026. Tecnologia e Imaginação
Reproduzo aqui, com pequenas modificações, texto que escrevi, dois anos atrás, para subsidiar reflexões na preparação de um evento sobre Tecnologia Educacional.
Tecnologia e Imaginação
A imaginação é mais importante que o conhecimento
Albert Eistein
Jarbas Novelino Barato
São Paulo/2009
Novas tecnologias sempre nos desafiam a redesenhar espaços, produções, modos de organizar a sociedade, formas de comunicação, relações com os outros, conhecimentos, a vida enfim. Mas as mudanças não acontecem imediatamente, pois as novidades técnicas geradas por soluções de engenharia são apenas um começo. Para produzirem efeitos inteiramente novos, as tecnologias que entram na história precisam ganhar contornos originais, superando antigos modos de ver o mundo e a vida. Caso contrário elas apenas resultarão num fazer “más de lo mismo” como dizem os espanhóis.
Redesenhar espaço e vida a partir do potencial de uma nova tecnologia não é tarefa simples. No começo quase sempre se opta por manter as velhas formas. Um exemplo clássico disso aconteceu com os automóveis. Os primeiros carros a motor tinham a cara das velhas carruagens. O assento do motorista era desenhado num lugar alto assemelhado ao espaço antes destinado ao cocheiro. Os primeiros desenhistas de automóveis não perceberam uma mudança fundamental: o cavalo deixara de ser a força motriz. Assim, o cocheiro, digo o motorista, não precisava mais de ficar numa posição que favorecesse o controle do animal de tração. Passaram-se alguns anos para que os designers de veículos automotores começassem a produzir uma arquitetura mais adequada ao novo veículo.
O caso dos automóveis tem uma grande vantagem: pode ser mostrado graficamente. Há, porém, outros exemplos mais expressivos que a gente quase sempre ignora uma vez que o design de produtos para a nova tecnologia não passou por uma fase de cópia do velho paradigma. A dificuldade no caso era de outra natureza: como inventar situações criativas e inteiramente originais que aproveitem o potencial de uma nova tecnologia. O exemplo mais ilustrativo dessa outra circunstância é o cinema. A invenção dos irmãos Lumière foi, durante décadas, uma curiosidade que atraia multidões; mas, nada acrescentava em termos de comunicação. Admirava-se, no caso, a novidade de imagens em movimento. Mas o cinema teve que esperar o gênio de Griffith que, no ano de 1915, em “O Nascimento de uma Nação”, fez o primeiro filme com as características da arte cinematográfica. Por causa de exemplos como o do cinema, Donald Norman, ao apresentar Computer as Theatre, livro de Brenda Laurel, faz a seguinte observação:
Já é hora dos engenheiros voltarem para a engenharia. Para desenvolver estas novas tecnologias [tecnologias de comunicação e informação] precisamos de uma nova raça de pessoas criativas, principalmente aquelas envolvidas com poesia, escrita e direção teatral.
Além de Norman, importantes pesquisadores da área das ciências do conhecimento como Alan Kay, Terry Winograd, Brenda Laurel, Nardi e muitos outros insistem na idéia de que usos mais amigáveis, efetivos e humanos das novas tecnologias da informação e da comunicação dependem de invenções criativas de “artistas”, não de mais e mais soluções inventadas por “engenheiros”. Esta convicção gerou nos últimos anos muita pesquisa no campo da interação entre os seres humanos e os novos sistemas de informação e comunicação. Volto a citar Donald Norman para mostrar uma direção que me parece interessante:
No passado, a tecnologia tinha de se preocupar com a adaptação aos corpos das pessoas; atualmente ela tem de se adaptar às mentes dos seres humanos. Isto significa que as velhas abordagens não funcionam mais. Os mesmos métodos analíticos que se aplicavam tão bem às coisas mecânicas não se aplicam às pessoas. Hoje em dia, ciência e engenharia geralmente vêem o desenho das máquinas desde um ponto de vista que é centrado nas próprias máquinas. Este ponto de vista acaba influenciando o modo pelo qual as pessoas são vistas. Conseqüentemente, a tecnologia planejada para ajudar a cognição e prazer humanos muitas vezes mais interfere e confunde que ajuda e clarifica.
A análise de Norman clareia uma das tendências para a qual não estamos muito atentos: a de que o senso comum nos leva a acreditar que é preciso adaptar-se às máquinas e sistemas. Este desvio faz com que nos esqueçamos de que comunicação e informação são atividades “humanas”. Máquinas, equipamentos e sistemas deveriam apenas oferecer-nos oportunidades para expandir nossas capacidades de criar, negociar, transformar e usar informações para enriquecer a vida. Felizmente a submissão a conveniências de engenharia no desenho de máquinas e equipamentos vem sendo substituída por uma atitude que procura encontrar caminhos determinados pelas necessidades e características humanas. Tal tendência é bastante nítida hoje nos estudos sobre interfaces dos sistemas computacionais.
Os estudos e tendências delineados nos parágrafos anteriores podem nos alertar quanto a cuidados que precisam ser tomados em educação no que se refere a usos de novas tecnologias da informação e da comunicação. Aparentemente, ainda predominam em educação entendimentos de que os usos das novas tecnologias devem ser determinados por conveniências de engenharia. O laboratório de informática nas escolas, com um informata responsável por seu uso, é uma evidência de tal fenômeno. A insistência em treinamentos “informáticos” para professores é outra. Ao observamos o uso das novas tecnologias em educação sentimos certo vazio.Falta alguma coisa no cenário. Falta imaginação. Parece que ainda estamos usando os novos meios da mesma forma que o cinema foi concebido até a revolução de formato criada por Griffith. Submetemo-nos ás conveniências da engenharia, deslumbrados com as inúmeras novidades técnicas que aparecem continuamente.
Como mudar o jogo? Recorro mais uma vez ao exemplo do cinema. A tecnologia das imagens em movimento só se tornou uma forma importante de comunicação quando um artista inventou modos de fazer cinema para contar histórias, emocionar, criar suspense etc. Assim, para mudar o jogo, estamos precisando de projetos educacionais que recriem as novas tecnologias “com imaginação”. E, como diz Norman, escritores, atores, poetas, pintores, artistas gráficos, músicos, comunicadores são os profissionais de quem se pode esperar uma mudança significativa nos usos de novas tecnologias em educação. Mas não podemos ficar esperando. Devemos ser proativos. Ou seja, é preciso que os educadores utilizem as inspirações das áreas de arte e comunicação para criar formas verdadeiramente novas de ensinar e aprender.
Nossa viagem não começa no marco zero. Usos educacionais imaginativos das novas tecnologias podem ser encontrados aqui e ali. Se garimparmos com cuidado, poderemos encontrar diversas experiências de “tecnologia com imaginação”. Acontece, porém, que tais experiências são isoladas e não configuram ainda um movimento que mostre claramente a necessidade de investir em imaginação na utilização das tecnologias da informação e da comunicação para fins educacionais. Por este motivo, escolher a imaginação como eixo de reflexão sobre Tecnologia Educacional é uma decisão que pode representar uma novidade no campo de estudos sobre novos rumos para articular educação com os meios de comunicação e informação.
O uso de tecnologias da informação e comunicação sem a necessária imaginação pedagógica pode criar um enorme fosso entre escolas e outras agências sociais. Este parece ser o caso da TV. Tal veículo ganhou importância fundamental no campo da informação e do entretenimento, mas seu uso em educação é quase que irrelevante. Em parte isso ocorreu por causa da ausência de imaginação pedagógica. Usos educacionais da TV são, quase sempre, esforços de “domesticar” o veículo. Mas a domesticação da TV pelos educadores significa perda de características que tornam a mencionada mídia interessante. Uma TV que apenas transmite velhos formatos de conteúdos tradicionais encontra forte resistência das gerações que se alfabetizaram na leitura de imagens por meio de programações de alto nível de qualidade técnica e invenções muito imaginosas de linguagem. Assim, mesmo numa área de informação e comunicação desenvolvida no final da primeira metade do século passado somos desafiados a superar utilizações inadequadas e criar propostas imaginativas que possam encantar os aprendentes. Raciocínio semelhante talvez valha para mídias mais antigas como o livro impresso, ou pelo menos para acervos conservados em bibliotecas.
O desafio maior fica por conta das mídias controladas ou geradas por sistemas computacionais, sobretudo aqueles que dão vida às redes mundiais de computadores, nas dimensões que convencionalmente chamamos de internet. [o termo internet ganhou uma extensão muito mais ampla que os arranjos técnicos que permitem uma comunicação intercomputadores numa malha planetária]. O equívoco mais comum no caso é o de pensar que os usos da internet em educação devem ser regidos pela “tecnologia” (pelas ferramentas). Ignora-se quase sempre a necessidade de criação de novos modos de “contar histórias” para aproveitar as possibilidades cada vez mais encantadoras que aparecem na internet. Um exemplo são os blogs. Esses diários eletrônicos permitem que qualquer pessoa ou grupo publique textos e imagens como um autor profissional. Mas essa possibilidade pode resultar em produções irrelevantes se o autor não criar algo atraente e encantador. Se a educação não reinventar os blogs, perderemos a oportunidade de aprender de um modo novo por meio dos diários eletrônicos. O mesmo tipo de consideração pode ser feito quanto a páginas web, revistas eletrônicas, chats, ferramentas de e-learning, editores de texto compartilhados na rede, podcasts, webquests, webgincanas, hot lists, caças ao tesouro, objetos de aprendizagem, jclic, jogos e simulações etc.
Podemos ter duas linhas de estudo: uma para mostrar experiências de usos imaginativos de tecnologias, outra para mostrar rumos de investigação ou de desafios que valha a pena enfrentar. No primeiro caso será preciso realizar um cuidadoso trabalho de garimpagem para encontrar exemplos que possam inspirar educadores. No segundo caso será preciso encontrar pessoas imaginativas que possam fazer propostas interessantes para os educadores.
Vale observar que as tecnologias da informação e da comunicação não se restringem aos meios digitais. Livros, gravuras, revistas, bibliotecas, fotos, filmes etc. são recursos informativos cujo uso mais efetivo certamente depende muito de imaginação pedagógica. Bibliotecas podem ser um excelente meio de acesso à informação caso os educadores construam projetos imaginativos de usos do acervo.
Muito podemos aprender sobre imaginação se ouvirmos os artistas. Insisto um pouco na necessidade de aprender com os artistas. Infelizmente o ensino das artes fica cada vez mais limitado nas escolas. Além disso, poucas são as organizações de ensino que abrem oportunidades reais para que os aprendentes criem arte no espaço escolar. Teatro, música, pintura, escultura, dança e outras formas de expressão artísticas vão se convertendo em trabalho de especialistas e nós, seres humanos comuns, limitamos cada vez mais nossos usos da imaginação. Essa circunstância me lembra uma conversa que tive com meu amigo Bernie Dodge. Era verão na Califórnia. Tempo de férias. Ele me contou que estava indo para a universidade de Humboldt, levando uma turma de orientandos para um curso de como redigir ficção científica. Intrigado, perguntei qual finalidade de tal curso para os alunos de um dos mais prestigiados mestrados de tecnologia educacional dos Estados Unidos. Bernie estranhou minha pergunta. Para ele escrever ficção científica é um ótimo exercício imaginativo. E os autores (e professores) precisam de muita imaginação para criar produtos de tecnologia educacional que encantem quem precisa aprender. Esse episódio é indicador de uma necessidade cada vez maior, a necessidade de contar com educadores que produzam informação “com arte”.
Há muito mais o que dizer sobre a proposta do eixo “tecnologia com imaginação”.. Mas creio que essa primeira indicação já assinala um bom rumo.
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