldador, cabeleireira e marceneiro. A obra, The Mind at Work: Valuing the Intelligence of the American Worker (Penguin Books) é uma investigação que abre importantes janelas para entender as complexas dinâmicas de conhecimento em trabalhos manuais. “A inteligência do trabalho, o pensamento que o torna possível, está tão engastada nas interações sociais, rotinas de serviço e dinâmicas emocionais que passa despercebida”, afirma, no livro. De origem italiana, Rose viu a mãe trabalhar por mais de 35 anos como garçonete e conviveu na infância com tios ferroviários. Foi o primeiro da família a chegar à universidade. Intelectual de renome e autor premiado de livros sobre literatura e educação, o professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) não se esqueceu de suas origens, nem da inteligência admirável dos trabalhadores com os quais conviveu. Nesta entrevista, ele conversa com o educador e professor universitário Jarbas Novelino Barato, cujas origens são bastante parecidas com as suas: filho de pedreiro e sobrinho de trabalhadores da construção civil, o autor de Educação Profissional: Saberes do Ócio ou Saberes do Trabalho? (Editora Senac São Paulo, 2004) trabalhou no Senac São Paulo por 30 anos.

As novas tecnologias transferem inteligência do trabalho para máquinas e sistemas. Com isso, você acha que os empregos estão perdendo conteúdo e inteligência? A produção em massa trouxe a “desqualificação” de muitas profissões. Em alguns casos, essa tendência fez com que aparecessem novos trabalhos qualificados. De forma geral, o fenômeno mudou significativamente a natureza de muitas profissões na indústria e no setor de serviços. Nosso tempo é uma época interessante no campo do trabalho. Junto com a desvalorização de certas profissões há também procura por trabalhadores de linha de frente mais qualificados, que consigam resolver problemas, tomar iniciativas, ler com bom entendimento, dominar conceitos matemáticos. Temos então duas forças contraditórias agindo na organização do trabalho: desvalorização de um lado e exigência de mais qualificação de outro.

Cresci numa casa onde os adultos falavam com orgulho de suas profissões. Parece que essa exposição à cultura do trabalho está desaparecendo. Nossas crianças não têm qualquer idéia do que fazemos para ganhar a vida. Será que a gente vai perder o interesse pelo trabalho enquanto atividade humana importante? Sua pergunta nos faz pensar sobre a cultura em si mesma, sobre o que valorizamos, como percebemos uns aos outros e nosso trabalho, que herança vamos deixar para os jovens. O trabalho é tão central em nossas vidas que eu não acho que ele vá deixar de ser uma atividade humana importante, como você diz. Mas o que conta realmente é o que os jovens pensam sobre o trabalho, como distinguem os diferentes tipos de trabalho, os conceitos de inteligência e mérito que utilizam nessas distinções, que significados extraem do trabalho. Todas essas são questões sociais importantes, e os educadores precisam mantê-las vivas, numa discussão pública que não se limite ao desenvolvimento da criança e da escola, mas esteja atenta também para o tipo de sociedade que queremos construir.

Em seu livro, você cita observação de J. Hoerr segundo a qual, desde o início da industrialização, ganhou força nos EUA a idéia de que os trabalhadores assalariados não tinham competência para lidar com assuntos complexos ou resolver problemas que exigiam conhecimento abstrato e capacidades analíticas. Hoje, há quem diga que os trabalhadores precisam aprender nas escolas apenas competências gerais. Esse discurso não é uma nova forma de dizer a mesma coisa que Hoerr criticou? Ótima pergunta. É claro que devemos evitar uma educação profissional limitada que visa somente habilidades básicas para trabalhos específicos. Esse foco caracterizou uma educação profissional de baixo nível no passado, pelo menos nos EUA. Mas também é verdade que aprendemos a resolver problemas, a pensar abstratamente, a comunicar conceitos por meio de tarefas específicas e concretas – como é evidente em qualquer laboratório de química. Precisamos iniciar uma reforma na educação profissional, considerando as recentes descobertas sobre o conhecimento humano e sobre como funciona nossa mente.

Sobre o trabalho da cabeleireira, você afirma em seu livro: “Ela incorpora a técnica no planejamento e na execução do corte, resolvendo os problemas que encontra, pensando através da tesoura em sua mão”. Poderia falar mais sobre o papel da ferramenta? As ferramentas (e muitos tipos de instrumentos e artefatos) são essenciais para construir conhecimentos e aprender coisas novas. Isso é verdade tanto numa oficina de carpintaria quanto num laboratório de física. Ao usar o martelo, um carpinteiro aprende coisas como qualidades dos materiais, princípios de força e movimento, mecânica do corpo. Essa inter-relação entre ferramenta e conhecimento é básica para algumas teorias sociais e psicológicas, tais como as de Marx e Vygotsky. O que me interessa é que, mesmo quando aceitamos essa relação no nível teórico, podemos não enxergar como a conexão entre ferramenta e conhecimento acontece na prática, no dia-a-dia. Por isso temos dificuldade para reconhecer, voltando ao meu exemplo, a inteligência do trabalho em usos fluentes de um martelo.

Na sua opinião, de onde vem a dificuldade de entender o conhecimento que é produzido na ação? No Ocidente, desde Aristóteles, vivemos uma longa tradição cultural que faz distinções dicotômicas entre conhecimento puro e aplicado, teoria e prática, educação acadêmica e profissional, cérebro e mão. Mas quando você se aproxima do trabalho – o trabalho de um cabeleireiro ou de um cirurgião – essas distinções começam a perder sentido. Existem muitos momentos de pensamento abstrato, envolvendo conceitos e resolução de problemas, no trabalho de um bom cabeleireiro. Perguntei a um profissional da área o que ele faz quando uma pessoa aparece com um corte ou uma coloração malfeita por outro cabeleireiro. “A primeira coisa que você tem que fazer”, ele disse, “é descobrir onde o outro profissional estava tentando chegar”. Considere todo o conhecimento e o pensamento hipotético que entram em ação nesse caso. Vejamos outro exemplo: o trabalho do cirurgião. Passei um verão observando residentes em cirurgia e me deparei com o fato de que o conhecimento considerável que eles tinham sobre anatomia e fisiologia retirado do livro-texto tem pouca utilidade até o momento em que conseguem convertê-lo em habilidades tácteis. Eles têm de desenvolver uma sensibilidade para a aparência e a consistência do tecido, além de uma destreza manual considerável. Precisam converter todo o conhecimento do livro em conhecimento sensorial. Os conceitos precisam tornar-se concretos. Eles precisam resolver de maneira muito concreta problemas envolvendo um grau elevado de aprendizagem abstrata sobre doenças. Observando tudo isso, é difícil saber onde a teoria e a abstração terminam e onde a habilidade manual e sensorial começa.

O que pode ser feito para superarmos preconceitos contra o trabalho manual? Superar essas distinções problemáticas entre tipos de conhecimento é um enorme desafio. As distinções entre mão e cérebro estão arraigadas na cultura e são reforçadas por distinções de classes sociais e status ocupacional. Nós, educadores, temos de examinar nossos próprios preconceitos, porque crescemos com eles. Temos de discutir a dimensão cognitiva do trabalho, olhar para a teoria da atividade elaborada pelos sucessores de Vygotsky, estudar as descobertas recentes nas ciências do conhecimento e da aprendizagem, áreas nas quais os pesquisadores estão desafiando maneiras simplistas de entender o trabalho e classificar o conhecimento. Uma vez que entendam bem esses assuntos, os educadores poderão voltar-se para metas educacionais, objetivos e currículos. Já sabemos que em bons programas de educação profissional os alunos desenvolvem perspicácia na percepção, descobrem as capacidades e limitações das ferramentas, melhoram suas habilidades para planejar e priorizar tarefas, resolver problemas rotineiros e eventuais, usar e comunicar uma variedade de símbolos, inclusive símbolos matemáticos. Servem-se da matemática para fundamentar seu planejamento e a resolução de problemas, e da leitura e da escrita para auxiliar a aprendizagem e a execução de tarefas. Aprendem a se comunicar e a trabalhar cooperativamente. Refletem sobre suas próprias ações para evitar prejuízos e erros. Desenvolvem valores estéticos e profissionais. Nossa missão como educadores é colocar em primeiro plano a dimensão cognitiva do trabalho. E realizar um grande esforço para influenciar políticas públicas e promover discussões sobre a inteligência e o conhecimento dos trabalhadores.

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3 Respostas to “028. Saberes invisíveis”

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  2. Neusa Goys Says:

    Amigos do Boteco. Que bela entrevista! Precisamos compatilha-la com nossos amigos educadores. A desvalorização do trabalhador manual ainda corre solta em nosso meio.

  3. Inteligência do trabalhador « Boteco Escola Says:

    […] Faz algum tempo que busco tornar mais conhecido no Brasil um grande educador: Mike Rose. Um dos livros dele, O Saber no Trabalho, foi traduzido para o português com um prefácio meu. Em 2006, fiz uma entrevista com Mike. Cópia dessa conversa com ele pode ser encontrada aqui em Saberes Invisíveis. […]

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